Não tem arrego: correndo perigo com Arto Lindsay

Foto: Renan Barbosa

Por Bernardo Oliveira*, editor de música do Cafezinho

No último sábado, 04/06, como parte da Ocupação Audio Rebel/Quintavant participei de uma conversa com o multiartista Arto Lindsay. O espaço escolhido para a Ocupação foi a antiga “biblioteca do Brizola”, atualmente conhecida como Biblioteca Parque Estadual, um espaço público situado em frente à Central do Brasil e ao lado do Campo de Santana. A aposta de Brizola se justifica por motivos evidentes: uma biblioteca estrategicamente posicionada para favorecer o afluxo de trabalhadores que transitam em tempo integral pela região. Uma iniciativa complementar a dos CIEPS, mas também uma experiência radical, uma aposta de alto risco, uma experimentação. Livros acessíveis para o povo trabalhador da periferia. Que estivéssemos ali para conversar sobre a carreira de um dos artistas mais influentes da música radical contemporânea, despertou em mim aquela sensação muito corriqueira que nos desobriga de justificativas conceituais e comunicacionais. Desconcertado, percebi que entre as obras de Brizola e Arto Lindsay havia mais relações do que eu poderia supor.

Nascido em Richmond na Virgínia, Arto Lindsay passou a infância e parte da adolescência em Garanhuns (PE). De volta aos EUA, desta vez para Nova York, tornou-se ponta de lança da No Wave, espécie de contramovimento multimídia que investia no niilismo e no poder transgressor da arte contra tudo e contra todos. Uma radicalização contra a arregimentação do movimento punk, expatriado e comercializado pelo oportunismo sagaz de Malcolm McLaren. Com as imagens da música brasileira na cabeça, particularmente do Tropicalismo, Arto inicia assim uma carreira vertiginosa, transitando entre diversas meios e mídias, apostando em projetos pessoais como o Ambitious Lovers, participando de empreitadas singulares como o jazz do Golden Palominos e do Lounge Lizards, colaborando com Matthew Barney ou (re)inventando artistas brasileiros como Caetano Veloso, Marisa Monte, Carlinhos Brown e Nação Zumbi, entre muitos outros. Esta é contudo, de forma bem tosca e incompleta, sua “biografia oficial”. Sobre ela já conversamos em algumas situações, entre os quais vale destacar este registro para a Revista Polivox em 2014.

Desta vez, tomei como ponto de partida a expressão “Correndo perigo”, ideia que batizou o encontro, além da vontade de conversar sobre seus trabalhos nos últimos anos. E o resultado foi, como sempre, positivamente caótico. Outros tantos assuntos atravessaram a pauta, e a conversa transitou por entre os dilemas sombrios que cercam o futuro do planeta, a nova “arte política”, a colaboração com Paal Nilssen-Love e Luís Filipe de Lima, o funk de MC Bin Laden, o paisagismo de Burle Marx, a vanguarda da tradição e a tradição da vanguarda, a técnica do improviso e os perigos reais e imaginários que rondam a atividade musical. Falamos também sobre seu novo álbum, que acaba de ser gravado e tem lançamento previsto para outubro deste ano.

Contei com a colaboração de Pérola Mathias, que transcreveu toda a conversa e fez observações pertinentes. Pérola faz doutorado na Sociologia do IFCS/UFRJ sobre “as transformações na música brasileira contemporânea, pensando o trânsito entre ritmos, estilos e linguagens.” Segundo ela, Arto Lindsay é problematizado como “um (multi)artista que me faz entrar em diversos meandros sobre a discussão sobre a musica na sociologia, desde a canção e sua consolidação e ‘auge’ com a MPB dos anos 1960 e o começo de sua fragmentação com o tropicalismo, até a questão mais contemporânea de diálogo com as artes plásticas, a performance, a musica experimental.” No que diz respeito à questão da canção, ela lembra que quando o Ambitious Lovers gravaram a música “Contrariar Você”, Paulinho da Viola, compositor da canção, declarou: “Nada perde sentido com o tempo, tudo é relativo. O Ambitious Lovers, quando se interessa pelo meu samba, está dando um novo sentido para uma música antiga… Esta iniciativa pode resultar numa coisa maior, em valores múltiplos, num estágio de coexistência de linguagens e é normal que a arte, que é multifacetada, saia na frente”.

Agradeço à Pérola Mathias pela transcrição e comentários; a Renan Barbosa pelas fotos; à Mariana Mansur pelo tratamento das imagens; e a Pedro Azevedo e João Paulo “Binos” pela produção.

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Bernardo Oliveira: A ideia inicial era, em primeiro lugar, não fazer aquele tipo de conversa que a gente já fez algumas vezes: “ah, vamos lá voltar para sua experiência brasileira e falar do DNA”. Eu queria abordar esses anos mais recentes. E, vinculado a esta vontade, um ponto de partida seria aquilo que te expliquei mais ou menos e que está representado no título da conversa, “Correndo perigo”. Falamos muito em música experimental, e eu fui tentar entender o que era esse “experimental” na cultura do século XX. E por uma espécie de vício acadêmico, acabei buscando primeiro a etimologia das palavras, que é um vício analítico, né? Fui buscar na palavra “experiência” a base, o fundamento da ideia de experimental e descobri que na palavra experiência você tem a palavra em latim experiri.

Arto Lindsay: Que é o “expelir”…

BO: …que tem a ver com um tipo de…

AL: …de cuspe! (risos)

BO: Porque tem a palavra ex, que é estranho, exílio, transe. Tem o per, de percurso, de trajetória, de trajeto, quer dizer, lançar-se a uma experiência estranha, uma experiência com a qual você não tem nenhuma relação, o desconhecido, basicamente. E tem o periri, que vem do periculum, o perigo.

AL: Engraçado, porque para na palavra “experimental” isso faz sentido. O percurso para fora, onde você vai correr perigo. Mas engraçado que também serve para a palavra experiência, como se toda experiência fosse de alguma forma experimental. Você corre perigo, uma viagem pra fora…

BO: No entanto, quando a gente fala de experiência, geralmente temos duas ideias que não tem muito a ver com o perigo. A primeira é quando dizemos que uma pessoa é experiente, quer dizer, uma pessoa que acumulou determinados conhecimentos, que é capaz, portanto, de repeti-los. Então, quando a gente vai buscar na etimologia, a experiência tem a ver com a segurança daquele que sabe, que já experimentou determinadas coisas e que é capaz de repeti-las. É outro sentido, diferente daquele no qual experiência significa correr perigo, expor-se ao perigo, expor-se à prova.

AL: É como se fosse o oposto.

BO: É! E aí quando eu pensei nessa conversa, falei para mim mesmo: “pô, mas esse é o Arto Lindsay, né?”

AL: O contrário de que?

BO: Do cara que explora a zona de conforto. É o cara que se posiciona o tempo todo excêntrico à sua zona de conforto, àquele ambiente no qual ele se estabelece, se consolida como artista e tal. E, de repente, o Arto Lindsay é esse artista sempre disposto a correr perigo. O que você acha disso?

AL: Olha, nem sempre por escolha própria. (risos) É engraçado, você falou do século XX: não é difícil traçar um caminho pela história da arte do século XX usando esse conceito de “experiência”. Mas fica mais difícil hoje em dia, no século XXI, entendeu? Porque aquilo que era experimental agora já é histórico, de alguma forma. Então, o que seria experimental hoje em dia? É bem mais difícil de perceber e de pensar. Por várias razões meio óbvias, tinha um bocado de regras que davam tesão de quebrar, era proveitoso quebrar as regras e as formas artísticas, né? Então, em todas as artes isso ocorreu. No século XX: arte abstrata, música serial, depois música do acaso, o som além da música escrita, não é isso? Mas chegamos em um lugar em que aquela música, esses estilos de ruptura já estão, não vou dizer calcificados, mas já estão estabelecidos. Então, como seria hoje em dia uma arte experimental? E aí tem a ver com outras coisas, o próprio sistema econômico mundial que consegue absorver tão facilmente qualquer demonstração radical, qualquer vontade de radicalidade. E também a maneira como a mídia, nossa relação com a mídia que é muito mais íntima, mas não sei se é essencialmente diferente. Não sei se a revolução da informática é essencialmente diferente da revolução da imprensa, livros impressos… Ou da gravação, eletricidade e todas essas coisas. Não sei se é essencialmente diferente, mas sei que é diferente.

Esta arte de ruptura do século XX pressupunha o progresso, pressupunha a ideia que as coisas iam melhorar. Pressupunha também uma vontade de conhecer o futuro. De criar um futuro maior, melhor. Mas hoje em dia as pessoas têm medo do futuro (e com razão), e isso também influi no que nós podemos construir como arte experimental. Porque as pessoas não sabem se querem viver aquele futuro que parece inevitável, de menos conforto, de mais enchentes, porque isso é inevitável. E esse modo de vida construído nos países mais prósperos não pode durar. Não é somente o fato de que ela não pode se espalhar para o mundo inteiro, mas é que não vai durar para ninguém. Então as pessoas estão meio com receio de pensar nisso. E como é que a gente vai pensar uma arte que não só reflita — reflita? Reflita rima com aflita (risos) — esse momento, mas também que apresente, que compartilhe algum prazer e incentive a vontade melhorar as coisas, de andar para frente, de continuar procurando alguma coisa nova?

BO: Essa exposição ao perigo, que caracterizaria a arte experimental do século XX, mesmo diante dessa paralisia, diante da ruptura, enfim, essa condição permanece? Ela talvez não seja progressiva, no sentido de que você precisa romper com as linguagens anteriores num processo supostamente evolutivo. Você pode abrir mão da ideia de evolução, de ruptura, mas se a gente for pensar numa arte experimental hoje, ela ainda é uma arte de exposição ao perigo.

AL: Não sei, porque a gente fala de século XX como se fosse bacana e tranquilo, não é? Bomba atômica, primeira guerra, segunda guerra… Todos os resquícios, resultados do colonialismo… é engraçado, né? É como se no século XX nós enfrentássemos o mal que existe nas pessoas. A gente vê a figura emblemática do Hitler, a bomba atômica que pode acabar com tudo, e agora percebemos que erramos noutro quesito, que é o meio ambiente, sabe? Que nessa empreitada de dominar a natureza nós acabamos ferindo o lugar onde moramos de uma maneira que pode ser irreversível.

BO: A grande ruptura hoje, então, é com o modelo, não só com o modelo econômico, mas com todos os modos de vida relacionados a esse modelo. Com os modos de vida que, querendo ou não, a gente acabou celebrando e consolidando, mesmo dentro das ideologias socialistas, anarquistas… A própria ideia de um modelo de vida minimamente aceitável e passível de ser vivido, remonta a um modelo identificado com a classe média, de necessidades básicas plenas, com acesso a todo tipo de conhecimento, com liberdade de dizer as coisas e conviver nos antagonismos. Quer dizer, tem aí um dado contraditório, porque talvez esse excedente, esse efeito “colateral”, que seria a destruição acelerada do meio ambiente, e ao mesmo tempo é esse modelo que vai abrir perspectiva para uma arte de vanguarda.

Arto Lindsay e Chinese Cookie Poets. Foto: Renan Barbosa

AL: Acho que a arte hoje em dia, seja de vanguarda, seja o que for, não pode esconder a realidade. Mas ela também tem o dever de nos proporcionar uma alegria física, e também demonstrar que tudo pode mudar a qualquer momento, tudo pode acontecer. O que é super importante. A pessoa precisa equilibrar muitas coisas: a necessidade da imaginação sair longe daqui, mas também a irresponsabilidade desta atitude em alguns momentos.

BO: Será que a arte hoje, então, não pressupõe a sua própria autodestruição ou uma reconfiguração disso que a gente entende como expressão artística, no sentido de que hoje ela tem que trabalhar não somente do campo dos problemas próprios da arte, mas se tornar política efetivamente? Como sendo não uma arte que faz política ou que reivindica política, mas que seja política por si só porque ela questiona todo o ambiente no qual ela é produzida. Quer dizer, o que eu quero saber é o seguinte, hoje é possível a gente pensar um movimento artístico de ruptura no plano, por exemplo, na disputa pela imaginação publica, pela imaginação política?

AL: A arte sempre teve uma dimensão política. Nos momentos de pressão, em que as pessoas sentem a dificuldade da vida social, da continuação da civilização, a arte pode ser mais necessária do que em outros momentos. Agora, há maneiras e maneiras de fazer isso. Tem artistas que trabalham com questões públicas e tem artistas que demonstram, pela maneira de fazer, possíveis soluções, mesmo não se dirigindo diretamente a questões políticas e públicas. E existe também artistas que preferem fotografar flores e também se manifestar em comícios, sabe? Exercem a cidadania em separado da arte. Eu acho que não existe uma regra para isso.

BO: Uma questão que a gente pode pensar em relação a arte do século XXI, uma pergunta, você que é um artista das fronteiras, que não trabalha só na música, que teve relações com o Vito Aconcci, Matthew Barney, enfim, será que uma dessas ideias da arte do século XXI não é justamente a abolição da própria ideia de um campo autossuficiente — por exemplo, a gente fala “cinema”, a gente fala “música” — será que estas classificações não estariam se degenerando, se reconfigurando, e isto não caracterizaria uma estética experimental do século XXI?

AL: Eu acho que não é de hoje. As duas coisas sempre são interessantes, a fronteira, a mistura entre uma arte e outra, um artista que pratica vários tipos de arte durante a vida. Você ver a arte do ponto de vista do outro. Um exemplo, o Júlio Bressane, é um mestre disso. De ver o cinema do ponto de vista da música ou da poesia. Agora, cada arte em si, sendo essencialmente sobre ou se fechando em seu próprio assunto, não deixa nunca de ser interessante. Um livro que tem aquele mesmo assunto, o crescimento de um jovem, aquela pessoa que chega à idade da razão e não aguenta, isso não deixa nunca de ser interessante. Um triângulo amoroso, uma tragédia em família, todas essas coisas nunca deixam de ser interessantes. São temas recorrentes. Esse é todo um outro papo, o universal e o particular, a identidade…

BO: Vou conectar então esse assunto com a sua produção mais recente, que seria a ideia inicial do debate. E aí, obviamente, me vem logo à cabeça o seu trabalho com o Paal Nilseen-Love, o baterista anglo-norueguês. Eu assisti a algumas apresentações suas ao longo da vida, e quando vi você tocando com o Paal senti que foi liberada ali uma energia ligada à essa ideia de improviso. E eu nunca tinha visto um baterista tão criativo e fisicamente disposto como o Paal, um cara que onde toca, dita o ritmo. E, de repente, você estava ali em cima dele e, pela primeira vez, eu vi o Paal ser guiado. Ele respondeu à altura, e você cortou por cima. Quer dizer, um jogo de forças imprevisível, uma disputa na qual ambos saem ganhando e perdendo simultaneamente. E isso está ligado com uma das ideias mais comuns na arte do século XXI, que é a ideia de que o experimental pode ser conectado com o improviso, com a experiência em curso, com a valorização do percurso.

AL: Com certeza. E o improviso é uma ciência, não é? Quer dizer, uma técnica — ciência não, ciência é pretensioso. É mais uma dessas contradições: a experiência ajuda a gente a manter o frescor. Tem muitas vezes que os mais velhos são mais livres do que os jovens no improviso. O que é uma coisa paradoxal, mas a gente vai aprendendo a se soltar, sabe? A gente vai aprendendo a não se repetir, a escutar o outro mais do que a si próprio. Por exemplo, tem a questão dos músicos prodígios. A música e a matemática são campos onde existem os prodígios. Tem esse menino de jazz agora, esqueço o nome dele [Joey Alexander], que não tem nem 11 anos — talvez eu esteja exagerando, 12, 13 anos — da Indonésia, que toca jazz como qualquer um. É muito, muito bom! É um Herbie Hancock, um Chick Corea. É um mestrezão! E isso é interessante, porque geralmente estes prodígios tocam música clássica. E aí é mais fácil a gente entender como é que uma pessoa sem experiência nenhuma entende a complexidade da música, entendeu? Quantos fatores você precisa equilibrar para que saia bem feito.

BO: Que dinâmicas, que articulações são essas?

AL: As dinâmicas e as estruturas da música. Porque a estrutura da música vai de compasso em compasso, vai de sessão em sessão, de refrão em refrão, de tema em tema, digamos assim. E vai a peça inteira junto. E quando você está tocando você tem que ficar com essas três dimensões, pelo menos essas, e o emocional, e o histórico, e o instrumento, e a sala, sabe? Tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. E chegar um menino ali e comandar aquilo é notável.

O improviso é um aprendizado constante, porque é muito fácil você ficar viciado e repetir seus gestos, suas maneiras de relacionar com os outros músicos. É tão fácil você fazer uma música improvisada chata, sem originalidade, sem beleza, sem pegada, como você fazer uma canção sertaneja, chata, sem originalidade, etc. A forma, por ser experimental, não garante nada.

BO: Você quer falar um pouco sobre esse encontro com o Paal? Acho que rolou um encontro entre vocês, um encontro musical, sonoro. Que ficou muito evidente da terceira vez que vocês tocaram na Rebel, que aí já não era mais aquela coisa do estudo, da observação. Vocês estavam se estudando, gravamos o disco [Scarcity, PNL, 2013], saiu. Vocês foram lançar o disco, e, quando subiram no palco depois de já terem tocado outras vezes, mudou completamente a relação. Foram elaborando estruturas, não exatamente padrões que repetiriam, mas foram desenrolando alguns também alguns dispositivos, linhas de fuga. Já estava muito diferente do Scarcity. E aí quando vocês foram pela terceira vez, que foi com o Thiago França e o Kiko Dinucci, que só vocês dois tocaram por aproximadamente 4 minutos, foi o momento de maior intensidade que eu vi da relação. Quer dizer, eu fui acompanhando a evolução e percebi vocês foram construindo alguma coisa ali bem forte.

AL: Paal tem aquela força, parece uma força da natureza, irrefreável. Ele parece um trem, entendeu? Aquela força mecânica enorme. Mas ele é muito… não é que ele é delicado, mas ele tem ouvido muito apurado. E quando você falou que eu construí um diálogo com ele, é porque ele realmente escuta. Enquanto ele faz aquilo tudo, ele mantém os ouvidos bem abertos. O processo de improvisar com outras pessoas, em duo ou em grupo, é uma coisa que depende do acaso, do dia, do que você jantou, da sala, das pessoas que estão ali, do cansaço. Mas é também uma questão de percurso. Inevitavelmente tem shows fracos. Tocamos numa cidade linda na Noruega, Bergen, e o show foi péssimo. A gente não conseguiu se acertar, mas isso faz parte do improviso. Falhar é inevitável, mas isso faz parte de todas as artes…

Arto Lindsay & Paal Nilssen-Love from Unseen Recordings on Vimeo

BO: Aí vem uma outra faceta também que eu conheci há pouco tempo, de uns três anos para cá, que é o teu trabalho com o Luís Filipe, que é um trabalho de, sei lá, vou oferecer aqui uma tentativa de interpretação: de desgaste, de desorientação, de manipulação radical dos materiais que compõem o cancioneiro brasileiro. Faz sentido? Alguma coisa do Al Green e tal, mas basicamente é um modelo João Gilbertiano de torção da canção. É um trabalho assim, mas você faz de uma maneira que soa nova, que você está experimentando agora.

AL: Eu comecei tocando guitarra do mesmo jeito que eu toco hoje, recusando a harmonia, certo? E eu cantava de uma maneira forte, “blueseada”, meio natural para qualquer norte-americano. Um rock, com influências basicamente do blues, que é natural para a gente, para qualquer músico que escutou rock, jazz e soul, essas coisas. Depois eu quis aprender a cantar diferente, eu comecei a escutar discos do Noel Rosa e tentar imitar isso. Mas, agora mesmo, depois de tanto tempo de ter feito isso, eu continuo sendo um cantor principiante, um estudante do canto. Não tenho a voz forte, mas eu amo, adoro cantar. Me faz um bem incrível e eu sinto também que eu comunico. Então, tem um lado de aprendizagem constante nessa minha tentativa de cantar música de outras pessoas.

E tem essa ideia de procurar um ponto em comum, algo em comum, entre a forma estabelecida e as variações possíveis dentro dela. E também uma música mais disforme, onde você não pode prever a harmonia. Você pode prever o ritmo, mas não pode prever a harmonia porque o instrumento está desafinado e a minha técnica é bem limitada. Eu gosto de procurar uma maneira de juntar simultaneamente, de forma prazerosa, uma coisa melódica, com harmonia rica, e aquela outra coisa que a gente faz, que é barulho. E eu gosto de procurar uma ‘facilidade’ entre as duas coisas. E aí é claro que eu brinco com os significados das duas coisas. Porque o barulho pode ser alicerce rítmico, pode ser textura, pode ser uma paródia da música. Eu faço os mesmos gestos, os mesmos caminhos, subo e desço no braço da guitarra, como um guitarrista normal, só que completamente desafinado. Então é uma espécie de paródia. Isso talvez seja o mais irritante para os amantes da guitarra. Mas essas são as ideias que eu consegui ter sobre o assunto. Eu tenho fé de que tem mais ideias ai dentro e que eu não cheguei ainda, ou que não sou eu o cara que vai entender aquilo. Mas eu sinto força naquilo ainda, sabe? Eu vejo que é uma coisa que eu faço desde o início dos anos 80, tocando minha guitarra, cantando músicas de Noel.

Eu fiz várias coisas desse tipo em Nova York muitos e muitos anos atrás. Tinha um amigo, Tony Nogueira, que morava lá, e eu toquei com os brasileiros exilados. Tinha o New York Samba Band nessa época, ele no surdo tocando o samba e eu na guitarra cantando aquelas músicas. Então é uma coisa que eu estou investido há muito tempo. Tem muitas pessoas que fazem isso, o Arnaldo Antunes, sabe? Muitas pessoas se interessam na junção da canção com o ruído. Caetano, a própria Marisa Monte, agora, que fez um show chamado Samba Noise, que eram os craques do samba e um time de noise junto. Então, existe uma tentativa de muita gente de unir, de achar uma maneira, não sei… As coisas se atraem… A canção atrai o barulho, o barulho atrai a canção de alguma forma.

BO: Não sei se é só uma questão de barulho, ruído, mas uma desconfiguração mesmo da forma da canção. Por exemplo, quando você canta “Alegria”, é como se Alegria fosse uma máquina que você desmonta e remonta. Quando você canta “Maneiras” [composição de Silvio da Silva, gravada por Zeca Pagodinho] e grita na parte em diz “Nem que eu tivesse fumado!” [eu grito]

AL: Como que é, faz de novo. (risos)

BO: Quer dizer, tem essa linearidade na música brasileira, que é comum porque você tem que expressar a forma da canção. Pode até desconfigurar como o João Gilberto faz, refazer harmonia, atrasar, adiantar, mas a forma de apresentação é linear. O que você faz um pouco é tirar essa linearidade…

AL: Bem, isso é uma técnica do improviso de jazz, entendeu? Dizem que a música clássica, quando escrita, foi escrita como base de improvisação, que os caras variavam muito em cima daquilo. Depois, no final do século XIX, século XX, as pessoas começaram a querer reproduzir a intenção do compositor. Mas que no início, durante várias épocas, a música clássica também era muito improvisada.

E existem muitos tipos de improviso que a gente pode importar para, por exemplo, essa junção da canção brasileira com esse improviso, esse barulho. A música indiana, por exemplo. Algumas formas da música carnática são feita para variação, feita para ser improvisada. São temas sobre os quais você improvisa. E a forma dela é muita linda, é uma coisa que seria legal até a gente fazer com o Chinese Cookie Poets [trio carioca com o qual Arto tocou à noite nesse mesmo dia]. Toca-se o tema e depois vem o solo com aquelas notas. Você faz o improviso onde você pode incluir mais notas, mas aquelas notas originais têm que ser as notas com mais ênfase.

Então, o jazz também passou por isso, né? Em um momento o improviso era basicamente melódico. São técnicas de improviso. Hoje em dia tem aquele cara, Vijay Iyer, músico americano, de ascendência indiana, professor de Harvard. Ele ensina improviso e tem o currículo de curso que ele elaborou para ensinar improviso. É incrível. O improviso é uma coisa acadêmica, ele ensina improviso lá, entendeu? Então, já é uma coisa que você pode tirar um mestrado em improviso. (risos)

ARTO Lindsay, “Maneiras” (Silvio da Silva). Sala Sidney Miller, 2015. Registro e câmera: Paula Gaitán from ARUAC PRODUCOES on Vimeo.

BO: Falando sobre o funk carioca, me lembrei aqui: você me apresentou Nego do Borel.

AL: Eu?

BO: Foi, há uns três anos atrás, Nego do Borel não era conhecido ainda.

AL: Não, foi Hermano, na época daquele evento lá no MAM. [Ilha Praça, evento produzido por Arto com curadoria de Simon Castets e Hans Ulrich Obrist]. Eu gosto de funk, eu gosto de novidade. Ainda sou da geração “novidade” (risos), ainda quero saber o que está rolando aí e gosto de muita coisa. Acho que sempre tem coisas interessantes. E também adoro funk e o momento… eu adoro também esse processo também de globalização. Não é exatamente isso, mas você vê, o Bin Laden, o primeiro vídeo dele que assisti, que foi feito na laje daquela produtora dele em São Paulo, com aqueles meninos fazendo beatbox e aquele Mc Brinquedo completamente fora… Vocês já viram esse vídeo?

BO: Sim, o “Passinho do Faraó”, genial.

AL: Isso, eles ficam [imita o som], exatamente como eu estou fazendo. Aí tem um menino, esse MC Brinquedo, que está quieto e depois faz [barulho], uma coisa muito livre, muito lúdica, muito bom! Depois ele emplacou com essa música “Tá tranquilo, tá favorável” e refez esse vídeo do “Passinho do Faraó” com produção, com todo mundo vestido de egípcio, ainda meio mambembe, mas dá pra ver que gastaram um dinheiro. Aí outro dia, só para falar do Mc Bin Laden, que eu acho fascinante, eu vi o reality dele. Ele é muito gordo, flácido, sabe? Ele não é um gordo forte. E fez uma dieta, um reality, perdeu 8kg. Uma coisa de maluco! Aquela mesa dividida no meio, a comida de antes e a comida de agora: batata frita versus salada. E os médicos todos “Muito bem, Bin Laden”. E ele dizendo que estava gostando, que prefere carne branca agora, muito mais do carne vermelha. Umas coisas assim, surreais. E um menino da periferia de São Paulo, ele com a mesma roupa de sempre, só anda com aquele bermudão e chinelo havaiana, não mudou nada, mas está mais bonito, né? Virando celebridade a pessoa fica mais bonita, com certeza.

BO: Então, comecei perguntando isso por causa dessa possível colaboração com o Omulu [Antônio Antmaper, produtor de funk carioca]. Vocês se encontraram em Nova York, né? Fizeram o Arrastão lá? [Arrastão é o selo e a festa que Antônio criou ]

AL: Não, infelizmente não consegui ir ao show dele, mas soube que foi muito bom. Mas, então, a gente está se namorando, acho que vai rolar alguma coisa. Eu gosto de tocar com DJs.

BO: Você já tocou com o DJ Spooky, né?

AL: Toquei com o Spooky já, várias vezes. Toquei com um cara chamado DJ Soul Slinger, que era…

BO: Carlos, né?

AL: É, Carlos Soul Slinger, que era um pioneiro do drum’n’bass lá de Nova York, mas é um cara paulista, ele é paulista. Não sei onde ele está morando agora, estava no Arizona. O Soul Slinger é um figuraça, ele construiu um império: tinha um selo, uma loja de roupa, fabricava as roupas, ele era um DJ de muito sucesso. Só que nunca regularizou o visto nos Estados Unidos. Ele era uma estrela naquele mundo, realmente. Ele facilmente poderia ter pego um visto de trabalho, alguma coisa. E teve que deixar os Estados Unidos…

BO: Eu lembro que ele organizou um festival de música eletrônica na Amazônia.

AL: Exatamente, o cara é muito empreendedor, muito bacana ele. E muito bom DJ!

O problema de músicos e DJs é que o instrumento, digamos assim, dos DJs, não é tão flexível quanto os outros instrumentos. Tem uma potência, um poder, que os outros instrumentos não têm, porque ele já vem completamente comprimido. O som já vem direto na gente. Não sei explicar muito isso, mas você sabe que é verdade. E esses caras e os efeitos que você pode colocar no disco e na hora ali, são mais, como se diz, não são tão manuseáveis. Então, você achar um DJ que possa responder a você… Tinha um cara que chamava DJ Bandido, lá de Salvador, que foi o primeiro cara a tocar as músicas de blocos afro nos sets de música eletrônica. Muito bom esse cara, não sei aonde está esse cara hoje em dia.

Mas tocar com DJs é super interessante, porque também os músicos não têm tanta paciência, geralmente, não tem a paciência necessária para entrar na onda do DJ. DJs bons são grandes músicos também, mas junto com músicos tocando instrumentos é difícil dar certo.

BO: Vamos falar do disco novo?

AL: Vamos.

BO: Então, eu sei que você já terminou de gravar, está praticamente pronto, alguma ideia, conceito por trás?

AL: Cara, começou com um conceito interessante, que não consegui realizar, que foi uma junção do gospel — não o coro, mas o uso do Hammond, que é o órgão — e a música do candomblé, os toques do candomblé. Aí tive essa ideia, mais do ponto de vista musical do que do ponto de vista sociológico. Porque os dois utilizam a quebradas, as dinâmicas severas, as dinâmicas radicais. É uma característica, uma essência das duas músicas. Elas têm efeitos parecidos em muitos lugares: as duas músicas são africanas, levam a uma espécie de transe, levam a você ficar fora de si e usam técnicas para isso. Não é uma coisa mágica, é uma técnica. Existe uma técnica pelo menos para ajudar a mágica. Aí o transe já é outro… mas tem uma relação com o transe que não é a relação do drone…

Hoje em dia nós estamos no momento em que o drone está em alta. Drone é uma música continua, com tom complexo, contínuo. Isso tem na música indiana, tem na música experimental forte desde os anos de 1960, Terry Riley, La Monte Young, Tony Conrad, muitas pessoas… Tem hoje em dia um movimento mundial de drone, e tem Sunn O))), Stephen O’Malley. Drone é uma coisa muito forte, super interessante. Arthur Russell tinha algumas coisas de drone também. Digamos que o drone é a repetição super rápida de um som que, eventualmente, vira uma coisa só. O drone tem relações com o minimalismo nesse sentido.

BO: La Monte Young falava que era stasis, esse sentimento de algo que se move parado. O candomblé e o teclado do gospel

AL: … são o oposto!

BO: São o oposto disso! Variar para provocar o transe.

AL: É. Tem uma coisa da música do candomblé que sempre me atraiu, que é a praticidade. Está tocando o toque, as ialorixás estão ali dançando, esperando receber o santo. Aí todo mundo recebe e tem uma que não recebe o santo. E está todo mundo ali e não pode passar adiante até que aquela senhora também receba. Aí os caras tocam mais rápido. É tipo: “então bora!”. É muito prático, é muito bonito. Então, sempre achei isso uma coisa muito legal. Numa religião você ter essa coisa muito corriqueira, sabe, normal, diária.

BO: É a eficácia.

AL: Então, mas o Luís Filipe [de Lima, violonista] falou de uma técnica incrível. Depois eu perguntei a alguns ogãs que disseram “não, o que é isso, nunca faríamos isso”. Mas a técnica é a seguinte: a pessoas está ali dançando, a pessoa está batendo o tambor, então quando o pé da pessoa está quase tocando no chão, você dá a batida adiantada e dá uma espécie de torção na pessoa. E é exatamente esta torção que facilita a chegada do transe. Então, eu sempre me interessei pela quebra.

Quando eu comecei com o DNA, meus melhores amigos tinham uma banda que era mais pro drone, era mais pro Velvet Underground, mais para o Roxy Music, que eram bandas de muita força naquele momento. Até o disco do Iggy Pop que o Bowie fez de música eletrônica com referências desses caras experimentais, era tudo essa coisa contínua. E eu falei, “Pô, eles estão fazendo assim, vou fazer assado”, para aparecer. Também para achar um campo para mim diferente dos outros. Aí comecei com essa coisa da quebrada do início, espera para tocar a nota, brincar com a expectativa. Eu continuo interessado nisso e no gospel é parecido também, tem essas diferenças abruptas de dinâmicas, de timbre, né? O Hammond é um instrumento muito particular.

Arto Lindsay. Foto: Renan Barbosa

BO: Parece que quando ele fica mais agudo, o som se abre. Ele é mais aveludado no grave e mais estridente no agudo.

AL: E é volume e timbre. Mas é engraçado porque esse transe é uma surpresa domesticada, digamos assim. É uma surpresa que continua rendendo, todo mundo sabe que vai rolar surpresa e na hora rola uma surpresa e continua sendo bom. E voltando para o disco, eu queria investigar isso. Só que o disco eu fiz quase sem dinheiro e nunca pude colocar todo mundo na mesma sala, sabe? O pessoal tocando atabaque e alguém tocando Hammond.

BO: Quem são?

AL: Eu trabalhei com o Gabi Guedes, com Jaime Nascimento e Ricardo Braga. Alguns anos atrás eu gravei eles aqui na Toca, estúdio aqui no Rio, depois um show da Orquestra Rumpilezz [orquestra dirigida pelo maestro baiano Letieres Leite]. E o Gabi é um cara que cresceu dentro do terreiro do Gantois, que é um dos mais tradicionais de Salvador, ele é um mestre e um grande músico, conhece aqueles toques, aquele repertório de uma maneira muito profunda. Ele também tocou muito com outras pessoas. Ele sempre toca numa jam session que tem no museu lá [em Salvador], todo sábado. Ele já viajou com Paulo Moura, tocou com Armandinho. É um cara que toca todos os instrumentos rítmicos e conhece os ritmos brasileiros muito bem, é muito criativo e tem um toque leve, fluido e musical. Eu até gosto um pouco da pancadaria de alguns outros tocando Rum. Então, ele é um grande mestre e eu já fiz vários shows com ele pelo mundo. Fizemos um trio elétrico uma vez, só com os atabaques e várias pessoas: Pedro Sá, Melvin Gibbs, Betão Aguiar, Thalma de Freitas, Moreno Veloso… uma turma muito louca em cima de um trio, quando a situação política estava favorável lá em Salvador e a crise estava um pouco menor do que hoje.

[O músico Henry Schroy estava na plateia e lembrou que Amayo, cantor do Antibalas, fazia parte do conjunto].

AL: É, e o Amayo, que é um músico nigeriano que mora lá em Nova York, daquela banda Antibalas, uma banda de afrobeat de Nova York. Ele é o único preto e o único nigeriano.

Eu já fiz vários trabalhos pelo mundo com esses caras. Tocamos em Bologna juntos, tocamos no Sesc Pompeia juntos. É um trabalho que venho desenvolvendo com eles e tentando me familiarizar com esses toques só tocando, tocando, tocando e absorvendo.

BO: Tem um espaço de experimentação dentro destes vários contextos onde se toca a música do candomblé. Lembro quando o Carlinhos Brown gravou aquele disco Candombless, no texto de apresentação ele falava isso: há uma evolução rítmica na prática desses terreiros, que são vários terreiros diferentes, às vezes os toques variam. Por mais que você diga assim: há um toque de Aguerê, há um toque de… toques que são, enfim, de certa forma registrados e identificados com determinado orixá. Mas aí o Carlinhos Brown diz o seguinte, que esses toques vão modificando de casa para casa, se tornando mais virtuosos. Eu pensei na bateria das escolas de samba aqui do Rio também, que você tem cada vez mais um rebuscamento ali na forma… Quando você fala de trazer isso para o teu trabalho… bem, há um movimento de vanguarda nessa seara…

AL: Sim, com certeza. E a grande proponente é a Rumpilezz, que é uma orquestra de sopros e percussão, quase todas as levadas são toques de candomblé. E ele compõe em cima daqueles tempos que são difíceis, 11, 9… Eu acho que é uma tradição em constante mutação. A própria forma das músicas é super interessante, porque ela dá lugar a uma certa imprecisão. Muitas vezes quem não conhece aquilo, não conhece essas músicas, não consegue identificar a célula que se repete. Mas para quem conhece aquilo é muito óbvio, porque é uma mistura de ritmo. E tem o elemento melódico, o Rumpi e o Lé que são mais ou menos constantes, o agogô também é mais ou menos constante e o Rum vai variando, não é isso? E ele exerce muitas funções. Ele pode dar uma ênfase rítmica, pode dar uma quebrada, pode ser melódico, pode ser instrumento de apoio para o ritmo principal. Eu não sou estudante dessa música, eu sou um aficcionado e escuto por prazer. E como te falei, eu tento absorver ao longo do tempo, não é uma coisa que eu estudo. É porque eu não estudo a música nesse sentido, não é o meu método. Meu método é ouvir repetidamente, escutar.

Eu produzi um disco ano passado de um cara chamado Lourenço Rebetez, que é um jovem guitarrista, arranjador e compositor paulista. Estudou em Berkley, fez uma espécie de aprendizagem com o Letieres Leite e fez um disco de jazz. Nós chamamos Gabi Guedes, Iuri Passos e Ícaro Sá para gravar com a gente, deve sair agora. Então, é um disco de jazz brasileiro, tem referências como Moacir Santos. Um dos caras que veio gravar com a gente foi o Iuri Passos, um mestre da música de candomblé e que está dando aula num terreiro, acho que é no próprio Gantois. E nessa aula de terreiro tem mulheres, é incrível! Isso é uma coisa radical, isso é uma coisa muito foda!! Cara, eu fiquei chocado. Quase chorei quando eu vi isso. Porque o candomblé tem aquela coisa, é a mãe de santo que manda, é matriarcal. Mas ao mesmo tempo é muito sexista, ao mesmo tempo é muito machista. São aquelas contradições. E eu fiquei muito feliz que as meninas estão aprendendo os toques, isso vai dar muito fruto, é muito bom isso.

Eu peguei essas gravações antigas, levei para os Estados Unidos e fiz músicas em cima delas com os músicos da minha banda de lá. Aí tem alguns híbridos… Como é aquele filme de Charles Laughton, que ele está numa ilha no meio do pacífico, e os brancos estão ali e os nativos sempre estão tocando aquela música lá fora, sabe? Está rolando o drama daqueles brancos e lá fora é sempre aquela batucada. E quando a gente começou, parecia uma bandinha de jazz de um hotel, com a janela aberta, sabe? (risos) Os nativos ali na batucada. Ai eu falei: peraí gente, tem que tentar entrosar. Algumas a gente até deixou esse elemento de estranhamento. É um disco de canções que eu fiz com essas gravações e com a minha banda, que eu gosto de manter uma banda, e é bem difícil. Porque em Nova York todo mundo é super ocupado. Se o cara toca, ele tem mil possibilidades. E com o Gibbs [Melvin Gibbs, baixista que acompanha Arto por muitos anos], eu moro aqui e a gente trabalha na Europa. É uma coisa super complicada, mas eu gosto de ter uma banda.

BO: Você foi convidado para elaborar uma experiência sonora em diálogo com as paisagens do Burle Marx, por conta de uma exposição no Jewish Museum, certo? O nome da exposição é “Burle Marx: Brazilian Modernist”. E você produziu essa faixa “Butterflies, Molasses” para criar um diálogo sonoro com as paisagens do Burle Marx.

AL: Exatamente. Eu acho que é a segunda exposição de Burle Marx em Nova York. Teve uma, acho que nos anos de 1980, no MoMA. Os caras que fizeram esta exposição que está no Jewish Museum até esqueceram desse fato, e colocaram que era a primeira, mas não era a primeira. Uma exposição bonita. Eu achei um pouco cheia demais, com trabalhos não muito interessantes, com muitos trabalhos desnecessários do início da carreira dele, quando ele era um pintor realista. Poderiam só ter mostrado uns poucos exemplos. Essa sala da exposição não é tão bonita, como sala. Aliás, eles vão botar o museu abaixo e construir de novo.

Eu nunca fui muito fã do Burle Marx. Eu achei algumas questões interessantes do paisagismo dele, desinteressante como pintor. Mas por causa da exposição, fiquei exposto, vi bastante algumas coisas e acabei reconhecendo que eram boas. Mas não era uma coisa que me atraía. É engraçado, porque eu fui criado no Nordeste brasileiro, viajei muito no Brasil nos anos de 1950 e 1960, fui criado rodeado por versões pioradas do modernismo brasileiro, entendeu? Os arquitetos modernistas faziam aquilo com certa consistência, e todo mundo reproduzia. Algumas vezes melhor, algumas vezes pior, sem querer denegrir o vernáculo, não é isso. E era muito diferente daquilo que eu via quando eu visitava os Estados Unidos, que eu estudava nos livros, que eu via nos filmes. Era uma arquitetura geométrica, reta, com ângulos cortantes, não é isso? O paisagismo dele eu sempre achei bom. Ele estudou muito as plantas, então a escolha das plantas talvez seja, para mim, a parte mais forte do paisagismo dele. Mas como ele distribui aquilo nos espaços, sempre achei uma mistura esquisita de um geometrismo, de um formalismo, que era a definição do modernismo naquela época. E a coisa orgânica são as plantas. Eu sentia falta de uma coisa, assim, selvagem ou uma coisa mais jogada, largada, sabe? Esta é minha relação pessoal com o cara. Claro que eu via algumas coisas bonitas e tem alguns desenhos bonitos, e umas maquetes – não são nem maquetes, são colagens de decorações de carnaval para o Municipal, que não sei nem se chegaram a ser construídas, mas que eram muito bacanas.

Bem, um cara pediu uma trilha e eu falei: olha, não quero fazer uma mera trilha. Aí tive a ideia de fazer um trabalho que fosse três carrinhos, cada um com um sistema de som. Um com violão, um com ritmos eletrônicos e outro com sons naturais. Cada carrinho teria também um elemento: pedras portuguesas, areia e folhas. Aí ficariam dentro do espaço do museu e, junto com Stefan Brunner, que é um craque da programação e do MAX MSP, com quem eu já fiz várias colaborações, elaborei essa ideia. Cada um dos carrinhos está tocando um som, um de violão, outro com um chiado eletrônico. Quando eles vão se aproximando, o som de um interfere no do outro. [Descreve como os sons vão ficar] O som de um vai modificando o som do outro e a pessoa pode ir brincando com isso ali. Mas aí não deu certo por uma série de motivos e fizemos “Butterflies, molasses”.

BO: Eu fiquei surpreso com o resultado, porque tem esses espaços, né?

AL: A ideia foi essa. Thiago Nassif [músico carioca que colabora com Chelpa Ferro, tem um trabalho solo e já foi produzido por Arto] e eu, nós editamos para caralho, ele tocou e eu cantei. Ele tocou algumas variaçõezinhas, mas basicamente a melodia. Aí vem uma parte de barulhinho, e tem uma espécie de batucada eletrônica que vai sumindo. Mas eles instalaram de uma maneira… Museu é foda, museu é muito difícil. Você tem que ir pessoalmente, o que eu não pude. Você tem que lutar pra tudo. Os artistas plásticos, e toda a cultura de museus, eles são bem menos sociais do que os músicos. A gente é acostumado a tocar em grupo, a respeitar um ao outro. O cantor precisa do baterista, por mais que ele ache o baterista uma anta, ele precisa do cara.

BO: Sempre o baterista, sobra sempre para o baterista.

AL: É, tem músicos e tem bateristas, a gente costuma dizer. (risos)

BO: Uma vez li assim: “O workshop da tarde é para músicos; o da noite é para bateristas”.

AL: São piadas… Isso é o racismo. Por que quem é que geralmente toca bateria? A “cozinha”…

BO: O Letieres coloca os percussionistas de terno na frente, proeminentes, e as harmonias e melodias atrás, escondidinho, com uma roupa mais comum.

AL: É, eles usam também branco, mas de bermuda. Mas é de propósito isso, exatamente.

BO: Se alguém me perguntasse assim, “Arto Lindsay: quais conceitos você destacaria para falar de Arto Lindsay?”, eu diria “quebra”, com todos os sentidos que isso pode suscitar; e “espaço” ou “espacialização”, e também com todas as possibilidades interpretativas a partir daí, de desdobramento, do espaço, de reconfiguração, de afetação do espaço, afetar o espaço.

AL: Espaço afetado. O afeto no sentido, assim, da sensualidade, da atração e rejeição entre pessoas.

BO: Como é esse negócio do espaço?

AL: Então, quando você quebra, aí tem o espaço, você cria o espaço. Muitos anos atrás eu comecei a ler sobre a chamada Arte Sonora e fiquei fascinado e influenciado por algumas ideias desse âmbito, sem ter nunca ter uma experiência disso. Só pela leitura e pela imaginação. O que é aliás uma qualidade que você percebe ao trabalhar com o som como material escultórico, tentar ver outros usos, outros aspectos do som se relacionar com a gente, com a música, com os sons do mundo, do cinema, etc. Isolar o som e trabalhar ele como material. Há muitos anos me interesso por isso e de quando em quando tenho feito experiências com isso.

O som é movimento, é um movimento no ar, a definição do som não é essa? São ondas no ar. Então, ele já é espacializado, ele já acontece no espaço. Mas o som reproduzido, aumentado, amplificado, transportado, ele tem outras presenças e outras qualidades. Muitas vezes o que a gente faz com a música é uma simulação do espaço. O reverb simula um espaço maior do que o lugar onde a gente está, é como se o som tivesse acontecido num lugar mais amplo. O eco é exatamente isso, aquele som que volta, o som bate em alguma coisa dura e volta. A música clássica já tem o estéreo se você se posicionar no centro da orquestra. A Rumpilezz também tem essa distribuição, o rum, o rumpi e o lé, já tem… é uma fila de frequências, não é isso? A espacialização seria você tentar isolar o som e encontrar algumas dessas coisas. E trabalhar uma proximidade do som com a pessoa. Isolar e brincar com o efeito real da distância. Sabe quando você vai ver um show hoje em dia? Tem aquele som do palco e tem uma série de outros alto-falantes de cada lado do público. O delay é calculado, o som sai dos lados de uma maneira calculada para não aparecer um atraso muito grande.

BO: Como, por exemplo, aquele software que utilizam na Praça da Apoteose, que corrige as frequências conforme a escola de samba vai passando para que todos ouçam da mesma forma.

AL: Exatamente, isto é uma coisa que vem se aperfeiçoando há alguns anos. Eu fiquei fascinado com isso e trabalhei em quadrafônico em algumas situações ou utilizando mais alto-falantes. Não sei se existe a palavra “literalizar”, mas em inglês é “making it more literall”, “literalize something”. O que é literal, óbvio, pegar uma coisa que já está aí e trazer ela para o primeiro plano. De alguma forma, mandar o som para alguns alto-falantes corresponde a trazer para o primeiro plano e controlar um fenômeno que já acontece na natureza. Então, por exemplo, eu faço um show, passo o som da minha guitarra por um computador, ele volta para uma pedaleira minha, volta para o computador e vai para o sistema de som. Ele é separado em vários alto-falantes. Com alguns softwares podemos controlar o trajeto do som. Digamos que tem alto-falantes do lado das pessoas ou — eu já fiz isso em um show — que os alto-falantes vão pelo meio da plateia. Usei esses monitores de palco grandes, escultóricos, bonitos, massivos, com presença forte, em fila pelo meio das pessoas. E aí você está vendo o show, está ouvindo aquela voz ali e ouvindo a guitarra que vem dali, e de repente a guitarra passa do seu lado, sabe? E aí eu coloco variações: mais rápido, mais devagar, começa atrás, vem para frente, vai pulando, é simultâneo em todos, é aleatório… e isso tudo eu controlo através do software. De fato, são delays do som da guitarra que eu mando para lá e isso cria uns ritmos muito loucos, e eu toco em cima disso. Escutando aquilo, estou escutando diferente porque vem de lugares diferentes. E o ritmo é diferente por causa do espaço.

Eu posso colocar um efeito diferente em cada caixa, em uma pedaleira eu tenho a escolha de vários trajetos: esquerda para direita, direita para a esquerda, estéreo que anda, estéreo que vem para cá, tiro efeito ou coloco efeito… Então o som viaja e se transforma em cada alto-falante. É uma ampliação do instrumento.

Um show que eu não vi, mas que eu queria muito ter visto, foi um show do Lenine. Parece que o filho do Lenine grava o Lenine e é craque de som. Queria conhecer esse menino. Ele fez um disco em que usou sons naturais. Cada canção tinha uma base de um som natural: areia, alguém passando o pé na areia com o microfone perto; água borbulhando, pedras caindo… Ouvi dizer que no show ele tinha vários alto-falantes espalhado pelo público com estes sons, enquanto ele tocava no palco, violão, banda, voz, etc., estava rolando no público o som de água e tal.

BO: Interessante, um artista de canção no Brasil se dispor a pensar nisso.

AL: É, acho que foi o filho, mas ele comprou, né? Lenine tem aceito informações que vêm dos jovens e tem incorporado aquilo muito bem. Tem umas coisas muito boas do Lenine.

BO: Vamos finalizando, então, queria fazer uma última pergunta para retomar o tema do início da conversa e perguntar para o Arto Lindsay quais são os perigos que rondam hoje a atividade artística?

AL: Olha, é o perigo de morrer de fome. (risos) Tem esse perigo. E é um perigo real, especialmente para os músicos, está cada dia mais difícil viver de música. Acabou o mercado de música gravada, basicamente. Encolheu muito e os índices encolheram drasticamente. O mercado de shows está cada vez mais difícil também, cada dia mais centralizado. E alguns territórios que eram rentáveis, estão em grande dificuldade. Basicamente a Europa, que salvou muita gente, desde os músicos de jazz que foram morar em Paris, os músicos experimentais que acharam muito apoio nos anos 1980 dos governos que tinham políticas culturais mais interessantes.

Outro tipo de perigo: não estou falando de criar arte perigosa, que seria outra pergunta. Uma arte que… o que seria o perigo para um artista de uma arte perigosa? Uma arte perigosa não é perigosa somente para o artista, precisa ser perigosa para o artista e para o ouvinte, leitor, espectador, no sentido de que consegue questionar conceitos, hábitos e maneiras de viver da pessoa. E a pessoa pensar um pouco sobre o porquê que as coisas são desse jeito. Isso pode ser político mas pode ser muito pessoal também: por que eu não tiro o olho do telefone o dia inteiro? Por que sento com meus amigos, alguém liga e atendemos? Porque é mais importante do que estas pessoas? É uma questão bem da hora.

Mas eu acho que essa coisa da arte perigosa também é um discurso muito da publicidade, hoje em dia, as pessoas vendem essa ideia de que sua arte é perigosa: “ah, sou grafiteiro”… Ou “ah, só toco música de barulho”, “minha arte é irônica”. É uma maneira de se fazer palatável, de se parecer com os artistas que deram duro. Então existe esse lado da ideia da arte perigosa. Não sei se eu tenho algo muito interessante para falar sobre isso.

BO: Então vamos encerrar por aqui.

*Professor da Faculdade de Educação/UFRJ, autor de “Tom Zé — Estudando o Samba” (Editora Cobogó, 2014).

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Bernardo Oliveira:
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