(Foto: Jornalistas Livres).
Por Bajonas Teixeira de Brito Junior, Colunista político do Cafezinho
A visão de policiais federais uniformizados para a guerra, perfilados hoje diante da sede nacional do PT, faz lembrar o dia em que Lula foi levado para depor sob vara no aeroporto de Congonhas. Naquela data os uniformes camuflados também foram usados para dar um toque suplementar de truculência ao cerimonial do golpe. Essa reedição dos uniformes, e a mensagem óbvia ligada a eles, faz pensar na situação do Brasil hoje. Os direitos da diversidade, que são atualmente a forma mais palpável dos direitos humanos, apavoram a parte golpista da classe média que foge, como o diabo da cruz, de toda forma de diversificação. Enquanto a ONU promove à diversidade com inúmeras iniciativas, e os países mais democráticos do planeta aderem incondicionalmente a ela, o Brasil acelera em marcha ré e movimento retrógrado.
O horror à diversidade esteve desde a primeira hora no centro do governo interino de Michel Temer, que, para ferir a diversidade cultural, baniu do ministério as mulheres, os negros, os gays, e até a própria cultura. Episódios como a invasão da UNB por um grupo de fascistas, um deles vestindo trajes camuflados (17/06) ou o ataque com mais de 200 camionetes e carros contra famílias de índios na fazenda Yvu, no Mato Grosso do Sul , que resultou no assassinato de um jovem índio (14/06), mostram a conclusão lógica do ódio à diversidade.
Em oposição a esses ferozes ímpetos regressivos, inimigos dos direitos humanos, da democracia e do estado de direito, que assombram a fisionomia desses dias conturbados, uma outra tendência com sentido contrário se desenha cada vez com mais nitidez.
No Brasil hoje acontece uma efervescência nas ruas que se expressa como uma surpresa estética, pela investida das imagens que invadem o campo visual a cada vez que uma manifestação contra o golpe se põe em marcha. Não apenas a diversidade em sentido político (as investidas da representação de identidades de gênero, cor, sexo, periferias, etc.), mas ainda a interferência de imagens avessas à uniformidade. E é isso que faz com que o próprio bloco de alguns milhares de pessoas reunidas, às vezes bem menos que isso, assuma a forma de um agrupamento estético provocativo. Isso é um dado novo na paisagem.
Nessa poética visual se manifesta a delicadeza da diversidade, sua capacidade de acolher o que é variável e diferente, o que é totalmente alheio, e de ser por, por um gesto de reflexão, no lugar de muitos outros. Uma sensibilidade que não se irrita e se torna violenta quando depara o que é estranho, mas se felicita com ele.
Contra essa diversificação, se ergueu a resistência robótica, reativa, uniformizada e indiferenciada, que chegou a despejar nas avenidas carregamentos em massa de indivíduos homogêneos. E barracas idênticas, cheirando a plástico novo, saídas dos bolsos da FIESP. Enfim, perfilou-se contra a variedade anárquica antigolpe uma massa pré-fabricada, que só aspira a expressar um espetáculo do igual, do idêntico e do costumeiro. O verde e amarelo, tradicionalmente vinculado a um espetáculo privado, o futebol monopólio da CBF, recebeu então uma consagração patriótica de marketing da Globo e se edificou como lugar de uma unidade fictícia de nação.
Essa apropriação da camisa da seleção desenhada pela CBF – entidade que, junto com a FIFA, há muito está no centro de escândalos de corrupção – para simular patriotismo e adornar um pretenso combate à corrupção, se denuncia a si mesma como falcatrua simbólica. A camuflagem com a camisa canarinho só serve para expressar a falácia nua e crua.
Esses cultores da semelhança e da uniformidade odeiam tudo que não é espelho. Uma classe social narcísica que só se relaciona ao que é diverso dela através do ódio. Não à-toa os crimes de ódio cresceram 84% durante o período eleitoral no segundo semestre de 2014. E de lá para cá só se multiplicam os ódios às mulheres, aos negros, aos gays, aos jovens das periferias, etc.
Basta ver as imagens do dia 13 de março, quando a direita foi à rua em massa e, como a mais fiel das suas imagens, o espetáculo fóssil que contemplamos na Avenida Paulista. A infinda repetição do idêntico, como sementes transgênicas espalhadas sobre o asfalto. Todas uniformemente verdes e amarelas. Todas se prostrando submissas e serviçais diante da grande Pirâmide de listras verdes e amarelas da FIESP. Uma classe social de adoradores fanáticos do poder.
O confronto entre democracia e golpe manifesta o contraste de duas possibilidades de ser e existir muito distintas: uma que tem sua força na geração de identidades que desafiam os padrões exclusivos (como o casal hétero desafiado pela diversidade sexual), e outra, a das massas (de manobra) que vestem-se uniformemente de verde e amarelo, anunciando com isso sua renúncia a exercer uma identidade divergente e, com esse fracasso, recuando para a fidelidade a identidade histórica do Brasil como um país forjado entre violências e desigualdades.
Por trás dessas massas, ditando seus desejos, não está propriamente o patriarcalismo mas um superpatriarcalismo descendente de senhores de escravos e caçadores de índios. Em conformidade com a história congelada brasileira, as mesmas elites que, por quatrocentos anos, viveram da escravidão, hoje vivem da corrupção. Estas, despois da Abolição em 1888, inspirados pelo ódio, criaram uma República – essa mesma que alimenta nossos pesadelos hoje – cuja única função era a de ser um fantoche de suas ambições.
Essa República, como aprendemos desde Os bestializados, de José Murilo de Carvalho, já em seus primeiros anos de existência, reduziu drasticamente o número de eleitores, aumentou imensamente a repressão policial, retirou dos lugares centrais da cidade os pobres e os negros e os jogou para as periferias. Aumentando em muito a carestia, tornou a vida insuportável para quase todos, e investiu no desejo alucinado de criar uma sociedade racialmente pura. Assim, foi todo o nosso século XX. Um pesadelo que se alternou entre ditaduras violentas, e períodos democráticos oscilantes no dorso de conspirações endêmicas.
Por baixo dessa incapacidade de estabelecer a paz civil, e a convivência harmônica, estava a luta permanente das oligarquias por mais e mais poder. Não podia deixar de ser diferente porque eram os próprios alicerces da Colônia que continuavam a dar as cartas: o latifúndio, a monocultura, a violência repressiva e a impunidade. Só a escravidão desapareceu, mas para dar lugar a algo quase tão ruim quanto: a exclusão do negro e sua reinscrição como o grande espantalho social. O negro que desde então, desde a belle époque brasileira, foi declarado feio, bruto, boçal e bandido.
Curiosamente os barões do café do Brasil dos anos iniciais da República, que foram os arquitetos da derrubada da Monarquia, eram meros garotos de recado da burguesia inglesa e francesa. Era o imperialismo que financiava e dirigia, pelos empréstimos, os negócios de café, do açúcar e do gado da nossa oligarquia dependente. Desprezados pelos europeus, seus senhores, as elites brancas brasileiras, se sentiam feias, brutas, boçais e bandidas. Buscando meios de compensação, impuseram aos negros e aos pobres que servissem como sua compensação total, sua desforra, frente à vergonha que sentiam aos “olhos dos estrangeiros”. Criaram inúmeros estigmas (preto safado, crioulo ladrão, mulato sabido, etc.) para esconderem os seus complexos e a sua inata inferioridade. Fixaram assim os contornos geométricos do seu mundo: assédio moral, violência simbólica e violência física.
Hoje, quando o mundo inteiro olha horrorizado para o que os bisnetos dessas elites estão fazendo com o Brasil, em que mais uma vez os pintam como ridículos caudilhos de repúblicas bananeiras, eles irão percorrer como sempre o caminho da compensação. Tentarão aumentar o assédio moral e a violência, simbólica e física, contra as classes desfavorecidas, para assim fabricarem espantalhos que sirvam para sua compensação. Embora o mundo inteiro aponte para eles e os chame de estúpidos, ladrões, vagabundos, parasitas eles tentarão como sempre o velho truque da transferência: os demônios são os outros.
Ao invadirem à UNB, ao atacarem os índios no Mato Grosso do Sul, ao fuzilarem os Sem Terras no Paraná e na Paraíba, e ao darem vivas ao Sérgio Moro, estão fazendo o que sempre fizeram.