Transambas, contrasambas: novos discos de Romulo Fróes, Large Unit, Ivor Lancellotti e os movimentos exploratórios do samba

Romulo Fróes. Foto: Rodrigo Sommer.

Por Bernardo Oliveira*, editor de música do Cafezinho.

Três discos lançados em 2016 contribuem para a expansão do espectro sonoro e interpretativo do samba carioca. Em cada um desses trabalhos, modos bem particulares de retomar o campo de experiências do samba e de seus movimentos adjacentes, esse gênero musical que se relaciona diretamente com muitas das visões identitárias sobre o país, mas que nos últimos anos parece ter abandonado a pesquisa de timbres, estruturas e composição. Nas releituras propostas pelo paulistano Romulo Fróes em Rei Vadio: As canções de Nelson Cavaquinho (Selo Sesc), outras colorações do trabalho de um dos maiores compositores da música brasileira. O encontro do ensemble de improviso Large Unit, comandado pelo baterista anglo-norueguês Paal Nilssen-Love, com os sambistas brasileiros Celio de Carvalho e Paulinho Bicolor, mistura o pagode carioca com o free improv anglo-nórdico em Ana (PNL). E o quinto trabalho solo do veterano Ivor Lancellotti, Tudo o que eu quis (Dubas), remodela as melodias do fado português com voz e simplicidade únicas. Três discos, três perspectivas que traçam movimentos exploratórios sobre o mapa do samba contemporâneo.
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A “BELEZA DIFÍCIL” DE NELSON CAVAQUINHO
Romulo Fróes descortina elementos incomuns da obra do compositor carioca

“O maior desafio foi o de reconstruir o que é para mim o cerne da obra de Nelson Cavaquinho: sua beleza difícil. Uma obra assustadoramente bela e perturbadora, como nenhuma outra.” Com essas palavras, o cantor e compositor paulistano Romulo Fróes define a empreitada na qual se propôs a reinterpretar a obra de Nelson Cavaquinho. Rei Vadio: As canções de Nelson Cavaquinho de Romulo Fróes (ouça acima) é um verdadeiro tour de force sobre a obra do compositor carioca: quatorze faixas, um extenso time de músicos e participações especiais de Dona Inah, Ná Ozzetti, Criolo e a Velha Guarda musical da Nenê da Vila Matilde. Entre os músicos que contribuíram para a sonoridade do disco, os nomes habituais que acompanham os trabalhos de Fróes: Guilherme Held na guitarra, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos no cavaquinho, guitarras e percussões, Curumin, Sérgio Machado e Wellington Moreia (o “Pimpa”) na bateria/percussão, Marcelo Cabral no contrabaixo acústico, elétrico e no synth bass e um naipe de metais comandados por Thiago França com Allan Abbadia, Juliana Perdigão, Amilcar Rodrigues e Cuca Ferreira.

Por realizar uma operação de transplante das canções de Nelson para um ambiente sonoro divergente daquele que o consagrou no panteão da música brasileira, isto é, do samba dito “tradicional”, Rei Vadio é um dos discos mais perturbadores do ano. Cada releitura carrega uma atividade de transgressão conciliatória que pode ressaltar um aspecto evidente, como na euforia carnavalesca em “Vou Partir”, ou resgatar um sentimento interditado pela malemolência alegre do samba, como na melancolia lupiciniana do arranjo para “Notícia”.

Para criar este efeito, Romulo apostou na modulação de vozes e na elaboração experimental dos arranjos, alguns revestidos por rumores graves provenientes do sintetizador, outros por paredes de clusters projetadas por instrumentos de sopro, chiadeira noise à la Sonic Youth, percussões que se desarticulam para provocar ritmos trôpegos, gravações de campo e chorinho com wah-wah: estratégias que intensificam a poética trágica de Nelson. Segundo Fróes, no entanto, “ruídos e dissonâncias estão no cerne da obra e da interpretação de Nelson Cavaquinho”. Percebe-se na reinterpretação de clássicos como “Pode Sorrir”, “Juízo Final” e “Luz Negra”, a redistribuição instrumental das características sonoras do intérprete Nelson Cavaquinho deixadas de lado pelo próprio mundo do samba — o modo de tocar violão com pizzicatos e o timbre rascante de sua voz.

A seguir, a edição de uma conversa que fizemos por email sobre o disco e a figura incontornável de Nelson Cavaquinho.

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Nelson Cavaquinho era um sambista, mas seu disco propõe uma leitura de sua obra para além do samba. Além de polêmica, essa atitude parece revelar um olhar particular sobre a obra do compositor carioca. Você poderia falar um pouco sobre o que te chamou atenção nessa obra?
Esse lance que você chamou de “além do samba” é curioso, porque no fundo acho que tudo que fiz até agora foi samba. Mesmo o No Chão Sem o Chão (2009) que é meu disco, digamos, mais roqueiro, para mim é um disco de samba — ainda que o tenha feito justamente para me livrar do rótulo de sambista, que queriam colar em mim na época. Aí é que tá, eu não aceito ser chamado de sambista, porque isso implica em uma série de requisitos e diretrizes que eu julgo serem muito limitadores para a construção de um trabalho autoral. Eu faço samba do jeito que faço justamente por não aceitar as normas impostas ao gênero por aqueles que se julgam seus guardiões.

O que de cara me chamou a atenção na obra de Nelson Cavaquinho foi exatamente o fato de ser inclassificável. Sabemos que é samba por sua estrutura, mas é difícil encontrar um paralelo na história da música brasileira antes ou depois dele e acho que isso vem justamente do seu caráter inventivo. Nelson, assim como Noel Rosa, Ismael Silva, Geraldo Pereira, Monsueto, Cartola, Zé Ketti e tantos outros, eram inventores. Esses artistas inventaram a música brasileira, por isso é muito estranho tratar o samba como peça de museu. Para mim, se alguém ainda busca andar para a frente com a canção brasileira, transformá-la, é inevitável fazê-lo através do samba, pelo menos é o que procuro fazer com o meu trabalho.

“Para mim, se alguém ainda busca andar para a frente com a canção brasileira, transformá-la, é inevitável fazê-lo através do samba…”

Há algum objetivo particular quando você reinterpreta o repertório de Nelson Cavaquinho com ruídos e dissonâncias? Me parece que você não quis “atualizar”, mas ressaltar traços da obra apagados pelos clichês do samba enquanto “gênero”…
Em primeiro lugar, é preciso dizer que ruídos e dissonâncias estão no cerne da obra e da interpretação de Nelson Cavaquinho. Sua voz arranhada beirando o desagradável, seu violão beliscado cheio de arestas, a junção desses dois elementos “defeituosos”, formam um conjunto dos mais estranhos e radicais em toda a música brasileira.

Com isso em mente, me preocupei em evitar dois caminhos que me pareciam em certa medida muito confortáveis para se abordar a música do Nelson. Um, era justamente tratar sua obra com demasiado respeito, e na impossibilidade de imitá-lo (ninguém seria capaz de tal façanha), produzir arranjos genéricos, baseados na forma reconhecida do samba, com ideias requentadas e repetidas a exaustão por muitos dos que se dizem sambistas. O outro, era sucumbir a tentação de uma atualização vazia, como por exemplo, agregar elementos eletrônicos ou executar suas canções a partir de um powertrio de rock, como se isso fosse capaz de soar mais contemporâneo que o próprio Nelson.

Diante disso, construi este tributo tentando não perder de vista as características para mim mais marcantes da música do Nelson, mas interpretando-a a partir do meu próprio trabalho autoral. Se algo diferente, se uma terceira coisa tenha surgido desse encontro, e modestamente eu acho que surgiu, diz muito da influência do Nelson no meu trabalho e do modo como eu a venho processando ao longo da minha carreira.

Pode relatar o modo como você concebeu o disco? Uma grande quantidade de músicos, arranjos variados: como se deu esse imenso processo?
Eu queria de alguma maneira manter o lado desajustado e pouco organizado do Nelson, por isso entrei em estúdio completamente sem nenhuma ideia pré-concebida, a não ser o repertório já escolhido. Daí, fui chamando, um a um, os músicos que queria que estivessem comigo nesta empreitada. Muitas vezes sem mesmo saber qual música iria gravar, determinado músico aprendia a canção ali no momento da gravação (isso no caso de não a conhecer anteriormente), escolhíamos o tom para minha voz e começávamos a gravar as primeiríssimas ideias que fossem surgindo. O próximo músico a entrar em estúdio, não apenas começava uma nova faixa, como ainda interferia nas faixas já gravadas pelos músicos que o antecederam e assim fomos construindo o disco. Privilegiando a primeira intuição, não dando espaço para uma elaboração mais apurada, incorporando as imperfeições, as estranhezas e os “erros” de uma primeira ideia. Penso que dessa maneira, nos aproximamos da “imperfeição” que tanto me fascina em Nelson Cavaquinho. Exceção à regra, são os belíssimos arranjos de metais escritos pelo Thiago França para “Mulher Sem alma” e “Juízo Final”.

Como cantor, como você pensou a interpretação em cada canção? Foi um desafio interpretar tantas canções em um só trabalho?
Primeiro é preciso reconhecer que negligenciei durante muito tempo minha voz, acreditei demasiadamente no conceito do cantautor, achando que por serem minhas as canções, o modo que fosse que eu as cantasse já daria conta de sua interpretação. Por conta disso desenvolvi um quase não-canto, reto, sem muitos desenhos melódicos, no limite, um canto sem nenhuma expressão, impermeável ao texto e a melodia de cada canção.

Mas desde meu disco Um Labirinto em Cada Pé (2011) venho tentando mudar isso, testando outras possibilidades para a minha interpretação, tratando-a também como parte importante da própria composição e penso que finalmente encontrei uma identidade própria em Rei Vadio — ainda que não saiba dizer qual é, mas identifico ali uma voz própria. Foi o disco em que eu mais experimentei outros modos de cantar, pois não faria sentido encontrar um único canto para todas as canções do disco, ainda que o assunto tratado por elas seja aparentemente o mesmo: a morte. Porém, o modo como cada canção trata esse tema é muito diferente entre si. Por isso precisei encontrar vozes para cada uma das canções, diferentes do meu canto habitual, mas, sobretudo, diferente das interpretações do Nelson. Ainda que fosse impossível para mim ou para qualquer um imitá-lo, me preocupei em nenhum momento tentar emular seu canto e tendo a plena consciência, em todo o processo de criação deste disco, de que jamais cantaria tão belamente suas canções quanto o próprio Nelson Cavaquinho.

No texto do Nuno Ramos, destaca-se na obra de Cavaquinho e Cartola, a abstração, a sobriedade e a velhice, Nelson tendendo para o Trágico. Seria a obra de Nelson estranha mesmo em relação ao samba?
Antes de mais nada quero dizer da minha alegria em republicar no encarte do disco este texto primoroso do Nuno, publicado originalmente em 2001, no número 01 da revista Serrote do Instituto Moreira Sales. Quanto a obra do Nelson Cavaquinho, eu acho que é absolutamente original dentro da música brasileira como um todo, mas em relação ao samba, que seria o terreno, digamos, mais adequado a sua apreciação, para mim essa originalidade se acentua ainda mais. Se quisermos, podemos identificá-lo com a face menos luminosa do samba, dos sambas de cadência lenta, de letras tristes, características presentes em sua música que o faz se alinhar a outros compositores. Além de Cartola, a quem o Nuno se vale de contraponto ao Nelson em seu texto, incluo ainda outro grande artista também próximo do universo dos dois e a quem costumo chamar de duplo baiano do Nelson, falo de Batatinha. Mas também em relação a eles, Nelson se mantém original. Reproduzo aqui trecho do texto que escrevi sobre o Nelson em 2011, ano de centenário de seu nascimento: Batatinha e Cartola, cada qual a sua maneira, procuram driblar a tristeza. Batatinha com seu acesso direto aos sentimentos, tratando-os pelo nome, negociando uma saída. Cartola, protegido de sua enorme sabedoria e experiência, refugiando-se na beleza possível de sua vida dura. Diferente dos dois, Nelson aceita a derrota, não teme o sofrimento, nem pensa torná-lo suportável. Encara a tragédia como o natural da vida.

“Nelson aceita a derrota, não teme o sofrimento, nem pensa torná-lo suportável. Encara a tragédia como o natural da vida.”

Ainda citando o texto do Nuno, ele destaca a extemporaneidade da obra de Nelson. Quais as características que você destacaria como centrais na obra do autor que justificariam sua atualidade?
A passagem do texto do Nuno que mais gosto e que para mim resume brilhantemente a obra do Nelson, diz o seguinte: “Ele (Nelson) é o nosso contato imediato com aquilo que deu profundamente errado em nós”. Acho que aí está um ponto, talvez o mais contudente, infelizmente, que mantém a obra do Nelson ainda atual. Sua música teima em nos lembrar do que nossa vida, nosso país, poderia ter sido e o que, apesar dos grandes avanços em anos recentes, ou até por isso mesmo, teimamos em continuar a não ser. Recentemente, ouvi muita gente, muita mesmo, dizendo ser “Juízo Final” a trilha ideal para os dias atuais. Chega a ser trágico imaginar que versos como “O sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações”, façam tanto sentido ainda hoje.

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GAFIEIRA IMPROVISADA
O Large Unit de Paal Nilsson-Love se encontra com o samba carioca

Paal Nilssen-Love (no centro) e Large Unit. Foto: Håvard Gjelseth.

Em qualquer expressão musical, até mesmo na mais erudita, é possível detectar os traços perenes da improvisação. A improvisação, porém, não se resume ao ato de criar uma frase melódica ou uma síncope de repente. A capacidade de improvisar foi fundamental para, por exemplo, criar o surdo e o tamborim, bem como os ritmos e convenções que viriam a se tornar referência na batucada carioca. Conta Humberto Franceschi que, em virtude do crescimento da primeira escola de samba ainda nos anos 30, a Deixa Falar do Estácio, nem todos os foliões conseguiam escutar o samba que era cantado. Com a intenção de resolver este problema, o compositor Alcebíades Barcelos, o Bide, lançou mão de suas habilidades técnicas como sapateiro e “encourou” uma lata de manteiga de 20 quilos com papel de saco de cimento umedecido, atando-o à lata com arames e taxinhas. O resultado da operação foi a criação deste instrumento grave ao qual chamamos surdo. Detecta-se na invenção de instrumentos e no modo de tocá-los a influência do improviso enquanto prática humana essencialmente criativa e, é claro, arriscada.

Há, portanto, diversas práticas de improvisação. No caso do chamado “free improv”, termo inventado na ponte anglo-nórdica criada por artistas como Eddie Prévost, John Stevens e Han Bennink, improvisar corresponde a uma terceira atividade, que é a de desenvolver técnicas para extrair sonoridades diferentes do corpo dos instrumentos já consolidados e tradicionais, além de estender essas técnicas ao mundo ao redor. Não é incomum assistirmos a grandes mestres da “improvisação livre” percutindo não somente os instrumentos, mas as paredes, o chão, os objetos, etc. A rigor, dentro do universo do improviso, samba e free improv estão mais próximos do que parece.

Dentro do universo do improviso contemporâneo, o baterista anglo-norueguês Paal Nilssen-Love representa uma força singular de criação e realização. Além de participar de algumas dezenas de projetos, como o The Thing e o Atomic, e ter gravado centenas de discos com nomes como Neneh Cherry e Peter Brötzmann, Nilssen-Love vem desenvolvendo uma pesquisa sonoro-musical ao redor do globo. Nota-se uma relação especial com o Brasil e com a música brasileira, já tendo visitado o país algumas vezes e gravado dois discos por aqui: Scarcity, parceria com o nowaver Arto Lindsay e Botafogo, com os músicos cariocas Arthur Lacerda, Eduardo Manso e Felipe Zenícola. Este envolvimento vem rendendo não somente parcerias na seara do improviso, mas também um interesse cada vez maior na exploração da riqueza de ritmos e possibilidades oferecida pela música brasileira. Interesse este alimentado por uma intensa atividade enquanto colecionador de discos e um amor profundo por Pedro Santos, Elza Soares, Milton Nascimento, Jair Rodrigues e Luiz Gonzaga.

Algumas dessas ideias foram jogadas no caldeirão do Large Unit, sua orquestra de composição com ampla abertura para o improviso. Contando com cerca de quinze membros, o Large Unit acaba de lançar Ana, o seu segundo álbum — o primeiro se chama Erta Ale (2014), além do EP Rio Fun (2015). Gravado no Rainbow Studio de Oslo, algumas horas depois da apresentação no Festival de Jazz de Oslo em agosto de 2015, Ana traz duas marcas importante: o ingresso de dois percussionistas brasileiros, o berimbau de Célio de Carvalho e a cuíca de Paulinho Bicolor; e o encontro tão inusitado quanto exitoso das síncopes brasileiras com a espiral exploratória do improviso.

Nas três faixas gravadas para Ana, algumas características dignas de nota. As composições simples e eficazes, geralmente ostinatos melódicos que se repetem ora como convenção, ora como uma investida reminiscente sobre o caos sonoro. Na faixa título, a melodia semelhante à canção de Dorival Caymmi, “O Vento”, torna o ambiente mais sombrio. E embora não se perceba a modificação substancial do timbre, a inserção dos instrumentos brasileiros se dá a partir de justaposições capazes de produzir encontros interessantes. Por exemplo, da cuíca com a tuba, com samplers, percussões alternativas, etc.

Fiz duas perguntas sobre este trabalho a Nilssen-Love e a Paulinho Bicolor, ambos ocupados em turnê e trabalhos, que enviaram as respostas abaixo. E, pelo visto, o jogo entre samba e exploração do improviso está apenas no começo.

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Como esta parceria entre músicos noruegueses e brasileiros se iniciou?
Nilssen-Love: Basicamente, tudo começou há cerca de dois anos, quando realizei um workshop na Audio Rebel (RJ) sobre improvisação e, em particular, “improvisação livre” (free improv). Paulinho foi um dos músicos que frequentaram a oficina. Eu fiquei realmente impressionado com sua grande capacidade de mergulhar no que chamamos de “improvisação livre”. E, não menos importante, ouvir a cuíca pela primeira vez ao vivo foi uma experiência e tanto! Nós nos encontramos várias vezes durante as minhas viagens para o Rio e enquanto nos tornávamos amigos, também percebíamos a necessidade de fazermos algo juntos. Quando surgiu a idéia de ampliar minha orquestra de improvisação, o Large Unit, não tive dúvida de que ele seria uma de minhas escolhas.

Bicolor: Lembro como se fosse hoje: o pessoal da Audio Rebel me convidou para uma sessão de “improvisação livre” mesclando músicos do mundo do samba com um baterista norueguês. Prontamente respondi dizendo que iria com a cuíca. Naquela época eu já andava bastante interessado em conhecer outras realidades musicais, não fazia muito tempo que eu tinha terminado a faculdade com um trabalho sobre o Walter Smetak. Então, eu já estava instigado por essas abordagens musicais não-convencionais. Daí participei desse encontro com Paal na Audio Rebel, onde na mesma semana eu participei de um workshop que ele deu sobre improvisação. Depois disso, mantivemos contato e poucos dias depois ele perguntou se eu toparia participar do Large Unit. Eu topei, claro, mas achei muito doido. Pra falar a verdade, ainda acho muito doido. (risos) Ele tinha me visto tocar cuíca só duas vezes e em situações muito diferentes da que eu encontrei na Noruega: um grande festival, um dos melhores estúdios de gravação do mundo… Até hoje minha ficha ainda não caiu direito.

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O que esperam no futuro desta combinação entre samba e free improv?
Nilssen-Love: No Large Unit, que considero como um caldeirão de todos os meus interesses, influências etc, vejo que, se conseguirmos manter a coesão durante a turnê, vamos realmente produzir o encontro do samba e da improvisação. Existem muitas ligações entre música brasileira desde os anos 60 e a música experimental. E, claro, o jazz europeu e americano são inteiramente baseados na experimentação, assumindo riscos, desenvolvendo estilos e cruzando os gêneros. E o melhor em tudo isso é que nós não temos a mínima ideia de onde essa estrada vai nos levar.

“E o melhor em tudo isso é que nós não temos a mínima ideia de onde essa estrada vai nos levar.”

Bicolor: Sinto que ainda preciso entender melhor o improv e trabalhar bastante pra conseguir encaixar a bagagem que o samba me deu nesse contexto. Acho que a cuíca em especial é um instrumento que faz essa conexão entre samba e improv com muita propriedade. Ela subverte o convencional já pelas simples características físicas, sonoras e de performance que ela reúne. Apesar de ser considerada um instrumento tradicional, a cuíca comporta a experimentação com outras sonoridades; a cuíca não é só detalhe e ornamento, pode ser um instrumento central na composição; a cuíca é transgressora, capaz de produzir melodias microtonais não-temperadas e, com isso, ampliar o espectro sonoro das manifestações das quais faz parte. A cuíca pode ser tocada em ostinato na base instrumental de uma canção, como um instrumento de acompanhamento, ou à moda dos improvisadores; pode ser minimalista e diversificada, ruidosa e melódica. Então tenho muito interesse em desenvolver essa ideia da cuíca no improv, e tenho certeza que essa proximidade com o Paal vai ajudar muito. Eu admiro a sensibilidade dele com a música brasileira — que não é de hoje e também não se restringe ao samba —, e acho que ele também tem muito a ganhar com essa troca que temos mantido.

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SIMPLESMENTE VOZ E VIOLÃO
Em novo álbum, Ivor Lancelotti se vale da simplicidade para abrir caminhos

Ivor Lancellotti. Foto: Beto Martins.

Conforme se consolida no Brasil uma tradição musical centrada sobre a voz, nossa percepção e capacidade de criação neste registro se torna cada vez mais aguçada, propiciando o surgimento de grandes cantoras e cantores. Ao atribuir a um(a) cantor(a) a característica de “grande” não me refiro ao alcance, à técnica ou à exuberância da interpretação, mas, sobretudo, à capacidade expressiva do canto. O canto como uma sedimentação de vivências e experiências que alteram até mesmo o timbre da voz, desvinculando-a do aparelho fonador e alçando-a no espaço evocativo do infinito. Assim é o canto rouco de Ivor Lancellotti, cantor e compositor que entoa suas próprias criações: elegante, econômico e, ao mesmo tempo, carregado de vivências, portador de um poder evocativo que se encaixa na simplicidade quase minimalista de suas composições.

Em janeiro deste ano, Lancellotti lançou Tudo o que eu quis, seu quinto álbum solo, editado pelo selo Dubas. Idealizado e produzido por Daniel Roland, com a colaboração do norte-americano Joey Altruda, o disco traz as participações do próprio Altruda (contrabaixo), Maria Borba e Alvinho Lancellotti (vocais), Altino Toledo (bandolim), Zero Telles e Domenico Lancelloti (percussão), Renata Neves (violino), Pedro Sá, Camila Costa e Junior Pita (violão). Ivor assina todas as composições, em sua maioria inéditas: quatro com seu filho Alvinho Lancellotti, uma em parceria com o compositor baiano Roque Ferreira (“Quixeramobim”) e outra com seu outro filho, Domenico Lancellotti, “Bravo Mar”, gravada pelo grupo Fino Coletivo. Canções e arranjos marcados por uma naturalidade comovente, oscilando entre temas confessionais e românticos, Tudo o que eu quis privilegia o violão e a voz, destoando dos discos anteriores, mais arranjados e “cancionais” — como, por exemplo, o último, Em boas e mais companhias, disco de sambas no qual se encontra com Moysés Marques, Pedro Miranda, Áurea Martins, entre outros.

A primeira vez que escutei o nome de Ivor Lancellotti foi no contexto do samba, compositor e intéprete ao lado de João Nogueira na canção “De rosas e coisas amigas”, do disco Vida Boêmia de 1978. Ele também foi parceiro de Délcio Carvalho na belíssima “Quando essa paixão me dominar” e de Paulo César Pinheiro em “Amor Alheio”. Adiante, foi se mostrando um mestre da canção romântica pungente, gravado por uma longa lista de artistas que vai de Roberto Carlos a João Nogueira, de Elizeth Cardoso a Joanna, passando pelo saudoso Cauby Peixoto, Alcione, Ângela Maria, Nelson Gonçalves, entre vários outros. Sua vinculação ao samba é, portanto, pontual, abrindo caminho para uma aproximação com o fado e os gêneros precursores e derivados. Como na própria faixa-título, um indefectível fado português que versa sobre as perspectivas de passado e futuro de um homem experiente: “e volto a sonhar, sonhar é renascer, e posso até jurar que o ato de esperar é o que me faz viver.”

Abaixo, um breve bate papo com o autor sobre o disco, influências e composição. Em tempo: Ivor Lancellotti se apresenta no dia 26/05 na Casa da Gávea, Rio de Janeiro.

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Em Tudo o que eu quis é perceptível a presença do fado português, seus precursores e ramificações na música brasileira e mundial (percebo ecos do lundu, da modinha e da morna caboverdiana). Como você caracterizaria o movimento deste disco em relação a seus discos anteriores?
Eu ouvi e absorvi tudo em relação a música. Eu não tenho técnicas, não estudei música. O meu violão, costumo dizer, é puramente teatral e depende demais do meu estado de espírito. Não tenho preferência por ritmos, pois sou aberto a tudo que é bom, verdadeiro e feito de coração. Já compus de tudo um pouco como sambas, fados, boleros, tangos, toadas e baladas de um modo geral. Não defendo bandeiras, gosto do que me emociona. Em relação a esse disco foi o primeiro que fiz sem saber que estava fazendo.

Graças ao meu amigo músico, ator e produtor Daniel Roland — que me conhece a fundo e pensa como eu —, que me fez um convite para ir no estúdio dele. Lá rola um astral maravilhoso, gravar músicas inéditas para esvaziar um pouco minha gaveta e fazer simplesmente voz e violão. E assim, pela primeira vez, usei meu violão numa gravação. Amo Lisboa e me engravidei de fados em duas vezes que estive por lá. Sou fã de Cesaria Évora e acredito que tem muito dela nesse disco.

Eu componho assim: seguindo o primeiro acorde que me vem e o primeiro andamento de minha mão direita e venha o que vier! Quando a poesia não vem procuro meus letristas favoritos: meus dois filhos Domenico e Alvinho e o Roque Ferreira. Já tem muito tempo que venho mudando minhas composições e, do último disco para esse, tem uma vivência de mais de cinco anos.

“Em relação a esse disco foi o primeiro que fiz sem saber que estava fazendo.”

Outra característica perceptível é a economia dos arranjos e a valorização do violão e, sobretudo, da sua voz. Como se deu essa escolha?
Como eu disse na resposta acima, essas gravações foram feitas a pedido do Dani em seu estúdio (o Raposão) para registros de algumas músicas inéditas, mais recentes. No próprio estúdio, que por lá passam vários músicos e amigos, surgiu a ideia do Dani de, pra cada música, usar um tipo de instrumentação com os músicos que mostraram vontade de participar. Exceção feita a Joey Altruda, que tocou contrabaixo e piano em quase todas as músicas por ter se encantado com o trabalho. Assim foi feita a concepção do CD: valorizando principalmente o meu violão, a minha interpretação e a economia dos arranjos.
Você é um autêntico cantautor em um país que tem na música um dos seus elementos centrais. Como você percebe a música brasileira hoje, particularmente no que diz respeito à composição?
Primeiramente a condição de ter me tornado um cantautor é uma questão quase de sobrevivência, porque atualmente é a única maneira do compositor mostrar a sua obra. O lado positivo dessa nova realidade é o autor ter plena liberdade de vestir a sua criação e ser independente com sua arte sem qualquer imposição mercadológica. E com isso dá a oportunidade de surgimento de novos talentos, com uma gama imensa de variações artísticas, utilizando as várias plataformas digitais para divulgação de seu trabalho.

 

*Professor da Faculdade de Educação/UFRJ, autor de “Tom Zé — Estudando o Samba” (Editora Cobogó, 2014).

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Bernardo Oliveira:
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