A semiótica do golpe

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Análise Diária de Conjuntura – 17/06/2016

Hoje foi um dia de manchetes demolidoras para o governo Temer, mas não se iludam. A mídia brasileira voltou a ser profundamente chapa-branca e saberá dosar de maneira muito inteligente os escândalos, de maneira a não matar o paciente. A mídia morde fundo, até porque ela sabe que seu poder de arrancar dinheiro dos governos deriva de seu poder de letalidade. No caso do governo Temer, ela morde mas não tira pedaço. No máximo, derruba um ministro, outro aqui, mas não há aquele clima de guerra de fim de mundo. Seus colunistas não repetem, como fizeram com Lula e Dilma durante quase todo o tempo, que “o governo acabou”.

Um dos fatores mais importantes dessa derrota política diária que os governos do PT experimentavam na mídia era a total falta de compreensão sobre o que seja semiótica.

Um exemplo. A página Caneta Desmanipuladora, que faz análises desenhadas, comentou uma manchete no site do Jornal Nacional sobre as delações de Sergio Machado.

Comentário da Caneta:

Que? Qual o objetivo dessa manchete? Estamos incrédulos aqui… isso é inacreditável!

Nesta delação:

Renan Calheiros foi citado 106 vezes,
Sarney 52 vezes,
Aécio 40 vezes,
Temer 24 vezes

Nenhum desses nomes foi citado na manchete. Nem na chamada, nem no lead!

E a Dilma, o que tem a ver com isso?

Isso é semiótica! Você dá a informação, efetivamente, sobre a denúncia, mas a quantidade de mensagens subliminares enviadas faz com que, na mente do leitor, os efeitos sejam… especiais.

A semiótica se popularizou relativamente com Umberto Eco, mas a esquerda brasileira parece nunca ter se interessado pelo único assunto que poderia ter lhe salvado.

Sim, porque semiótica, em política, é uma arma, a principal arma, a única arma. Semiótica embute o uso de todos os signos: escrita, som, imagem, etc.

A semiótica de Lula era melhor do que Dilma por vários fatos: em primeiro lugar, o próprio Lula. Um político moderno precisa ser um ator. Há inclusive um livrinho do Arthur Miller, o famoso escritor e dramaturgo americano, publicado em 2001, intitulado On Politics and the Art of Acting, A Política e a Arte de Atuar.

Lula foi um ator. Dilma, não.

Por outro lado, após o golpe, Dilma passou a encarnar um conjunto de signos positivos, de resistência democrática, de vítima de uma conspiração que, efetivamente, aconteceu. A semiótica da presidenta melhorou muito, após o golpe, mas não sei se isso será suficiente para revertê-lo.

A principal dificuldade de se fazer uma análise está no fato de que raramente as forças políticas em disputa podem se dar ao luxo de planejar o passo seguinte. E isso porque há um elemento fundamental para se entender a dinâmica de qualquer processo político: os pequenos incidente e o acaso . Tocqueville, em Souvenirs, aborda a importância dos “acidentes secundários” que agem, contudo, sobre uma atmosfera fecundada pelas grandes causas.

É assim, creio eu, que se desenvolvem todas as crises políticas, inclusive a que estamos vivendo. Há conspirações, efetivamente, há interesses poderosos em jogo, inclusive geopolíticos, mas há também o caos, a sucessão de pequenos incidentes, provocados por um ambiente fortemente instável.[/s2If]

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Os golpistas fizeram a sua aposta, e ganharam: assaltaram o poder. Todo mundo sabe, porém, que manter o poder é muito mais difícil do que conquistá-lo, sobretudo quando o processo para tomá-lo é contestado e o governante tem sua legitimidade em xeque.

A mídia agora vive uma situação delicada, porque ela produziu um público viciado em escândalos, e criou, além disso, uma cumplicidade com alguns setores judiciais da qual não poderá se livrar tão facilmente.  O processo de transição, de um situação em que a imprensa é vista como uma necessária (do ponto-de-vista democrático) força de oposição, para uma outra, em que a mesma imprensa volta a ser o esteio social mais importante do governo, volta a ser uma imprensa essencialmente chapa-branca, precisa de um tempo para se completar.

Além disso, estamos vendo um processo de depuração interessante. Ao grande capital, principal patrocinador do golpe, os ratos que assaltaram o governo são vistos com imenso desprezo. O grande capitalista não precisa sujar as mãos no mundo sujo da política. Ele ganha seus milhões “honestamente”. Ele não é proprietário de contas no exterior. Ele é proprietários de bancos no exterior.

Ele não precisa de propinas. Ele é o pagador de propinas, e um pagador de má vontade, porque ele só paga propinas porque o politico assim o exige, tanto para consumo próprio quanto para pagar sua eleição. Mas isso é uma situação insegura para o capitalista. Ele correr grandes riscos, como inclusive ficou patente com a Lava Jato.

O sonho do grande capitalista – isso me parece evidente – é que o seu desejo se transforme em lei, e que os políticos se comportem como técnicos obedientes a uma ordem pre-estabelecida.

E assim o capitalismo brasileiro tenta uma transição interessante, de uma ordem política baseada na propina, em que os políticos barganham miudezas com a classe empresarial, para uma ordem política baseada no autoritarismo técnico, em que os políticos tenham muito mais afinidade orgânica e ideológica com o capital, e façam o seu serviço sujo de graça.

Por exemplo, os roubos identificados na Petrobrás, apesar dos valores monstruosos alardeados pela imprensa (e isso considerando que são verdadeiros, e não hipérboles midiáticas) não correspondem mais que alguns dias de faturamento da estatal. Já o roubo “legal” que a direita brasileira está prestes a fazer, ao mudar as leis e entregar o pré-sal às petroleiras internacionais, corresponderá a anos e anos de faturamento da Petrobrás. É uma perda incalculável, que inclusive não se mede apenas em dinheiro, mas em perda de soberania, em perda da capacidade social de tomar conta do próprio destino.

 

Mas essas coisas intangíveis, como soberania, são muito pouco valorizadas em tempos de crise.

Voltando as questões práticas: os escândalos do governo Temer são capazes de derrubar o governo e provocar a volta de Dilma Rousseff?

Sim, isso pode acontecer, mas aí a máquina de moer gente voltará suas energias para o governo e para qualquer força que ouse se aliar a Dilma.

Quanto a Temer, há boa vontade na mídia. A Globo quer segurar Temer, mas como fazer diante de um governo tão escandalosamente corrupto?

Na verdade, qual a importância real de Temer para o conjunto de forças políticas que patrocinaram o golpe?

Temer é apenas uma marionete num jogo brutal, que visa deixar o Brasil mais “barato”. O aumento do desemprego é uma bela melodia aos ouvidos da elite rentista, porque ele barateia o capital humano. Se não há empregos, o poder do empregador sobre a classe trabalhadora cresce muito! Existe um sadismo intrínseco ao capitalismo, porque o capital se torna um poder muito mais concreto, muito mais temível, quando ele se torna escasso. O capital se valoriza. E ganha um poder de vida e morte sobre o trabalhador.

Para triunfar, porém, o golpe precisa de uma vitória semiótica. Isso ele não conseguiu. A semiótica do golpe fracassou, mas isso é motivo para outra análise.

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Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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