Foto: Jornalistas Livres
“Programa de Temer mostra falta de conhecimento da pobreza no Brasil”
O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome fechou suas portas antes mesmo de encerrar, no dia 13 de maio, o 11° Seminário Internacional de Políticas Sociais para o Desenvolvimento. Organizado pela pasta – extinta após a reforma ministerial do Governo Temer –, o evento de três dias recebeu 70 delegações de diferentes países que buscavam informações sobre os programas sociais brasileiros, em especial o Bolsa Família. Nesse cenário de fechamento de um ciclo, a ex-ministra e economista Tereza Campello falou ao EL PAÍS, no dia 10 de maio, poucas horas depois de ter aberto o Seminário. Na entrevista abaixo, Campello, que entrou no Governo durante a primeira gestão de Dilma Rousseff, faz um balanço do que foi alcançado no Brasil com as políticas sociais e critica as sugestões de mudanças, propostas pelo PMDB no documento Travessia Social, no Bolsa Família.
Pergunta. Qual é a sua avaliação sobre a importância dos programas sociais hoje no Brasil?
Resposta. Toda. Mas deixa eu ilustrar de outro modo. Estamos começando esta entrevista logo após a abertura do Seminário Internacional, que é uma atividade anual que tivemos que criar para dar contra de receber todas as delegações mundiais interessadas nos avanços sociais brasileiros. Quando cheguei ao Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), em 2011, por exemplo, eu recebi 72 delegações. Praticamente uma por semana. Só criando o Seminário foi possível dar conta de receber todos os interessados. O que essas pessoas vêm fazer aqui? Tentar entender como o Brasil conseguiu, em tão pouco tempo, resultados tão impactantes.
P. De quais resultados você está falando?
R. Vou citar três relacionados ao Bolsa Família, mas, com certeza, poderia citar muitos outros. O primeiro é sair do mapa da fome. Nós saímos de um quadro em que 10% da população brasileira vivia com insegurança alimentar, para pular para uma realidade em que apenas 1% está nessa situação, segundo o atual relatório da ONU. O segundo é ter superado a extrema pobreza que foi a meta que a presidenta Dilma nos colocou. Se você olhar os dados de 2014, nós temos menos de 2,5% da população em situação de extrema pobreza. As Nações Unidas considera que para superar a extrema pobreza é necessário baixar a estatística para 3% da população. E, olha, a meta era chegar só em 2030 com esse percentual. Quer dizer, estamos em 2016 e já abaixo da meta. O terceiro resultado é ter erradicado o trabalho infantil entre menores de 14 anos de baixa renda. Pois então, não é questão de achar isso ou aquilo do Bolsa Família, olhe os números. Eles chamaram a atenção do mundo todo.
P. Você não acredita que depois de 13 anos talvez o programa precise de ajustes?
R. Sempre precisará de ajustes, mas nós nunca deixamos de fazer isso. O Bolsa Família existe desde 2003 e não houve nenhum ano em que ele não tenha passado por aperfeiçoamentos. Ao longo do período da Presidenta Dilma, nós tivemos modificações importantes no programa que permitiram que ele, não só aumentasse muito o valor, mas que chegasse principalmente nas crianças. Quer dizer, todo ano a gente faz processos de controle. Tem dois grandes controles que acontecem no ano, fora pequenas fiscalizações e ações mais direcionadas. Isso nos dá a grande segurança de afirmar que o Bolsa Família é hoje não só o maior programa de transferência de renda do mundo, como o mais bem focalizado.
P. Ricardo Paes de Barros, economista que ajudou no desenvolvimento do Travessia Social – programa que fala de políticas sociais do Governo Temer – tem defendido que seriam necessários ajustes de relojoeiro para que o Bolsa Família passasse a funcionar melhor.
R. Bom, mudança de relojoeiro é mudança de relojoeiro. Mas o que eles estão propondo não são pequenos ajustes. O que eles estão propondo é deixar de cobrir 25% da população e passar a ter cobertura nos 5% mais pobres. Ou seja, você sai do relógio digital e volta para a idade da pedra com o relógio de sol. O Bolsa Família chega a 47 milhões de pessoas no Brasil. Se você fizer a conta de quais são os 5% mais pobres do Brasil, você chega em 10 milhões pessoas. Quer dizer, focar nesses 10 milhões, significa tirar do programa 36 milhões de pessoas, das quais, 16 milhões tem menos de 15 anos de idade. Esse ajuste de relojoeiro que eles estão propondo é um ajuste de quem quer fazer, na verdade, ajuste fiscal. E a conta, nesse caso, não deve ser essa, mas a de botar na balança o que o Brasil conquistou nos últimos anos e pode correr o risco de perder agora. Também é importante dizer que esse Travessia Social mostra desconhecimento da pobreza no Brasil. Eles dizem, por exemplo, que esses 5% sãos compostos de uma população esparsa e vivendo em locais ermos. Isso não é verdade. O IBGE mostra que mais da metade dos mais pobres estão em grandes centros urbanos.
P. Não existe aí uma diferença de visão?
R. Com certeza. Só que um programa é um limão e o outro é uma melancia. Eles já disseram que o Bolsa Família está inchado. Bom, se o ideal for focar só nós 5% mais pobres, então ele realmente está inchado. São dois conceitos diferentes. Eles querem gastar pouco, de preferência nem gastar. A gente quer investir no pobre, porque esse é o desenho de desenvolvimento que nós acreditamos. Essa população vai gastar com comida, com roupa, com calçado. Isso é bom para o Brasil como um todo, não apenas para as populações de baixa renda. Nós achamos que o programa tem que incluir as pessoas. Qual é a principal diferença de desenho? Eles querem um programa assistencialista para pessoas que estão à beira da calamidade. Nós queremos um programa de proteção social, focado na população de baixa renda e com um conjunto de outras políticas que giram ao redor. Para nós o Bolsa Família é uma porta de entrada para o radar do Estado. Elas vão poder ter acesso a energia elétrica, a cisternas, a programas de qualificação profissional e um conjunto de outras ações.
P. Mas existe a crítica de que o cadastro único, que recolhe centenas de informações sobre as famílias, é subaproveitado, porque ele considera apenas a renda da pessoa para dar ou não o benefício.
R. Isso tem a ver com a história do preditor de renda, que é você pegar um monte de variável do cadastro único e transformar tudo em um número que mostra quem deve e quem não deve receber o dinheiro do programa. É um debate recente no mundo e realmente tem uma pequena experiência na cidade do Rio de Janeiro, mas não há nenhum consenso entre os especialistas. O Rafael Osório, por exemplo, que trabalhou no IPEA e hoje é um dos maiores especialistas em pobreza do mundo, defende que o uso do preditor de renda não é aconselhável para dizer quem é mais pobre que o outro. Uma coisa é usar esse mecanismo para conseguir indícios sobre a real situação das pessoas e, a partir disso, ir às moradias para verificar se há algum desvio. Outra é decidir com base nos bens materiais de alguém, coisa que está no cadastro único, se existe pobreza ou não.
P. Você está dizendo que uma pessoa pode ter mais bens que a outra, mas estar no mesmo nível de pobreza?
R. Sim. A pobreza não é uma variável do que você acumulou, mas de quanta renda você tem. É importante dizer que os estudiosos de pobreza acreditam que o melhor indicador é a renda. Se a pessoa é pobre de renda, será pobre de outras coisas também. Ela ter ou não eletrodomésticos é uma boa amostra de que ela não é pobre? Não, não é. A pessoa pode estar desempregada, com a família em uma situação vulnerável. São muitas outras coisas que influem. Essa sugestão de que é necessário conhecer melhor a pessoa para dar o benefício é ou muito cruel ou muito cara. Alguns poucos países tem recursos para fazer essa investigação caso a caso de quem está em programas de transferência de renda, mas nós não temos esse dinheiro. O Bolsa Família é um programa barato e que investe nas pessoas, nós não temos dinheiro para gastar com burocracia. Investir nas famílias é muito mais lógico, porque isso gera riqueza para o país como um todo.
P. Mas, então, qual é a razão de um cadastro único extenso?
R. Para construir outras políticas de combate a pobreza que caminham junto ao bolsa família, como o programa de cisternas que leva reservatório de água para regiões do semiárido. Serve para saber que a gente saiba quem está precisando de saneamento básico, se tal casa está muito longe do primeiro posto de saúde, etc. O cadastro único é uma ferramenta de planejamento para políticas de baixa renda. O modo como eles estão propondo usá-lo, para chegar aos 5% mais pobres, é um mecanismo de exclusão, que vai levar em conta um conjunto de variáveis hiperdetalhadas para fazer um diagnóstico caríssimo para definir quem é pobre e quem não é antes de dar o bolsa família. A experiência atual só é tão exitosa porque é universalizante, o contrário dessa outra sugestão.