Por Julia Spatuzzi Felmanas, colunista política do Cafezinho
Imagino que muitos, como eu, se perguntem sobre o que passa pela cabeça dos Ministros do STF, juízes, procuradores que têm em suas mãos, não só a reputação, o destino e o futuro dos políticos, governantes e partidos brasileiros, mas de todo o sistema, credibilidade e legalidade da nossa democracia.
Foi com este intuito que resolvi participar do “Brazil Forum UK 2016 – Transcending the dichotemy” (Transcendendo a dicotomia), onde o Ministro Luís Roberto Barroso e o Procurador responsável pela Lava Jato, Deltan Dallagnol, se apresentariam.
A um custo de R$60,00 por cada dia de evento, o Fórum não pode ser considerado acessível a maioria dos estudantes e brasileiros que moram no Reino Unido, ainda que a programação tenha sido transmitida em tempo real pelo site do evento no Facebook. Assim, o debate entre homens (e são majoritariamente homens) de tamanho protagonismo ocorreu a portas fechadas, nos auditórios de duas das mais prestigiosas universidades do mundo, a LSE e Oxford. O segundo dia em Oxford, foi ainda mais exclusivo tendo em vista a viagem e a maior formalidade do pequeno St Anthony’s College.
O dia começou com um painel, cujo nome era “Estado de Direito: como podem os órgãos jurídicos e seus representantes ajudar a fortalecer a luta contra a corrupção no Brazil?” Contou com a participação de Dallagnol (‘o menino da Lava Jato’, como ele mesmo se descreveu) e Paulo Roberto Galvão de Carvalho, ambos promotores, o Desembargador João Pedro Gebran Neto, também associado à Lava-Jato, e a advogada Esther Mirian Flesch, especialista em Compliance da Firma Trech, Rossi e Watanabe, no Brasil.
Parece que a maior exclusividade de Oxford não só afastou os escrachos, mas também as críticas, e assim, o ‘debate’ com os palestrantes estava longe de abrir caminhos teóricos ou ‘transcender a dicotomia’, anunciado objetivo do Fórum. Estranhamente para um ambiente acadêmico, não havia no painel, nem por parte da mediadora, nenhuma crítica ou questionamento.
Só para dar alguns exemplos, não houve perguntas sobre os possíveis efeitos da utilização da doutrina da “dúvida razoável”, se esta leva à violação dos direitos dos acusados ou à possibilidade de enganos já que as provas são baseadas em indícios ou provas indiretas. Como também não houve nenhum questionamento sobre as possíveis consequências nefastas de uma investigação que pode fazer ruir todo o sistema político e a governança do país. Ninguém questionou se é possível que o uso extremo dos “Termos de Colaboração”, melhor conhecido como delações premiadas, possa levar a investigação a “acabar em pizza”, já que todos falam e todos são soltos ou recebem punição menor. Nada foi dito sobre os vazamentos parciais à imprensa e como estes podem afetar, influenciar, se não totalmente invalidar as investigações. Ninguém perguntou qual é a taxa de correlação entre a “percepção e realidade” da corrupção nos índices utilizados pela Transparency International, tão mencionados na palestra. E finalmente, não houve nem mesmo curiosidade em saber como é que a Lava-Jato e o combate à corrupção possam contribuir para a reforma política, que todos presentes, inclusive eu, estávamos de acordo, deveria ser uma das soluções para a crise que enfrentamos.
Com direito à três perguntas, a plateia se limitou a aplaudir em pé, enquanto a mediadora explicava que a exposição trouxe lágrimas aos olhos de muitos.
Os Procuradores Dallagnol e Galvão, que ingressaram no Ministério Público em 2003 e 2004, respectivamente, fizeram uma exposição conjunta, contando com a participação do erudito público na repetição de frases e chavões, lembrando mais uma audiência de igreja que um auditório, descrito várias vezes pelos diversos palestrantes como “os futuros governantes do Brasil”. Enfatizaram as mudanças na lei, as várias investigações desde o mensalão, e a cooperação internacional como elementos necessários para fazer a Lava Jato possível, utilizando-se, curiosamente, de lâminas de PowerPoint feitos for Miriam Leitão, também mais tarde citada pelo Ministro Barroso. Concluíram com a apresentação das 10 medidas anti-corrupção divulgadas pelo Ministério Público. Não é necessário dizer, que estas tampouco tiveram seus fundamentos ou méritos debatidos pelos juristas presentes.
Entretanto, o auge do evento seria, sem dúvida, a apresentação do Ministro do Supremo Federal Luís Roberto Barroso. Corretissimamente, começou por alertar que não discursaria sobre o impeachment, dado o seu possível envolvimento futuro. Contextualizou os últimos 30 anos desde a promulgação da Constituição de 88, citando os avanços na democracia, a conquista da inflação (governo FHC) e os anos de inclusão dos governos Lula e Dilma. Ressaltou a imparcialidade dos juízes e a obrigação destes profissionais de defender a Constituição e, como esperado, enfatizou que “apesar da crise, as instituições estão funcionando normalmente”.
Destacou a necessidade da reforma política, cujos objetivos seriam fazer as eleições mais baratas, melhorar a governabilidade e a criar um sistema com menos partidos. Reclamou, com toda a razão, da judicialização e destacou que a jurisprudência não poderia substituir a reforma política, levando a possíveis efeitos colaterais. Disse que o Mensalão constituiu um avanço, criando novo paradigma, condenando ‘elites’ nunca antes atingidas, trazendo mudanças como a devolução do dinheiro desviado e o pagamento de multas, além de decisões condenatórias após o julgamento em segundo grau. Até disse que a Ação Penal 470 teria cometido alguns exageros, mas que poderiam ser ‘perdoados’, dada a mudança de paradigma daí advinda. Nas palavras do Ministro: “ideias novas precisam ser afirmadas com exageros para romper a inércia”, deixo a vocês possíveis implicações.
Barroso poderia ter acabado aí, ou então discursado sobre inúmeros outros temas constitucionais de relevância à atualidade, inclusive aprofundar-se mais na questão da necessidade da reforma do judiciário, tema que efetivamente abordou, frisando a necessidade de acabar com o fórum privilegiado.
Porém, o ilustre Ministro, resolveu nos agraciar com as suas visões acerca da educação, saúde, segurança social entre outras políticas públicas. Barroso, como qualquer outra pessoa, tem o direito às suas opiniões. Porém, na presença da auto-intitulada ‘Nata Brasileira’, talvez teria sido mais interessante, ouvi-lo falar de assuntos sobre os quais é especialista, em vez de utilizar seu grande prestígio para dar peso a argumentos que se poderia ouvir de qualquer outro leigo.
Pessoalmente, a divagação do Ministro foi de grande valor. Sua fala, pontuada com jargões como a necessidade de um ‘Estado menor’, livre iniciativa, iniciativa privada, enfrentar o inchaço do Estado, recriar um Estado menor e mais eficiente, foi útil para entender sua posição. Barroso, é um juiz com posicionamento jurídico progressista-liberal, mas conservador em relação ao Estado. Um Juiz a favor de menos intervenção jurídica, das liberdades individuais, e menos intervenção estatal. Isto é, a influência de sua experiência nas universidades americanas é visível.
E é justamente aí que se fundamenta a sua inação perante os descalabros políticos atuais. Além de não acreditar na intervenção jurídica, Barroso dá a impressão de que as investigações atualmente ameaçando o Status Quo – independentemente do quão justas ou exageradas sejam para os indivíduos envolvidos ou quanto afetam as políticas públicas em pró a população – trarão um ‘bem maior’ que é o fim da corrupção. E mais, acredita na necessidade das mudanças a serem feitas pela política econômica do Governo Interino, na justeza e no acerto dos quadros indicados para a área econômica e na necessidade de um Estado menor.
A viabilidade e o futuro deste governo interino ilegítimo dependem justamente no pacto feito para cooptar aqueles que dominam a opinião pública. Porém, é isso que tem de mais ilegítimo nesta história toda: a reviravolta político-econômica de um governo que antes era desenvolvimentista de centro-esquerda e que passa a ser liberal, sem ser consagrado pelas urnas. Em certos círculos não há discordância sobre as soluções para o Brasil. Longe de gritos e escrachos, em espaços privados seletivos e às portas fechadas onde a deferência é regra, o consenso é total. Assim, como será possível ‘transcendermos a dicotomia’?
https://www.youtube.com/watch?v=t_MaHW3GvNc
https://www.youtube.com/watch?v=HV1si8sLF3Q
Julia Felmanas é filósofa e mestre em políticas públicas juliafelmanas@gmail.com