Temer e seus ministros – O ódio aos direitos e o monopólio ilegítimo da violência

São Paulo - Os estadantes que estavam na Ocupação do Centro Paula Souza foram para a Ocupação da ETESP, na Luz. (Rovena Rosa/Agência Brasil)

Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil

por Bajonas Teixeira de Brito Junior, colunista do Cafezinho

Uma coisa que se nota à primeira vista, ao primeiro olhar, é que o governo Temer não é nada ficha limpa. Ao contrário, vários de seus membros estão em sérios apuros com as leis.  Além disso, no transcorrer dos primeiros dias, depois de várias declarações de seus ministros (para reduzir o SUS, aumentar a idade da aposentadoria, desmontar programas sociais, rejeitar as escolhas do MPF), firmou-se a certeza de que é um governo inimigo declarado de todos os direitos.

E é também um governo que não gosta das mulheres, porque além de excluí-las dos ministérios pretende iguala-las aos homens, aumentando em cinco anos a idade mínima delas (só delas) se aposentarem (35 anos). Não será uma punição por estarem questionando tão frequentemente o patriarcalismo e reivindicando direitos? Ou seja, as mulheres que esse governo odeia, são as que não se deixam mais manipular, que não são recatadas e do lar.

Mas também os movimentos sociais despertam o ódio insensato dos homens de Temer. Usando um simulacro de interpretação legal, um frankenstein jurídico, começou-se a desocupar pelo Brasil afora sem mandado judicial. Primeiro nas escolas de São Paulo, ontem (madrugada de sábado, 21) na sede da Secretaria de Educação do RJ. É a colocação em prática da erradicação do estado democrático de direito, base efetiva do golpe, cuja finalidade é extinguir a democracia.

Vale a pena observar, diante de tantas evidências de abusos, as trajetórias que a imprensa vem apontando nesse governo, algumas biografias que se chocam com as leis e algumas práticas que são claramente hostis aos direitos adquiridos. Feito isso, poderemos ver como nos aproximamos rapidamente de um Estado baseado na violência ilegítima. Vejamos.

O fiel escudeiro de Temer, Moreira Franco, foi chamado de “camaleão político” pela Folha em longa matéria em estilo memorial, em que episódios e mais episódios reveladores são recordados. Num deles, entra o conhecido jornalista Jânio de Freitas que, informado de que mais uma licitação, orçada na bagatela de 1 bilhão de dólares, seria fraudada durante o governo de Moreira Franco no Rio de Janeiro, e já de posse do resultado,  publicou um anúncio cifrado com o nome dos vencedores.

Confirmado o resultado, Jânio escreveu a manchete da Folha (09 de abril de 1989): “Outra concorrência fraudada rende UR$ 1bi a empreiteira”. Moreira Franco terminou anulando a licitação. A mesma matéria informa que na época do governo FHC, circulava que o próprio Fernando Henrique teria dito não confiar em Moreira Franco para cargos que tivessem cofre. FHC nega que tenha dito isso, afirmando que é mentira. Mas se for, é uma mentira teimosa, já que continua viva após vinte anos de desmentidos.

Já o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, tem se notabilizado por ataques frontais aos direitos e às garantias constitucionais e vem repetindo que “não existe direito absoluto”. Ele não só vem reprimindo manifestantes, garotos e garotas, mas despejando munição pesada sobre as  leis, ao ponto de ser duramente criticado por um juiz de São Paulo e ter seus métodos reprovados pelo TJ-SP. É esta linha dura que prevalece no governo Temer, retomada pelo ministro da fazenda Henrique Meirelles que também tem se dedicado a questionar o conceito de direito adquirido.

Para nos confundir, Meirelles diz que uma coisa é a “expectativa de direito”, outra é o “direito adquirido” e outra é o “direito claramente adquirido”. E tem ainda mais outra, que é “o maior direito”, no caso, o do trabalhador receber a aposentadoria. Na verdade, essa multiplicação dos tipos de direito é uma ficção para que o governo Temer possa subtrair direitos reais, e pilhar o interesse público para o bem dos empresários e do agronegócio. Ao não cobrar nenhum esforço dos ricos (impostos, taxas, contribuições) para resolver a crise econômica, esse governo terá que depenar os pobres para encher os cofres públicos, para isso direitos só atrapalham.

Em tudo, aliás, o direito parece ser um estorvo para eles. Prevalece a impressão de que há uma incompatibilidade genuína entre essa camarilha e as leis do país, em especial as do código penal. Por exemplo: como se não fosse desconcertante um ministério sem mulheres, somos informados ainda que o suplente de um dos ministros está preso por estupro. Preso mas eufórico porque, como o titular virou ministro, ele já se diz pronto para ocupar a vaga e assumir suas funções lá na Casa das Leis.

Por mais ofensivo que sejam esses fatos ao nosso respeito pelas leis e ao direito, a liberdade jurídica dos novos mandatários não para por aí.  O líder do governo, por exemplo, é acusado de tentativa de homicídio. E, como quem é líder tem que dar o exemplo, ele não fica só nisso: além de ser acusado de encomendar uma execução, acumula diversas outras suspeitas de investidas contra os direitos. Como detalha o Congresso em Foco:

“Suspeita de tentativa de homicídio, de empregar funcionários fantasmas e comprar alimentos e bebidas ilegalmente com dinheiro público e réu no Supremo Tribunal Federal (STF). Suspeita, ainda, de receber recursos do esquema de corrupção na Petrobras. Este é o currículo mais recente do deputado André Moura (PSC-SE), escolhido pelo presidente interino Michel Temer para ser o novo líder do governo na Câmara. Ele também teve que recorrer à Justiça para concorrer nas últimas eleições porque tinha sido barrado pela Lei da Ficha Limpa.”

Matéria do UOL informa que André Moura responde no STF por crime de responsabilidade, formação de quadrilha ou bando e improbidade administrativa. Como vamos mostrar em outro artigo, há uma ligação estreita entre o desprezo desses políticos pela lei e o peso do patriarcalismo, ou melhor, de um hiperpatriarcalismo, que se expressa no governo Temer. Por ora, vale apenas observar que a violência com que nesse governo se trata os domínios das leis e o da sociedade – a exclusão de mulheres, negros e gays –, é a expressão de um desejo de fazer a sociedade brasileira recuar meio século para o passado.

Não se trata de fazer o país recuar 50 anos em todas as direções. Não certamente quanto à tecnologia, aos lucros do agronegócio, às complexas estruturações da engenharia bancária, e a tudo que diga respeito aos lucros e ao capital. Nessa direção está tudo bem. Aceita-se a modernização instrumental e até se quer mais. Mas não se tolera a modernidade social, isto é, a mudança em quase todas as outras frentes – na política, no comportamento, nas garantias do direito, nas conquistas sociais, na cultura, nos projetos de inclusão, etc.

Em todas essas direções o governo Temer odeia os direitos porque eles são sinais dos tempos, isto é, porque expressam mudanças ou desejos de mudança na sociedade, a emergência de novos grupos sociais e de novas forças sociais, e a representação dessas forças nos movimentos sociais. O núcleo de seu ministério, como indicamos em outro artigo, foi projetado para funcionar como um aparato de repressão, construído como um instrumento de tortura, para causar dor e sofrimento físico àqueles que contestem a ordem que pretende engendrar.

Os estudantes de São Paulo estão sendo pioneiros na experiência desse novo aparato de violência, na forma da revisão dos direitos que seu grande mentor, Alexandre de Moraes, professor da USP, tem implementado. Ele deixou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo com duas inovações nessa área: 1) a prática (posta em cena na desocupação do Centro Paula Souza) de passar por cima do estado democrático de direito, transformando o mandado judicial em mero pedaço de papel sem serventia e 2) a utilização de pareceres casuístas para justificar a violência policial direta, sem qualquer fundamento aceitável.

Assim, um parecer da Procuradoria do governo de SP, de certo solicitado por ele, garantiu que podia-se desocupar prédios públicos sem mandado desde que se usasse a violência policial no tempo mais breve possível. Para isso, se tomou por base o direito de “autotutela” da posse, que está previsto na legislação e que é aquele em que, por exemplo, quando uma pessoa é assaltada e reage contra o ladrão, tomando de volta um objeto que lhe foi retirado, está amparada pela lei. A mesma coisa ocorre se alguém, ao ser expulso de sua moradia por um invasor, consegue de imediato reverter a situação usando a força. Ela não será punida por agir para recuperar, de imediato, pressionado pelas circunstâncias, seu imóvel.

Esse é um caso de uso privado da força que só excepcionalmente, e de forma moderada, é aceito como legal.  Outra coisa: são ações que não podem ser delegadas a outrem, a vítima é quem tem que reagir. Mas o caso do prédio público, quem é a vítima? O batalhão de choque que faz a desocupação? Evidentemente, que não. O governador? Não, porque ele não é dono do bem público, é apenas um agente que ocupa temporariamente um cargo executivo. E mais, age por delegação que recebe de seus eleitores. Portanto, não pode desocupar pela auto-tutela, porque esta não pode ser delegada.

Levar uma lei dessas para uma instância completamente diversa, pública, é inteiramente abusivo. Porque nessa lei se entende o ato imediato, não reflexivo e não calculado, pelo qual o indivíduo lesado reage no calor da hora. No caso do estado – pense-se na situação concreta do governo de São Paulo expulsando estudantes que ocupam escolas –, este procedimento não é espontâneo, mas já está integrado em ações calculadas e pré-definidas, orientadas por táticas de emprego da violência. E isso trai totalmente o sentido da lei, que é o de acolher o resultado de um impulso momentâneo e legítimo do indivíduo que tem sua propriedade atacada.

No fundo, distorcer esta lei serve para legitimar um ataque ao estado democrático de direito moderno. O estado moderno se baseia no monopólio da violência legítima. O estado possui (e só ele pode possuir, por isso é um monopólio) os meios de violência (polícia, exército, guardas rodoviários, etc.) e os deve usar em estrito acordo com a lei, o que torna esse monopólio legítimo. O que se está tentando introduzir é o “monopólio da violência ilegítima”. Ou seja, violência que viola também as leis. Ocorre que a violência ilegítima, por ser ilegítima, não pode ser monopolizada – isto é, sempre, e a qualquer momento, a violência ilegítima pode ser praticada por qualquer criminoso. O que acontece com o estado que se baseia na violência ilegítima – como foi o caso do estado nazista -, é que ele se torna uma organização criminosa. Mas não uma organização criminosa qualquer. Como possui um grande arsenal de meios e recursos para a prática da violência, ele se torna uma superorganização criminosa.

É esse o perigo que o ódio aos direitos está tornando cada vez mais próximo do nosso cotidiano hoje. Primeiro foram estudantes. Depois serão os manifestantes, os ocupantes dos prédios do Minc pelo país. E, no fim, todos os que denunciarem a natureza ilegítima e usurpadora do governo Temer.

Bajonas Teixeira de Brito Júnior – doutor em filosofia, UFRJ, autor dos livros “Lógica do disparate”, “Método e delírio” e “Lógica dos fantasmas”. É professor do departamento de comunicação social da UFES

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