Foto: Richard Santos
por Rogerio Dultra dos Santos
Nos últimos dias uma das mais fortes pré-candidatas à prefeitura do Rio de Janeiro, parlamentar das mais aguerridas e consistentes na luta contra o golpe no Brasil, a Deputada Federal Jandira Feghali (PcdoB) sofreu um ataque covarde das organizações Globo. Uma série de insinuações sem fundamento foram feitas, no sentido de que o financiamento de suas campanhas eleitorais anteriores teriam sido fruto de “captação” de Sérgio Machado, Ex-Diretor da Transpetro, junto às empreiteiras acusadas tempos depois na “Operação Lava-jato”.
Em termos jurídicos, o financiamento de campanha registrado no TSE, dentro da lei, é absolutamente normal e legal. O óbvio hoje deve ser dito: a notícia não significa absolutamente nada juridicamente.
Em termos políticos, a questão adquire outra dimensão: o que foi pautado, no fundo e na verdade, foi a difamação da figura pública de Feghali. Assim como acontece e aconteceu com Lula, Dilma, Jacques Wagner, etc., etc., etc.
A construção da articulada narrativa das reportagens escritas e televisionadas dá a entender que algo de muito errado aconteceu. Houve crime? Ninguém afirma diretamente. Mas a sugestão fica no ar. A citação de escutas, gravações, “lava-jato”, tudo fora de contexto temporal, cria o “ambiente” para uma compreensão distorcida. Ilações se sobrepõem a conjecturas, associações entre indivíduos com imagem negativa e apresentação de gráficos com contas regulares de campanha, tudo se transforma no mote para que se crie um verdadeiro “escândalo” do nada.
O resultado é que uma ficção disseminada de forma irresponsável e covarde tem o poder de criminalizar intantaneamente uma liderança política forjada por décadas de trabalho sério.
Seria este apenas mais um exemplo do movimento de nossa imprensa em direção à destruição do Estado de Direito, caminho retilíneo para a ditadura?
Durante os últimos anos, os meios hegemônicos de comunicação acreditaram que criticar a esquerda, distorcer informações econômicas, ignorar ou mesmo esconder a existência de grandes obras de infra-estrutura de seus governos era suficiente para a sua desarticulação. Não adiantou.
Como o poder da mídia é grande, mas não infinito e, diante de um conjunto de batalhas perdidas, a estratégia para superar as sucessivas derrotas – eleitorais, inclusive – foi associar-se com novos aliados. Houve, então, uma aproximação, por afinidade eletiva, entre os donos da comunicação de massa no Brasil e setores reacionários do Poder Judiciário.
Desde a Constituição de 1988 acantonados pela pluralidade democrática, estes setores reativos da justiça sentiram-se autorizados a colocar as suas pautas inconstitucionais e o seu modus operandi autoritário em funcionamento.
O sistema de justiça – especialmente o sistema de justiça criminal – sempre obrou seletivamente contra as classes subalternas. Negros, pobres, marginalizados foram historicamente o alvo preferencial da atividade repressiva do Estado.
Esta máquina de moer gente – na feliz descrição da jurista Camila Prando –, um conjunto de instituições que nunca se preocupou com a reputação de acusados, investigados e réus, voltou seu foco para a criminalização da esquerda.
A criminalização é um conceito que merece ser reformulado. Não é a simples acusação judicial, ou a imputação de um delito em processo criminal. A partir da operação conjunta entre mídia e sistema de justiça, criminalizar é atuar institucionalmente para rotular indivíduos como criminosos, independentemente de sua culpa e sem a necessidade da existência de investigação ou processo.
Normalmente, no fim de um processo judicial um sujeito qualquer pode ser considerado responsável por um crime. Criminalizar, hoje, não é mais somente isto. Na situação política atual, criminalizar é, independente do processo judicial – ele existindo ou não – fazer crer que há crime e que determinado indivíduo é criminoso. Hoje, no Brasil, a criminalização independe de seus pressupostos jurídicos tradicionais, como violação da lei, investigação policial, processo, formação judicial de culpa ou sentença condenatória.
A simples exposição de alguém nos mass media como suspeito de ter feito algo considerado errado é suficiente para criminalizá-lo. E quando digo “suspeito de ter feito algo considerado errado” não estou falando da acusação relativa a um ato criminoso, prevista na legislação penal.
A rigor, a criminalização midiática não é orientada ou limitada pelo marco legal. Isto significa que para este novo paradigma de criminalização, não interessa mais se alguém cometeu ou poderia ter cometido um crime. Basta, apenas, o desejo de criminalizar. A partir desta decisão, que comporta um – de novo – óbvio componente político, é suficiente insinuar que ele ou ela fez algo reprovável na perspectiva de quem realiza a narrativa.
A criminalização se produz fora de parámetros que possam ser controlados publicamente. É a decisão de gabinete do editor, pelos motivos que só ele precisa saber, que indica quem deve ser jogado aos leões. A criminalização opera, nesse sentido, a partir de um paradigma de moralidade bastante específico e que não é compartilhado por todos – pois, se o fosse, poderia facilmente transformar-se em norma jurídica. A criminalização é uma decisão privada de quem detém os meios de comunicação e não a resultante de um processo público guiado por normas republicanamente produzidas.
É a notícia de tv, a reportagem da revista, a manchete de jornal que acusam, julgam e condenam, de forma instantênea, quem quer que se deseje criminalizar, pelo motivo que for. A aproximação estratégica de setores do Poder Judiciário com a grande mídia operou um deslocamento simbólico do poder de dizer o direito. Não só a autoridade do Legislativo foi suplantada pelo código enviesado inventado pelos media, como a caneta dos juízes perdeu a autoridade exclusiva de “jurisdição”e, no lugar das sentenças e do processo, a decisão que criminaliza foi transferida para os microfones e para os holofotes.
Então, duas alterações profundas operaram na democracia e no direito brasileiros. Em primeiro lugar, relativizou-se o primado da lei, a ideia segundo a qual alguém só pode sofrer persecução criminal por ter realizado uma ação descrita expressamente como crime pela legislação. A narrativa retórica substitui a descrição legal. A propaganda substitui a norma constitucional.
Em segundo lugar, o judiciário perdeu a exclusividade e o controle sobre o processo criminal que, de um procedimento complexo e burocrático, transformou-se em um acontecimento instantâneo e midiático. A mídia controla os efeitos do processo e substitui o judiciário.
Nas ditaduras, se sabe, as instituições de justiça são meros instrumentos do arbítrio. Ficam subordinadas ao poder de fato, que se exerce e se garante – inclusive, pelo próprio judiciário – através da violência. Na ditadura, o arbítrio substitui a justiça. E a política deixa de ser um espaço de disputa e se dissolve na propaganda. Na ditadura, os políticos são substituídos pela banalidade burocrática do mal.
Rasgada a Constituição pelo golpe, o passo seguinte e em franca operação é a destruição de todas as lideranças de esquerda – na verdade, de todos que não se submetam bovinamente ao regime – pelo processo de criminalização intantâneo dos meios de comunicação. A democracia foi embora e foi com a conivência ativa de setores do judiciário. O que acontece com a Jandira Feghali é apenas um dentre muitos casos que irão se acumular nestes tempos sombrios e temerários.