Cultura do estupro – Mídia e violência nua contra as mulheres

Foto: Mídia Ninja

por Bajonas Teixeira de Brito Junior, colunista do Cafezinho

A violência contra as mulheres no Brasil tornou-se epidêmica e, ao que tudo indica, o estupro coletivo veio como uma nova modalidade ao lado de outras patologias que já fixaram residência de longa data: o assédio moral, o assédio sexual, o estupro individual, o espancamento, a mutilação e o assassinato. O estupro coletivo é como um novo tipo de vírus, uma mutação, gerado pelo descaso público crônico.  Um índice do advento dessa nova modalidade é o fato de que, no dia em que trouxe o estupro coletivo do RJ (27/05), o portal G1 exibiu também outro, com menor destaque, ocorrido no Piauí.

Assustador é que nos últimos cinco anos tendências que parecem conduzir diretamente a esse resultado tenham se apoderado das mídias. Essas tendências não foram combatidas em seus inícios, muito pelo contrário. Delas emergiram os humoristas queridinhos do público, como Danilo Gentili e Rafinha Bastos, que ocuparam os lugares centrais na mídia brasileira nesse período.

Estes dois colecionaram um vasto catálogo de barbaridades hediondas ao longo dos anos, tudo em nome da crítica ao politicamente correto. O que é muito curioso porque, no Brasil, nunca houve o politicamente correto. Em nome da suposta rebeldia ao politicamente correto, instalou-se a permissividade do grotesco e da violência contra as mulheres. Assim, em maio de 2011 Danilo Gentili fazia uma piada que provavelmente repetiu milhares de vezes em seus shows que era a seguinte:

“? Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia… Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade. Homem que fez isso não merece cadeia, merece um abraço.”

Não houve reação pública, o estado e as autoridades não se pronunciaram. Ao contrário. A piada tinha um ar jovem, engraçado, e era dita por um jovem branco de classe média. O que poderia haver de errado? Como quem cala consente, as veias do público continuaram abertas para injeções desse veneno. Em janeiro de 2012, depois de uma acusação de estupro no BBB, Danilo Gentili postou no Twitter:

Dada a imensa popularidade desse humorista no país, bastariam esses episódios para estimular práticas criminosas contra as mulheres. Mas isso foi só o começo. Ao longo dos anos de permissividade, fixou-se a ideia de que as práticas que estimulavam desrespeito, violação, degradação eram não só engraçadas, mas sobretudo modernas. Isso se reforçou com o CQC que, durante anos, foi a própria imagem de vanguarda da mídia do entretenimento, na bancada, no traje, nos óculos e na ostentação de rudimentos do inglês. Por trás disso escondia-se um imenso primitivismo, mas ninguém atentava nesse detalhe.

A mesma modalidade de entretenimento perverso, invasivo e assediador, em versão extremada, ganhou sua forma popular escrachada no Pânico na TV.

Os fatos conspiravam a favor. Em março de 2011, Rafinha Bastos era apontado pelo New York Times como o homem mais poderoso do Twitter, à frente de nomes como Snoop Dogg, Barack Obama e Kim Kardashian. Embalado pela enorme popularidade de seu universo do assédio moral, extraordinariamente bem recebido pelo público, e incitado a avançar cada vez mais um sinal vermelho, Bastos fez então a piada com a atriz Wanessa Camargo, em setembro daquele ano: “Comeria ela e o bebe”.

Isso, como se sabe, gerou uma tormenta de críticas, e a abertura de um processo por danos morais. No entanto, não se foi além do caso singular, isto é, não se chegou a acusar esse tipo de humorismo pelos danos que causava às mulheres em geral. E, indo além, de ser promotor de práticas de desrespeito, que, começando pelo assédio moral e racial, eram capazes de induzir verdadeiras vagas de pogroms (palavra utiliza para descrever uma prática, comum durante séculos no Leste da Europa de ataques assassinos contra comunidades judias). Na verdade, apesar do percalço, em dezembro de 2012, Rafinha Bastos chegava a 5 milhões de seguidores no Twitter.

O efeito profundo desses anos dourados da stand up comedy pode ser medido pela onda de ódio que varreu o país no segundo semestre de 2014, em que os crimes de ódio dispararam com um crescimento de 84%.  E, logo depois, em 2015 e 2016, nos diversos atentados contra atrizes, cantoras e figuras públicas negras, como a apresentadora Maju.

A violência nua e crua

As formas de falar, os trejeitos, as incontinências verbais nascidas dessa comédia, longe de serem combatidas, se disseminaram, e hoje podem ser observadas na linguagem dos personagens que se agregaram no golpe contra a democracia que estamos vivendo. Basta assistir ao vídeo que o pastor Malafaia gravou, em que o ódio escorre por todos os lados, ou aquele que foi produzido pelo deputado Marco Feliciano, ainda na primeira semana do governo Temer, para defender algumas barbaridades, como o fim do MINC.

As figuras públicas brasileiras passam a competir para ver quem mais excede na pornofonia. A inteligência da palavra, a ironia, o requinte da expressão, ou seja, as formas que sublimavam na linguagem a violência verbal, deram lugar ao uso da palavra como choque. O palavrão e a grosseria sequestraram a linguagem.

Exemplo muito marcante é o do ministro do STF Gilmar Mendes, atual presidente do STF, às vésperas do impeachment, ao responder à Globo sobre possível recurso da defesa de Dilma ao Supremo dizendo: “Eles podem ir para o céu, o papa ou o diabo”. Antes, já havíamos presenciado a reação de um membro do Ministério Público de São Paulo, em relação à patética confusão deles mesmos quando, ao fundamentarem o pedido de prisão de Lula, confundiram Hegel e Engels: “Ora, vai catar coquinhos!”. Mais recentemente, Romero Jucá, senador da república, derrubado pelas gravações em que tramava contra o governo Dilma e o fim da Lava Jato, disse que pediu para sair do ministério para “evitar manifestações atrasadas e babacas”.

Até um passado recente, havia dois lugares, o público e o privado. Em privado, ou relativamente escondidos, os políticos falavam palavrões, demasiadamente até, mas havia um respeito pela distinção dos lugares. Mesmo que com elevado grau de hipocrisia, o espaço público era cercado de certa aura, e exigia-se nele uma atitude de respeito. Mas agora vivemos em pleno domínio da desinibição verbal escancarada. A incontinência verbal não aceita nenhuma separação entre os domínios, ou seja, se expressa em público como se estivesse em privado. Submete o público à violência dos ódios privados, como se ser público fosse não ser de ninguém.

Esse comportamento é pornográfico. A pornografia se dá aqui porque o mundo público é despido da sua dignidade e, assim rebaixado, pode ser abordado com inteira falta de cerimônia. Essa realidade nua é compreendida como lugar para o saque de todos, como “mulher pública”. A escória submeteu o público ao tipo de vida degradada a que está acostumada. Tudo é igual, tudo é o mesmo. Nada vale nada. Só numa realidade assim inferiorizada tornou possível, por exemplo, que Alexandre Frota fizesse seu ingresso na cena política. Mas isso porque ele, ex-ator pornográfico, carrega além da vulgaridade, provocações e violências de uma linguagem reduzida a ser a embalagem de urros, uma outra peculiaridade: transitar num ambiente de extrema excitação visual.

Basta lembrar que esse pornógrafo foi quem, em um programa de Rafinha Bastos – vejam que interessante! – contou, e coreografou entre gargalhadas histéricas de um público reduzido à demência, como estuprou uma mãe de santo que chegou a desmaiar. Ele disse, quando posteriormente recebeu algumas críticas mornas, que isso não aconteceu, que foi apenas uma performance. Se foi “apenas” performance, se se destinou apenas a satisfazer o público, a alimentar impulsos perversos, vendendo sadismo, não teria sido bem pior? Essa performance, ou seja o que for, foi um dos momentos mais exemplares da desinibição verbal e gestual no Brasil. Ela foi já um ensaio de estupro coletivo, no ar, e para milhares de pessoas que, em suas gargalhadas e prazer de assistir à mímica da violação, estavam muito próximas dos trinta estupradores do Rio. Foi um ensaio cerimonial de estupro coletivo.

E, certamente, ela serviu de grande inspiração para a desinibição verbal que, hoje, vemos num ministro Gilmar Mendes, num senador Romero Jucá ou num deputado Marco Feliciano. São todos discípulos de Alexandre Frota, seu grande professor. E é isso explica que este tenha, de repente, ocupado espaço no ‘sério’ e ‘respeitável’ teatro político. Esse espaço hoje está, digamos, costumizado para ele. Para ele e para Bolsonaro, quem disse que não estupraria a deputada Maria do Rosário porque ela não merecia.

Para continuar essa discussão, temos que ver como a mídia tem tratado o corpo da mulher, como faz dele objeto morto e fragmentado num ambiente em que (através das dezenas de reality shows que inundaram o Brasil em mais de uma década) a invasão pelo olhar tornou-se pulsão e compulsão. Além disso, teremos que observar o papel das redes e do compartilhamento de imagens e vídeos no país.  Mas isso fica para o próximo artigo.

Continua.

Bajonas Teixeira de Brito Júnior – doutor em filosofia, UFRJ, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas, e professor do departamento de comunicação social da UFES.

 

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