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Descontrolados e descontroladores: konversa kaótica com Jorge Mautner

Por Bernardo Oliveira*, editor de música do Cafezinho. “É certo que uma coisa torna-se outra O leão come o macaco E torna-se leão e macaco Come o leão, o jacaré E torna-se macaco, leão e jacaré” (Luna Lopes) A caminho desta entrevista com Jorge Mautner, puxei da memória alguns ocorridos a partir dos quais fui […]

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Por Bernardo Oliveira*, editor de música do Cafezinho.

“É certo que uma coisa torna-se outra
O leão come o macaco
E torna-se leão e macaco
Come o leão, o jacaré
E torna-se macaco, leão e jacaré”
(Luna Lopes)

A caminho desta entrevista com Jorge Mautner, puxei da memória alguns ocorridos a partir dos quais fui introduzido à sua personalidade complexa, artística e intelectualmente desafiadora, inventiva e de uma alegria insofismável. E o episódio inaugural se deu em uma entrevista concedida nos idos de 1989 para Jean-Yves de Neufville, que à esta altura trabalhava para a revista Bizz. Mautner rememorava suas primeiras investidas literárias, a começar com “Deus da Chuva e da Morte”, editado em 1962; a fundação do Partido do Kaos, espécie de sociedade político-hedonista de cunho anarquista que contava em suas fileiras com José Roberto Aguilar e Mario Schenberg; o período norte-americano, no qual atuou como secretário de Robert Lowell e se tornou amigo de Paul Goodman; a ida para Londres, o encontro com os tropicalistas, os esforços para fazer a mediação que traria Gil e Caetano de volta ao país, a incompreensão por parte de esquerda que o acusava de ser “agente da CIA”, entre outras histórias que descrevem a vida militante, uma trajetória agitada, um pensamento avançado.

Dois trechos desta entrevista, assombrosamente atuais, me marcaram mais do que quaisquer outros. No primeiro, uma profissão de fé: “Meu pai me transmitiu uma preocupação, que orienta toda a minha obra, de que o nazismo não foi derrotado, apenas perdeu uma batalha e que a única saída era ser artista ou cientista.” Adiante, uma constatação que perdura em nossos dias: “Não somos nós os radicais. São eles. É de uma precisão impressionante. O interesse do país seria as pessoas começarem a ler e escrever. Desde os programas da Xuxa até o senhor Paulo Massadas: os que detêm os meios de comunicação. Roberto Marinho ou Sílvio Santos, a eles devia interessar começar a educar o povo. Não. Eles imbecilizam metodicamente. (…) Eles tiram tudo das crianças. Impedindo-as de ler, escrever, ter acesso a informação real, artística, ouvir boa música, eles tiram tudo. Até comida. Tiram as riquezas da alma.”

A luta contra as diversas formas de submissão e autoritarismo e a luta por afirmar o Brasil enquanto uma potência que ensinaria o amor ao mundo. Lado a lado, o libertário e o panbrasilianista, a militância e a reversão amorosa do positivismo. Prestes a lançar mais um livro — desta vez uma sequência de dez volumes sobre sua vida e sobre o Brasil, a serem editados a partir do segundo semestre de 2016 — Mautner permanece como um apólogo convincente e informado sobre o país. Inquieto e a fim de experimentar novos ares, novos palcos e parcerias, escolheu o estúdio carioca Audio Rebel para uma residência. O evento Kaos Total: Julho de Mautner ocupará as terças-feiras de julho na Audio Rebel em quatro apresentações, a cada dia com uma temática diferente. No primeiro dia, acompanhado pelo violino e pelo bandolim; na sequência, cantando alguns dos nossos sambas imortais, algo de Noel Rosa e a parte preciosa do seu repertório que fala às crianças. O objetivo mais ou menos delineado é o de, a um só tempo, registrar algumas novas ideias, conversar com a plateia e, talvez, aproveitar os registros da temporada para a produção de um novo disco.

Mautner é um compositor de canções como “O Vampiro”, “Maracatu atômico”, “Lágrimas negras”, “Samba dos animais”, “Samba Jambo”, além de escritor, cineasta, poeta, filósofo e um dos grandes artistas-intérpretes do Brasil. Por este motivo, minha intenção era a de entrevistá-lo em parceria com o compositor paulistano Romulo Fróes, que se encontrava no Rio de Janeiro. Infelizmente não foi possível. Fróes, no entanto, deixou uma pergunta que deu o tom de toda a conversa. Eu, como ele, considera Jorge Mautner como um farol: não é fácil ser um otimista no Brasil sem parecer que você é um otário ou um ingênuo. Para Mautner a alegria sempre foi “a prova dos nove”, uma alegria “espinosana”, que se traduz em um aumento exponencial da potência de agir e pensar. Suas respostas foram surgindo com entusiasmo, simultaneamente caóticas e articuladas, desviando-se dos lugares comuns e das respostas imediatas, criando um círculo de ideias análogas ao cosmos de imagens e experiências que fluem em seu site pessoal. Nos restou iniciar com a questão: ante a todo o descalabro político pelo qual passamos, Mautner se mantém um otimista? O Brasil ainda é o país do futuro?

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Jorge, pra mim e pro Romulo Fróes, você tem uma importância enorme, por várias questões: musicais, estéticas. Mas também pelas palavras políticas. Eu lembro de uma entrevista na revista Bizz, na década de 80, que transformou a minha vida. Você falava coisas ali que são muito atuais. O Rômulo falou que “adoraria entrevistar o Mautner, porque ele sempre significou essa força de renovação, esse otimismo! Perguntar pro Jorge o que ele acha: será que ele continua um otimista?” Em que sentido o Brasil ainda é um país de futuro?
Ah, sim! É.. (risos) Esse otimismo eu afirmo toda hora, inclusive considerando o Kaos Total, o tempo todo. Sou mais otimista que nunca. A disposição inicial do Brasil nasce de duas raridades. Muito raras mesmo. São exceções na história. O Brasil já era conhecido em 1008. 1008! Quinhentos anos antes do descobrimento. Aliás, no livro Brasil: Uma Biografia [de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling] que saiu pela Companhia das Letras, as primeiras 100 páginas são só sobre isso. As cortes europeias comentavam que esse lugar era incrível, os índios andavam nus, eram atléticos e perfumados… Ninguém tomava banho na Europa, né? (risos) Mas o que mais os admirava eram as guerras dos índios que estavam aqui antes dos tupis-guaranis. Eles faziam guerras só por vingança pessoal. Era tamanha a abundância de peixes e recursos naturais, que a guerra era apenas para vingança pessoal. Mas são dois fatos inéditos na história do planeta que definem esse país, o país do futuro.

Vejamos os dois ineditismos: o primeiro é que em toda a história humana, em todas as outras culturas, o estranho, o diferente, o desconhecido, o forasteiro tende a ser estraçalhado. Mas os índios tupis-guaranis, que nasceram um pouco acima da Patagônia, pensavam a partir do mistério. Então, tudo o que era estranho, diferente, forasteiro, desconhecido, era pra ser desvendado em seu mistério. Quando eles chegaram no Brasil, ao invés de travar um combate com as tribos que só faziam guerra por vingança pessoal, eles, pra desvendar o mistério de cada um, foram transando pelo amor. Isso não existe em nenhum lugar da história do mundo. Isso aqui é o primeiro predicado absoluto, não é? O povo brasileiro que sempre fez isso.

A outra disposição, tão estarrecedoramente rara, partiu de uma decisão geopolítica do Papa. Os templários, que eram o grande exército internacional do Papa, eram a elite armada, um exército internacional. O Rei da França, Felipe, O Belo, endividado, blefou em desespero e o blefe deu certo. “Sou eu que nomeio os cardeais e arcebispos, não os Templários, que são criminosos”. Da noite para o dia, os Templários, que eram deuses da densa Idade Média, passaram a ser queimados como heréticos vivos na frente das igrejas. O Papa, então — note a decisão geopolítica — dividiu Roma em duas. Deu metade do mundo para o maior império da época, que era a Espanha. A Espanha era Espanha, Bélgica, Holanda e metade da Itália. E o outro, país mais pequenininho que ninguém nem conhecia que era a Casa de Avis. Meia dúzia de pessoas lá em Portugal. Por que? “Os Templários que puderem se salvar, se dirijam para esta Casa de Avis, mudem de nome para cavalheiros de Cristo e fundem ali a Escola de Sagres com todos os segredos…”. Então, o maior país do mundo recebe tudo. Então, Portugal desbrava o caminho para as Índias, todas as técnicas de navegação que eram conhecidas, como por exemplo, aproveitar o vento ao contrário da vela… Isso tudo eles passaram para a Escola de Sagres.

O primeiro livro de Gilberto Freyre, que foi reeditado só agora, chame-se “China Tropical”, escrito quando ele se encontra com o Rabindranath Tagore na Suíça. Aí ele fala, ao encontrar Tagore, que a civilização futura da Índia é o Brasil. Tagore, neste livro do Freyre, diz que nos séculos XVI e XVII os brasileiros eram totalmente hindus. Então, aqui é uma civilização anarquista-pacifista. O povo brasileiro que faz tudo o tempo todo. Quatro séculos de escravidão, a Senzala ensinando tudo pra Casa Grande, inclusive como governar. Os homens de Portugal estavam todos velhinhos já. Então, o tempo todo o Brasil foi feito assim, um país construído a partir dessas duas disposições. Se fosse um país pequeno, mas não, é um estrondo! E isso tudo vai se refletir o tempo todo em nossa história.

Quer dizer, o Brasil foi construído por uma força erótica e outra força criativa…
Total! Então, por exemplo, devido à grande presença dos japoneses na década de 60 na cidade de São Paulo, imediatamente a umbanda criou um orixá samurai. A aceitação é total, imediata e absoluta. A Senzala ensina tudo pra Casa Grande. O tempo todo é a história mais original do planeta.

Passei sete anos fora do país na década de 60, dois anos trabalhando nas Nações Unidas. Aí os cientistas me perguntavam: “Me explica o mistério. Vocês tem uns dos maiores aquíferos do planeta. Como é que não pode furar?” Aí toca explicar: é por governabilidade, pois o coronel, pra garantir o eleitorado, usa carro pipa. Nós temos um dos maiores aquíferos do planeta. Isso é lei, não pode furar. O bispo Crivella conseguiu há uns anos atrás furar um aquífero, mas ele ficou confinado num local chamado Nova Canaã. Aquilo é tudo aquífero. Um dos maiores aquíferos do planeta.

Se tivéssemos estrada de ferro hoje, 70% da demanda por transporte no Brasil estaria resolvida. Todos os rios são navegáveis! Temos nióbio! Não existe satélite, nem foguete, nem celular, nem internet sem um minério chamado Nióbio. Nós temos apenas 95% do Nióbio do planeta. Os outros 5% estão no Canadá. Com estes 5% eles fazem escola, universidade… Parece até mentira, né? Isso aqui é a verdade do Brasil. (risos) Tem lugar para dois bilhões aqui sem um cutucar o outro. Nosso ineditismo nosso é tão grande!

Por cinco anos eu fui secretário do poeta norte-americano Roberto Lowell, e ele só queria saber dos segredos do Brasil, lia Gilberto Freyre…

Ele conhecia todos estes autores?
Sim, conhecia! O Paul Goodman, que é um grande filósofo, ecólogo, anarquista, quando eu cheguei no Village ele me perguntou “O que você tá fazendo no Village? Você não sabe que o Brasil é o único e verdadeiro Village desde o início dos tempos?” Isso aqui é um segredo guardado entre quatro paredes. Por exemplo, não tem país no mundo que tenha um índio Marechal, Rondon, e que discursa como se fosse Mahatma Gandhi: “matar jamais, morrer se possível for”. Na época do Estado Novo, foi para a Amazônia e tombou a ayahuasca como patrimônio. Os cientistas e o exército podiam tomar ayahuasca a vontade, mas para o povo não enlouquecer criaram o Santo Daime. Isso foi uma discussão de Estado. E no último governo do Fernando Henrique, no segundo mandato, queriam colocar a ayahuasca como se fosse cocaína e anfetamina. Ele resistiu e conseguiu que permanecesse como patrimônio cultural. É um ineditismo, uma raridade… O sonho de Piotr Kropotkin [geógrafo e militante russo], anarquista-pacifista, se realiza aqui todos os dias. Não é fantástica essa história? O último livro do Domenico de Masi [sociólogo italiano] confirma essa percepção, mas lá fora todo mundo já sabe.

Foto

Foto: Daryan Dornelles.

Ineditismo do Brasil. Um país-experiência?
A mitologia do Kaos tem quatro definições simultâneas. O Kaos é na verdade aquilo que José Bonifácio definiu em 1823 numa frase só. Ele pensou… olha que fantástico: “Diferente dos outros povos e culturas, nós somos o amálgama. Esse amálgama tão difícil de ser feito”. Ninguém tem amálgama, pois é algo além da miscigenação. É além da mistura. Como Vinícius: “Eu sou o branco mais negro do Brasil”. Aliás, foi o Brasil que fez o Barack Obama nascer. Você sabe dessa história?

Não, me conta…
Olha que fantástico! A mãe do Barack Obama, filósofa, branca, queria saber como é que era aquela Grécia socrática. Sem querer ela entrou no filme Orfeu Negro [Marcel Camus, 1959]. Quando ela percebeu que a Grécia verdadeira que ela sempre sonhara e procurava ficava em um morro no Brasil, era uma escola de samba e era negra, encontrou-se dois dias depois com um filósofo do Quênia e nasceu Obama. Ele escreve em sua biografia sobre isso. Eu fiz uma entrevista para a revista Veja. A Veja achou que eu inventei essa história. Isso é uma vergonha, por que está na biografia dele. O primeiro jornalista que foi entrevistar Barack Obama perguntou “De onde você é?” “Sou do Brasil. Não vê que eu sou brasileiro?”. O jornalista ficou tão apavorado que não conseguiu continuar a entrevista. E Obama nasceu por causa de uma imanência filosófica. Não é fantástico?

Os jornalistas não estão lendo muito…
Toda a nossa literatura é amálgama. Todo o romantismo. José de Alencar. O Guarani, com Carlos Gomes. “O mundo racista e eles celebram o índio?”. O próprio Pedro II, que tinha relações com Gobineau, discordava de suas ideias racistas. E, ao mesmo tempo, se vestia com plumas, como um indígena. Todo esse amálgama é vetor do nosso romantismo. Câmara Cascudo, Gilberto Freyre e, antes, Padre Antônio Vieira. Todas as culturas indígenas, mais a presença da Índia. Todos os elementos que aqui chegam são imediatamente assimilados. O rejeitado de pai e mãe, bebezinho órfão deixado na roda, se torna Regente Feijó. Benedito Valadares criou uma definição: “na prática, a teoria é outra”. Né? Depois: “governar é mandar prender, fazer soltar e fazer pagar”. Outra dele: ao ler o texto “Minas Gerais, celeiro do Brasil, quiçá do mundo”, acabou dizendo: “Minas Gerais, celeiro do Brasil, cuíca do mundo”. Tom Jobim dizia: “O Brasil não é pra principiantes”.

E os jornalistas ao invés de proclamarem esse amálgama, esse “Brasil total”, ficam querendo que o Brasil imite a Bélgica. O nosso ouro e prata fizeram toda a industrialização da Europa. A cana de açúcar propiciou todo o doce de chantili, de figueira, é tudo nosso. O café! Eu falei em várias palestras no exterior: “Vocês nos devem trilhões e trilhões de libras”. Balzac tomava 300 xícaras de café para escrever.

Proibiram o povo brasileiro de ler e escrever, mas através do celular desse nosso nióbio sabe de tudo e sabe mais do que os outros. Essa é a leitura verdadeira. Olha.. Isso é a pura verdade. Esse é o meu otimismo. Ele só cresce. O que eu vou te dizer mais?

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Você tá escrevendo um livro agora pra lançar? E esse livro é sobre o Brasil?
Tudo é amálgama. O tropicalismo é amálgama em plenitude, enquanto Oswald de Andrade era em fúria. A ideia de “multiculturalismo” é pálida, não funciona. A comissão da Nações Unidas entendem que a irradiação desse amálgama é coisa essencial, se não a humanidade acaba. O Gil, quando ministro, nos primeiros meses ainda, propôs que os artistas brasileiros fossem junto com os jogadores da seleção brasileira para disseminar este amálgama. Não vingou. E este amálgama é o tema deste livro que lançarei agora, o primeiro de dez volumes. É a longa história de minha militância desde 14 anos até 1955. O título eu tirei de uma frase do filósofo Agostinho da Silva: Não há abismo em que o Brasil caiba. Embaixo, como subtítulo: O domínio do fato. São 10 volumes, porque eu vou no flashback, desde o início em 1954. Se eu viver até lá, vão ser dez, porque é muita coisa, desde 1956 até 2016.

Lembro de ler numa entrevista, Caetano falava algo do tipo: “O Jorge Mautner inventou a Tropicália muito antes do tropicalismo”. Por causa da canção “O Vampiro” e por causa de uma crítica alegre que você fazia contra à bossa nova. Você reivindicava uma anti-bossa nova. E eu fiquei pensando assim: o século XX é um século onde a dinâmica da arte é a da ruptura, da contradição. Você acha que a arte representa ainda hoje esse poder de antagonismo ou isso mudou? Qual a potência da arte hoje?
Maior do que nunca. Há anos atrás a neurociência descobriu que os nossos neurônios são pura emoção. Deixa o romantismo no chinelo! Só não supera Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé! Então, olha a loucura: até a abstração da álgebra é uma emoção. É um super, hiper romantismo. É o Brasil, né? Por exemplo, você e tua esposa vão ter um filho e uma filha. Então tem toda a sua história lá de trás… Mas os fatos mais importantes são da sua vida e da dela. Então, cada ato sexual seu e dela, os neurônios vão pular, pular para transmitir. Chamam-se “neurônios saltitantes”. Eles transmitirão toda a informação recente sua e dela para o bebezinho que vai nascer. Nessa operação, a natureza sempre gosta de um perigo, há o risco de cair no lugar errado, morrer, mas é bem raro. É a continuação da espécie. Minha filha nasceu, mas como ela sabe essas coisas? São os neurônios saltitantes. Já transmitiu tudo. Não é genial, isso? Que força é essa? (risos) E é o tempo todo. Então, você imagina a capacidade dessas próximas gerações. Sua mesmo, você já tem os neurônios saltitantes! Mesmo que eu fale coisas complexas pra uma pessoa que não tenha instrução para compreender, não interessa, ela compreende. Os neurônios captam aquilo. É tudo emoção. É Jesus de Nazaré e os tambores de candomblé. Não tem erro. (risos)

Isso aqui é um turbilhão de criatividade infinita. Eu falo horas com as pessoas e percebo que eles sabem mais do que eu. Isso não é demagogia. É verdade. Eles sabem mesmo. Quando estava gravando um disco com o Maracatu Estrela de Ouro em Nazaré da Mata, um menininho de 12 pra 13 anos me disse: “Olha, o nosso pai de santo pediu pra eu dizer pro senhor que nós somos quânticos”. (risos)

Outro dia fiz uma palestra na Praça da Sé pra um menininho, e ele me pediu: “Tio, conta de novo aquela história daquele Homero”. É crime não ter dado instrução a este menino, né?! Mas o celular, a internet com o nosso nióbio já estão transmitindo tudo. Não é fantástico? Então, otimismo é piada perto de tudo isso. É realmente inacreditável!

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Potência como forma de criar, pensar e renovar.
Criar vida e renovar, incluir o tempo todo. E a partir dali para frente.

À parte essa possibilidade de pensar o Brasil a partir da potência, como você percebe o momento presente? Como é que você está enxergando essa movimentação política, as reações através da internet, por exemplo, na conjuntura política, mas também nos debates que dizem respeito a gênero, racismo?
Nunca houve tamanha legalização das lutas, né?! Luta antirracista, de afirmação da liberdade sexual… São conquistas, assim, imensas. Respondo com a frase que o Papa disse aqui na Copa: “A renda dos 7,5 bilhões de habitantes está na mão de 1%. A outra que ele falou agora, há um ano atrás, e ninguém comentou por que daria pânico. Sobre os ataques em Paris: “Esses ataques são a ceia da antevéspera da guerra mundial”. Não é fantástico? Ao mesmo tempo é o contrário disso tudo, porque as pessoas estão se mobilizando.

O nazismo é profundo, por que o mal é profundo. Richard Wagner, Nietzsche, Mircea Eliade, Martin Heidegger, os maiores inspiradores dos nazistas. E Heidegger, mesmo nunca tendo se retratado pelo apoio ao nazismo, solta duas profecias fantásticas. A primeira é a que “A metafísica acabou, tudo virá através da Techné e da ciência”. Isso é 1952 ou 1953. Heidegger completa: “Através da cibernética viveremos num planeta em que todos serão controlados e controladores”. Isso tá acontecendo agora. Você tem 7,5 bilhões de controlados e controladores no mundo hoje. Agora, vamos ter que injetar esse amálgama brasileiro pra funcionar. Já estamos monitorados por satélites e tudo. E não será por nanotecnologia, mas por ondas. Nelson Jacobina dizia assim: “Vão ser todos uns descontrolados e descontroladores”. (gargalhadas)

Eu estive na FLIP e falei assim: “Vocês vão viver 300 anos no mínimo, porque não vamos mais ter doenças”. No terceiro dia, um neurocientista foi lá e disse “Vocês vão viver 500 anos”. Eu fui modesto. (risos) Então, imagina só o que vocês tem pela frente.

E sobre essa temporada na Audio Rebel? Você está planejando transformar essa sequência de apresentações em um disco?
Ah.. Sim! Para irradiar na internet e isso tudo. Exatamente.

Mas foi uma coisa que você pensou: “Vamos pegar essas quatro datas e fazer um disco” ?
Não, não. É porque… Olha só… Eu faço show por todo Brasil, né? O lugar mais ingrato pra fazer show é no Rio, porque não dá lucro. Tenho mais shows, por exemplo, em Minas Gerais, São Paulo, do que aqui. Então, é um lugar muito ingrato. Audio Rebel? Então, tá bom! Vamos fazer, porque tem o povo carioca que quer me ver e nunca pode. Então, o motivo principal é esse. Querem que eu cante a capella, vou falar pelos cotovelos… (risos)

Cartaz: Mariana Mansur.

Cartaz: Mariana Mansur.

São quatro shows, mas tem várias coisas acontecendo, né? No primeiro dia você vai tocar violino e bandolim…
Isso. Bem… pode acontecer qualquer coisa, né? Liberdade é uma máxima indispensável. Então, numa lista de 60 músicas eu pinço essa, pinço aquela. Depois eu posso também ter surpresas, convidados. Deixarei tudo no suspense de Kaos mesmo. Kaos com K.

O Kaos tem quatro definições, não sei se você sabe. É K-A-O-S: Kamaradas Anarquistas Organizando-se Socialmente; a segunda é: Kristo Ama Ondas Sonoras; a terceira: Kolofé, Axé, Oxóssi e Saravá; e a quarta cada um coloca o que quiser.

Então já é tudo. O show vai ser assim como a nossa conversa, que é muito à vontade. Eu acho que contarei com o Marcelão de Sá, que também é um grande músico. O Bem Gil também. Terei essa liberdade de improvisar, embora tudo seja estudado. Não existe nada que fique natural sem estudo. Não existe “natural”. É tudo estudado pelos neurônios. Convidarei artistas que moram aqui. Minha filha talvez queira assistir, minha netinha..

Tem um dia que é “Mautner canta para crianças”…
Isso! As crianças gostam muito de várias músicas minhas. “A Locomotiva”, “Doidão Doidão”, “Samba dos animais”. “Sapo Cururu” também. Que, inclusive, não é de minha autoria. “Sapo Cururu” é de um autor desconhecido que a Cecília Meireles, em 1958, trouxe da Paraíba. Eu procurei o autor, não encontrei. É gênio, né?! “Este sapo cururu não anda de bicicleta / Mas ele anda dizendo que a lua é careca / Se a lua fosse careca, ela usava cabeleira / Mas como é bonita a bandeira brasileira”. (risos)

Uma parte daquela entrevista dos anos 80 para a revista Bizz em que você fala dessa coisa do calcanhar de Aquiles do Brasil, que é uma falta de ler e escrever, que a televisão podia ser um agente da educação e infelizmente não é. O que você pensa hoje sobre essa relação comunicação-educação?
É através do celular, da internet, de toda essa parafernália tecnológica que vamos superar essa falta de instrução pública que temos no Brasil. Cada um pode ler, participar… É a era dos controlados e controladores. Ou dos descontrolados e descontroladores. (risos) E já começou. Não é isso? Isso não tem volta. E é tão impressionante tudo que vem aí. Vilém Flusser, que era fenomenólogo…

Sim, ele fala do Brasil também…
Isso! Do Brasil, mas por imagens. Claro que cada linguagem transmite suas ideias. A música, as imagens… Mas temos que ler e escrever! E aí, quando você pega o gosto, não pára. Porque são conversas com você mesmo, com as várias personalidades que transitam nos livros. Fernando Pessoa: “A única pessoa que pode ter duas opiniões ao mesmo tempo é o poeta”. Agora todo mundo tem, né? (risos) É isso! Essa simultaneidade. E é emoção. Nada é desligado.

Tenho alunos da Maré, do Complexo do Alemão… Aí, eu estava lendo “Schopenhauer Educador” do Nietzsche, e eu to reparando os alunos com celular na mão. Eu falando e eles com o celular na mão. Eu falei: “Ô galera.. vamos ler comigo ai”. Eles falaram: “A gente está lendo” e mostraram o celular.
Ahhhhh!!!.. Estavam lendo através do celular! Isso é maravilhoso! (gargalhadas)

A gente está lendo!” Ai eu: “Meu deus!”. Eles estão na frente.

E nunca a filosofia foi tão importante. Pode ser em poesia, em transmissão de música, em tudo. Mas é isso que você falou. São novos neurônios que vão se renovando na velocidade de sinapses da luz. Então, é também uma comunicação permanente, ao mesmo tempo super individual, mas para os outros simultaneamente. São rupturas dos cruzamentos tradicionais.

De novo é a Índia. E é Shiva. Na verdade, Shiva quando chega na Grécia vira Dionísio. Tinha uma lacuna na Grécia, as mulheres, os jovens e os escravos não participavam. Aí Shiva começa tudo o que vai dar na Tragédia Grega. E Shiva aqui no Brasil foi trazido pelos portugueses. “Vamos levar Shiva pro Brasil”. Porque sempre fomos esse governo compartilhado, que dependia da Senzala para aprender as coisas, inclusive a governar. Então, não havia ruptura. Aqui o Shiva virou carnaval.

Uma outra bomba atômica é a seguinte: a Deusa Kali veio com Shiva. A Deusa Kali, esposa de Shiva. Olha que loucura. Aí, olha o amálgama deste Brasil. A Deusa Kali veio e falou: “Não pode ficar com as mãos assim, tem que fazer assim” [imita as mãos de quem está prestas a fazer uma oração no Brasil]. Lá na Índia a Kali é cravejada de diamantes, jogada no Ganges e ali ela fica. Aqui, numa mimetização do amálgama transformador desse costume, veio a Deusa Kali, mas com a mão assim, quase como se fosse Nossa Senhora. Aí eles cravejavam de diamante, imitando e transmutando os costumes. Com uma corda jogava no rio com diamantes. Essa estátua da Kali jogada pela segunda vez foi achada e… virou Nossa Senhora da Aparecida! Nos séculos XVI e XVII o Brasil é totalmente hindu.

Há oito anos os cientistas confirmaram que os índios Surucucus do Alto Xingu mostraram, para antropólogos boquiabertos, trilhas de canais de centenas de quilômetros. A Amazônia nasceu como um jardim plantado por nossos ancestrais indígenas, com canais de irrigação. Já pensou um jardim com canais de irrigação? Aí você tem a atitude Maia. O ser humano nasceu na África, negro. Dali foi pra Ásia, virou asiático. Depois subiu o Estreito de Bering. Atravessou três migrações de índios. Mas teve homo brasiliensis que nasceu na Serra da Capivara. Um ser humano autóctone. Se ele se miscigenou, se desapareceu, ninguém sabe. Já pensou o que tem aí para vocês no futuro?


Voltando um pouco para a música: me lembro que você falava da Marlene, que ela tinha uma exuberância, uma coisa que a Bossa Nova teria soterrado…
Totalmente! É por que é o seguinte: meu pai era agente da resistência judaica. Então, minha mãe católica. Eu nasci um mês depois que eles chegaram aqui. E minha mãe muito traumatizada com a morte da família dela, não podia quase ficar comigo por uns sete anos. Eu fiquei nas mãos da minha babá negra, que era filha de santo. Então, três vezes por semana eu ia pro candomblé com ela. Ela me botava no colo, trocava de roupa, os tambores tocando, passava as mãos nos meus cabelos e dizia: “Seus pais vieram de um lugar de gente muito má e cruel. Mas aqui você vai voltar a se dar bem. Aqui você está entre os seus irmãos…”. (rimos, emocionados…)

Como era o nome dela?
Lucia! Minha mãe separou do meu pai, por que ele gostava de jogar. Meu padrasto, que era violinista em São Paulo, admitia meu pai durante décadas em casa. Tomavam café juntos, almoço, jantar. E ele fazia bico na Rádio Nacional, eu aprendi a tocar violino com ele. Então, o tempo todo eu fui cercado disso aí. Questão de fluxos e imanências.

Um dos dias que você escolheu lá pra Audio Rebel foi dedicado a obra de Noel Rosa. Por favor, fale um pouco sobre essa escolha.
Isso! Exatamente! Vou tocar do Noel Rosa “Cor de Cinza”, “Saudade da Penha”. Também aquela “Jurei não mais amar pela décima vez /Jurei não perdoar o que ela me fez /Mas o costume é a força que fala mais alto que a natureza e nos faz dar prova de fraqueza / Joguei meu cigarro no chão e pisei / E não tendo nenhum, aquele mesmo apanhei e fumei / Através da fumaça neguei minha raça /chorando a prosseguir. Ela é o veneno que eu escolhi pra morrer sem sentir.” Gênio, né!? Maior propaganda anti-nicotina é esta música. (Risos)

 

É maravilhoso! Quem são os gigantes desse país, da potência na música? Quem são? Fala só um pouquinho. Eu sei que você… Por exemplo, jornalista geralmente pergunta isso e as pessoas: “Tom Jobim…”
É isso! E é Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Noel de Medeiros Rosa, Adoniran Barbosa, Wilson Batista, esses todos da música caipira. Isso aqui não pára! Aracy de Almeida, né?! Toda a Portela! Martinho da Vila! Os tambores! Escuta! São os tambores do candomblé e Jesus de Nazaré que movem essa nação o tempo todo. Villa-Lobos pega nisso o tempo todo, o rock de Rita Lee também! Aquela absorção da guitarra no Tropicalismo era mais do que natural. O Sérgio Ricardo só fez um contraponto. Eram loucuras importadas. Aqui é o amálgama. Aqui é uma cratera do vulcão. (risos) Aqui é Exu, que é Shiva. As mulheres! As amazonas. A Grécia de Homero. É aqui que tá tudo nos tambores! É musicado! É ao vivo. Não precisa de Odisseia. Isso aqui já é a Odisseia, a grande odisseia, o tempo todo. Isso aqui é o tempo todo, meu amigo. Você anda na rua e fala com qualquer um. É impressionante. Lá fora não é assim, não. São muito limitados. Eu tenho muita piedade deles. Isso aqui é o lugar para a filosofia mais profunda.

*Professor da Faculdade de Educação/UFRJ, autor de “Tom Zé — Estudando o Samba” (Editora Cobogó, 2014).

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José Geraldo

01/07/2016 - 20h46

Kaótika Maravilha!

zazul

29/06/2016 - 23h27

Que entrevista maravilhosa! Uma aula multidisciplinar do mestre Mautner. Gratidão!

Mário de Oliveira Pinheiro

29/06/2016 - 21h53

O que valeu depois de todo o papo “qualquer coisa”, que o baiano( também qualquer coisa) possivelmente xarope pela convivência compôs foi o Noel aparecer de surpresa. “…o futuro é a força que fala mais alto do que a natureza…”Ah,” …e que nos faz dar provas de fraqueza…”

Canhoto

29/06/2016 - 21h04

Pena que este tipo de entrevista que deveria ser do interesse geral, não é do interesse dos meios de comunicação(manipulação) mais abrangentes. Então, temos que ler, divulgar entrar em sites de direita e indicar a leitura.


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