A decisão de Teori Zavaski de entregar Lula em mãos de Sergio Moro, o carrasco da torre de Londres, tem uma ressonância bíblica.
Quero acreditar que Teori entende que Lula é uma liderança popular reconhecida aqui e lá fora, e que, portanto, o tenha feito de má vontade, “entristecido”, assim como Herodes ao ouvir Salomé pedindo a cabeça de João Batista.
Teori já se expressou acidamente sobre os métodos usados por Sergio Moro. Numa decisão sobre habeas corpus na Lava Jato, adjetivou o método de usar a prisão preventiva para extorquir delações, procedimento corriqueiro usado por Moro, de “medievalesco“.
Hoje, Teori voltou a pegar pesado com Sergio Moro, ao chamar o vazamento do áudio de Lula e Dilma de procedimento “ilegal”.
Entretanto, mesmo diante do crime de Sergio Moro, o que faz Herodes, digo, Teori?
Herodes não jurou atender a qualquer pedido de Salomé, mesmo que ela pedisse metade de seu reino?
Pois então: Salomé, a musa do golpe, pediu a cabeça de Lula.
O comportamento dos poderosos é sempre o mesmo.
Sergio Moro, em nossa paródia bíblica, seria a rancorosa Herodíades, mãe de Salomé? Foi ela, Herodíades, quem sugeriu à Salomé pedir ao rei a cabeça de João Batista.
Quando a cabeça de João Batista chega, trazida por um escravo, que a segura numa bandeja, Salomé a entrega à mãe.
A reportagem da Folha de São Paulo que descreve a decisão de Teori está repleta de pegadinhas golpistas.
O primeiro parágrafo revela como a Lava Jato virou um monstro descontrolado. Investigar Dilma, Lula, Cardozo, Mercadante por “obstrução da justiça”? Como é que é?
O que é “justiça”? É um conceito sobre o qual os procuradores e Sergio Moro têm monopólio?
Eu acho que a “obstrução da justiça” foi feita por esses procuradores, e eles é que deveriam ser investigados!
Junto com Sergio Moro, esses procuradores fazem todo o tipo de loucura, querem prender todo mundo, quebram nossas maiores empresas de engenharia, quebram nossa indústria de navegação, quebram a indústria de petróleo, conduzem coercitivamente (babaquice autoritária) o presidente Lula, o ministro Mantega, o jornalista Breno Altman, instalam o caos no país, grampeiam metade do Brasil, incluindo ministros do supremo, o ex-presidente, a presidenta, sequestram os emails do instituto Lula, quebram o sigilo telefônico do PT, vazam, vazam, vazam, como se não houvesse amanhã, e aí quando alguém fala que é preciso discutir esses métodos, eles criminalizam a pessoa dizendo que ela quer “impedir” as investigações?
“Herodes respeitava João”, e “entristeceu-se” com o pedido de Salomé; “todavia, por causa dos convivas, não quis recusar”.
Pois é, Teori sabe que Sergio Moro é “medievalesco”, sabe que os vazamentos dos áudios de Lula foram criminosos, mas quem pode recusar um pedido de Salomé, após a promessa feita diante de toda a opinião pública?
O golpe precisa seguir adiante. O roteiro precisa ser seguido ao pé da letra: e nele está escrito que Lula precisa ser preso, ou pelo menos neutralizado, porque de nada adianta derrubar Dilma se Lula continuar por aí, sendo uma liderança importante, articulando.
A gente pensa: com que base proibiram Lula de ser ministro? A tese da “obstrução de justiça” não cola porque Michel Temer nomeou sete ministros indiciados e não aconteceu nada: Sergio Moro não vazou nenhum áudio comprometedor desses ministros. Quer dizer, vazou sim, mais tarde, os áudios de Sergio Machado, aquelas pegadinhas armadas pela Lava Jato para pegar Renan, Sarney e Jucá, e mantê-los obedientes às diretrizes de quem manda à vera no golpe: Globo, USA, bancos e rentistas.
Hoje, ainda descobrimos, através do olhar atento do Marcelo Auler, que os vazamentos de uma delação que ainda nem ocorreu, a do Leo Pinheiro, contra Marina Silva, foram feitos pelos próprios procuradores da Lava Jato.
Aliás, a entrada de Marina Silva neste circo mostra como ele se pretende espetacular e completo.
Desde o início tem sido assim: os procuradores vazam a simples troca de ideias deles com os réus, para criar o clima de fait accumpli e usar a mídia como pressão contra eles, além, é claro, de manter a Lava Jato nas manchetes.
Os dois últimos parágrafos da reportagem da Folha, no trecho reproduzido acima, são pegadinhas do próprio jornal, que também é um agente importante no que já ficou bem claro ser uma grande conspiração – relativamente bem sucedida até aqui – para derrubar a presidenta Dilma. As expressões “Há ainda outros elementos”, “segundo alguns juristas”, não escondem a marca do golpismo barato de uma imprensa marrom.
Essa história do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para “libertar empreiteiro” é narrativa do golpe em estado puro. O ministro em questão é Navarro Dantas, um dos melhores ministros do STJ, o único ali não comprometido com o golpe, crítico aos arbítrios e excessos da Lava Jato.
Foi nomeado de maneira republicana pela presidenta Dilma para tentar assegurar a ordem jurídica no país. Infelizmente, chegou tarde. Dilma, seguindo o exemplo de Lula, já tinha abarrotado o STJ e o STF de golpistas.
Por algum tipo de estupidez cósmica, o PT indicou para as cortes superiores um monte de juízes profundamente antipetistas, ultraconservadores e golpistas.
Não se dá um golpe, afinal, sem ajuda do próprio governo o qual se quer golpear. Ao manter Cardozo como ministro da Justiça, Dilma ajudou a costurar o golpe. Por que? Ora, porque Cardozo só dava entrevista à TV Veja e não construiu uma maldita estratégia para rebater a narrativa golpista que vinha se avolumando desde o governo Lula.
Mas isso é História, com H maiúsculo. Quem quiser fatos explicadinhos, racionais, óbvios, do tipo: “PT indicou ministros então eles não podem ir contra o PT”, então deve continuar tentando entender a política através de notícias de jornal. Quem estuda história em livros sabe que ela é essencialmente contraditória. Pinochet era ministro do governo Allende – e indicado por Allende.
As batalhas políticas são vencidas por aqueles que melhor sabem explorar as contradições do adversário.
O PT ganhou várias batalhas com essa estratégia, mas perdeu uma das maiores de todas, que foi o golpe.
Por outro lado, a vitória golpista é tão cheia de contradições, possui tantas reverberações negativas – para os próprios golpistas -, que nem sei se podemos chamá-la de vitória.
Que espécie de vitória é esta, de Michel Temer, que ninguém comemora, e após a qual o governante que acaba de tomar posse precisa viver em estado de isolamento absoluto, por medo de escrachos públicos?
A historia se repete com uma constância quase previsível. Os donos do poder conspiram para derrubar lideranças populares. Prendem, cortam suas cabeças, esquartejam, enforcam, crucificam.
É sempre a mesma coisa.
O lado irônico é que eles nunca percebem que, ao agir assim, cegos por seu ódio político, eles dão o retoque final, heroico, mítico, à lenda das lideranças do povo.
Um heroi popular é, invariavelmente, perseguido, caluniado, preso e morto pelas elites que ele ousou desafiar. Ou, no caso de Lula, pelas elites com as quais ele ousou dialogar de maneira civilizada, tentando convencê-las a – em nome da estabilidade – ajudar o país a pagar a dívida social com o povo.
Lula tentou esse diálogo. Deu certo por um tempo, mas o preço, pelo visto, foi altíssimo: arriscou e comprometeu seu bem estar, sua liberdade, até mesmo sua segurança física, e de seus familiares, hoje todos ameaçados por um juiz midiático a serviço do golpe.
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Uma notícia boa, pelo menos: lembram daqueles quatro juízes do Rio de Janeiro, que estavam sendo alvo de um processo no Tribunal de Justiça do estado, por terem participado de uma manifestação antigolpe? O processo foi arquivado, graças ao Bom Senhor. Essas pequenas derrotas do golpe ainda não perfazem uma luz no fim do túnel, mas talvez possamos compará-las a vagalumes na escuridão.
A ilustração que abre o post é uma pintura de Caravaggio. É de 1607 e está exposta no National Gallery, em Londres.