E se os mais ricos ajudassem a pagar o rombo nas contas públicas?
O Governo interino de Michel Temer anunciou nesta terça-feira linhas gerais de suas estratégia para reequilibrar as contas públicas. O eixo principal é criar uma regra para congelar o gasto público, incluindo limitar gastos com saúde e educação modificando a Constituição. O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, afirmou, em coincidência com empresários, que a carga tributária é alta e que, neste momento, não se contempla aumento de impostos. Especialistas ouvidos pelo EL PAÍS, no entanto, afirmam que há espaço para aumentar a tributação das camadas mais ricas da sociedade, distribuindo a “fatura” do ajuste imediato e de longo prazo de forma mais justa entre ricos e pobres. Defendem, como prioridade, a volta do imposto de 15% sobre lucro e dividendos recebidos por donos e acionistas de empresas.
Caso a cobrança desse tributo, que foi extinto em 1995, no Governo Fernando Henrique Cardoso, voltasse a ser cobrado, o Governo poderia arrecadar mais de 43 bilhões de reais por ano, segundo estudo feito pelos pesquisadores Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea). O montante representa, por exemplo, um ¼ do rombo esperado nas contas públicas de 2016, estimado na semana passada em 170,5 milhões de reais. A regra não foi alterada nos anos Lula e Dilma. Em 2015, o senador Lindebergh Farias apresentou projeto de lei para modificá-la, mas ele está parado no Senado.
“Hoje, grande parte do que os empresários ricos ganham não é tributada. Um trabalhador com salário de 8.000 reais paga um imposto de renda de 27,5%. Já um dono de uma grande empresa que fatura mais de 500 mil reais a título de lucros e dividendos pode não pagar nada como pessoa física”, explica Orair, que ressalta que o Brasil é um dos poucos países que ainda isentam esse imposto. O sistema clássico de tributação prevê imposto na pessoa jurídica e, posteriormente, havendo distribuição de dividendos aos acionistas, também na pessoa física. Dos 34 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne economias desenvolvidas e algumas em desenvolvimento, apenas um, a Estônia, não cobra esse tributo. Alguns tributam mais na pessoa física, outros na pessoa jurídica, mas em média, de acordo com Orair, a parcela de lucros tributada pelo Estado é mais alta do que a do Brasil.
Ainda segundo o pesquisador, só após essa mudança, a progressividade das alíquotas do Imposto de Renda, outra mudança defendida por especialistas, seria efetiva, já que ela só incide sobre os salários. A volta da cobrança desse imposto seria inclusive mais interessante que a polêmica recriação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), na opinião do especialista. “É mais fácil argumentar sobre uma medida que vai afetar o topo da cadeia de um país tão desigual que falar na CPMF, que é um imposto regressivo (afeta de maneira proporcionalmente igual ricos e pobres)”, explica.
Segundo dados do Ministério da Fazenda, 2,1 milhões de pessoas no Brasil eram acionistas ou donos de empresas em 2013. O grupo, no entanto, é diverso, já que vai desde um microempresário a um acionista de uma grande companhia. “Por isso, defendo que poderíamos pensar também em uma volta do imposto progressiva, mais justa, com valores diferentes para diferentes faturamentos”, explica Orair. O projeto de lei atualmente no Senado (PLS) 588/2015 prevê o imposto sobre a distribuição de lucros e dividendos, mas sugere que a isenção seja mantida apenas para empresários inscritos no Simples Nacional, com receita bruta anual de até 3,6 milhões de reais.
Nara Cristina Taga, coordenadora de Direito Tributário Aplicado da FGV, explica que, quando o tributo sobre lucros e dividendos deixou de ser cobrado em 1995, o país vivia um momento de desenvolvimento em que houve um esforço de criar mecanismos de incentivo para o setor empresarial. “O país queria aquecer a economia criando incentivos, mas essa isenção não contribui tanto para o crescimento. Então, porque manteríamos isso?”, questiona.
De lá pra cá, também houve uma revisão dos estudos de distribuição de renda e de tributação. Um dos trabalhos que ganhou maior projeção foi o do economista Thomas Piketty, autor do best-seller “Capital no século XXI”. “Economistas como ele revisaram essa ideia de que não era papel da tributação distribuir renda, que ela deveria ser neutra. Essa visão não era realista, não nos levou ao crescimento e sim a concentração de renda”, explica Orair.
“Não é questão de aumentar ou diminuir a carga, mas redistribuir a carga tributária brasileira. Isso implica aumentar a tributação na renda”, já defendeu Marcelo Medeiros, pesquisador da UnB e do IPEA que ao lado de outros pesquisadores aplica metodologia de Piketty no Brasil.
Imposto mais alto sobre heranças
Em sua passagem pelo Brasil em 2014, Piketty inclusive defendeu um imposto mais alto sobre heranças como instrumento para diminuir o abismo entre os mais ricos e mais pobres Brasil. Taga concorda com a medida pois considera a tributação atual de até 4% baixa em comparação com as alíquotas dos EUA, Reino Unido, Alemanha, França. “Alguns países tributam até 50% da herança. O fundamento é interessante. O herdeiro recebe aquela renda não pelo fruto do seu trabalho, mas pelo patrimônio da família. Dessa forma, o estado taxa aquela herança para fazer uma redistribuição mais igualitária”, afirma a economista.
No início de maio, o ministério da Fazenda, no apagar das luzes da gestão da presidenta Dilma Rousseff, enviou uma proposta para tributar heranças acima de 5 milhões e doações de mais de um milhão. A iniciativa visa compensar a correção de 5% na tabela do IR que elevará o limite de isenção de 1.903,98 reais para 1999,8. A ideia é aplicar alíquotas de 15%, 20% e 25% sobre heranças. O pesquisador do Ipea Rodrigo Orair afirma que a medida é válida, mas que pode gerar um imbróglio uma vez que a iniciativa pode ser considerada uma bitributação. “Já existe o tributo estadual de herança [Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação] e o Governo Federal está tentando federalizar esse imposto”, explica. O Governo também propôs no projeto uma aumento de impostos para as empresas, mas deixou de fora as grandes companhias.
Para o tributarista Miguel Silva, a solução mais simples para “praticar a justiça social” por meio de tributação é aplicar mais imposto sobre renda e propriedade e menos sobre o consumo. “Tributos como ICMS [Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços] é o que mais recai sobre a população mais baixa, você tributa igual desiguais”, explica. “O Brasil reduz pouco da desigualdade por tributação e tem uma ação distributiva forte por meio de gasto: Bolsa Família, salário mínimo de Previdência, Assistência. Em um momento de crise de ajuste, em que você quer repensar, talvez seja o momento de tirar tanto peso do gasto e olhar mais pra tributação”, resume Orair.
Impostos sobre fortuna
Outro tema polêmico para tributar os mais ricos é o imposto sobre grandes fortunas. A Constituição brasileira prevê a criação do imposto, mas ele nunca foi instituído. “Dependeria de uma lei complementar, mas há muitos interesses em jogo. Além disso há um problema, como vamos medir isso? O que é uma grande fortuna”, questiona Taga. Ela ressalta ainda que os donos de grandes poderiam optar mandar o dinheiro para paraísos fiscais caso o imposto fosse instituído ou se tornarem exilados fiscais. O ator francês Gerard Depardieu é um ótimo exemplo, segundo Taga, de quem foi embora do país após a alta taxação de grandes fortunas. Ele abandonou a França para não ser obrigado a pagar a alíquota de 75% instituído na França. Mas, na opinião da especialista, há melhores formas e mais igualitárias que o imposto sobre as grandes fortunas. “Muitos países que aliaram o tributo sobre lucros e dividendos com faixas mais progressivas de imposto de renda e uma alíquota grande na herança conseguiram uma redistribuição de renda mais eficaz”, conclui.