“Fim de jogo? Calma. Ainda não. A frente antigolpeachment tem estratégia: convencer o ‘Brasil profundo’, as vastas massas de trabalhadores pobres, de que foi praticada uma ilegalidade; reconstruir a imagem de Rousseff como alvo de profunda injustiça; reenergizar a frente política progressista; assegurar que o governo de Brutus n. 1 fracasse; e criar condições para o homem que virá do frio nas eleições presidenciais de 2018.”
por Pepe Escobar, no Russia Today
Nunca na moderna história política foi tão fácil “abolir o povo” e simplesmente apagar 54 milhões de votos votados em eleição presidencial livre e justa.
Esqueçam os ‘papeizinhos pendurados’[1] das eleições na Florida em 2000. O dia de hoje viverá para sempre na história da infâmia em todo o Sul Global –, dia em que uma das mais dinâmicas democracias da região naufragou num regime plutocrático, recoberto por muito tênue verniz jurídico/parlamentar, com todas as garantias da lei e da Constituição entregues agora à mercê das mais sórdidas elites comprador.
Depois da nunca faltante maratona cenográfica, o senado do Brasil decidiu por 55 votos a 22, que a presidenta Dilma Rousseff deve ser julgada por “crime de responsabilidade” – relacionado a manobras contáveis que teriam sido usadas para mascarar resultados no orçamento do governo.
É a culminação de um processo que começou ainda antes de Rousseff ser reeleita no final de 2014 com mais de 54 milhões de votos. Já descrevi a gangue de perpetradores do que a criatividade dos brasileiros chamou de ‘golpeachment’ (mistura de “golpe” e impeachment) como as Hienas da Guerra Híbrida.
Esse golpeachment sofisticado – apoiado por um Colegiado Jurídico-Eleitoral de Inquisição – empurrou a Guerra Híbrida a níveis que ela ainda não alcançara.
A Guerra Híbrida como foi aplicada no Brasil exibiu elementos clássicos de ‘revolução colorida’. Claro que não houve necessidade de implantar zonas aéreas de exclusão nem imperialismo humanitário para “proteger direitos humanos” –, para nem falar de provocar uma guerra civil no país-alvo. Mas considerando o alto nível de resistência do estado-vítima, onde há sociedade civil muito dinâmica, os planejadores da Guerra Híbrida nesse caso apostaram num mix de capitulação – e traição-usurpação – pelas elites locais, misturadas com “protestos pacíficos” e campanha incansável a favor dos golpistas por meio de uma mídia-empresa aliada do golpe. Podem chamar de ‘Guerra Civil Light.‘
O golpe gerou proveito fabuloso, em termos de custo-benefício. Agora, o sistema político brasileiro (imensamente corrupto) e todas as forças atualmente alinhadas pró-golpe do Executivo/Legislativo/
Bem-vindos à mudança de regime & golpe light – em resumo: o que resta da política – como a guerra por outros instrumentos contra os países BRICS. Software novo, novo sistema operacional. Arrastando um patético corolário: se os EUA já são o Império do Caos, o Brasil alcança hoje, com alarido, o status de Sub-Império dos Canalhas.
Canalhas, canalhas a mancheias
Rousseff pode ser acusada de erros graves na gestão da economia, e de ter sido incapaz de qualquer articulação política no viveiro de tubarões que é a política (imensamente corrompida) do Brasil. Mas a presidenta não é corrupta. Cometeu erro grave no combate contra a inflação, de deixar que as taxas de juros subissem a nível insustentável; a demanda no Brasil, por isso, caiu dramaticamente, e a recessão virou norma. Dilma é o bode expiatório conveniente, a quem atribuir todas as responsabilidades pela recessão no Brasil.
Sem dúvida, Dilma pode ser declarada culpada por não ter qualquer Plano B para resistir contra a recessão global. O Brasil funciona, na essência, sobre dois pilares: exportação de commodities e empresariado local que não vivem se não estiverem agarradas às tetas do Estado. Infraestrutura, em geral, em situação de calamidade – o que se soma ao chamado “custo Brasil” que pesa sobre os negócios. Quando os preços das commodities desabaram, os fundos do Estado escassearam e tudo entrou em paralisia – crédito, investimentos, consumo.
O pretexto para o impeachment de Rousseff – ter supostamente transferido empréstimos de bancos públicos para o Tesouro, para mascarar o tamanho do déficit fiscal do Brasil – é frágil como nuvem de fumaça, para dizer o mínimo. Todos os governos ocidentais fazem a mesma coisa – e a lista inclui governos de Clinton, de Bush e de Obama.
A Operação Lava-Jato que já chega aos dois anos, foi criada para desvendar toda a corrupção do sistema político no Brasil – os crimes de colusão dos executivos da gigante petroleira Petrobras, com empresas de construção e financiamento de campanhas eleitorais. A Lava-Jato nada tem a ver com o movimento de golpeachment. Mas, sim, houve duas trilhas convergentes rumo a uma mesma destinação: criminalizar o Partido dos Trabalhadores e, se possível, consumar o assassinato político de Rousseff e de seu mentor, o ex-presidente Lula.
Quando o golpeachment chegou à Câmara dos Deputados – espetáculo de horrores insuperáveis –, Rousseff foi esquartejada pelas hienas da Guerra Híbrida do tipo “BBB” – bala, bíblia e boi [em inglês, BBC “bullet,”bible” e“cattle”], onde “bala” é a indústria de armas e segurança privada; “bíblia”, é codinome para fanáticos evangélicos (pastores e fiéis); e “boi”, designa o poderoso lobby do agronegócio.
As hienas BBB agem praticamente todos os partidos políticos no Brasil, oficce-boys serviçais das grandes empresas e – por último, mas não menos importante – poderosos agentes ativíssimos de corrupção. Todos esses se beneficiaram muito de campanhas políticas milionárias. De fato, toda a investigação da Operação Lava-Jato gira em torno de financiamento de campanhas, que no Brasil – diferente dos EUA, onde os lobbies são atividade legal – é ‘negociação política’ digna de “Os oito odiados” de Tarantino.
O senado brasileiro não é o que se poderia dizer “câmara alta” – no sentido de mais civilizada que outras câmaras. 80% dos membros são homens brancos – num país amplamente mestiço e miscigenado. Espantosos 58% dos senadores brasileiros estão sendo investigados por crimes conectados à Operação Lava-jato. 60% são herdeiros de dinastias políticas [deputados-filhos e deputados-netos, que na sequência convertem-se em senadores-filhos e senadores-netos ou sobrinhos ou apadrinhados (NTs)]. E 13% – que lá estão como suplentes – absolutamente nunca foram eleitos. Dentre os que votaram a favor do impeachment, 30, de 49, são investigados por algum tipo de problema com a lei. A maior parte das investigações têm a ver com lavagem de dinheiro, crimes financeiros e corrupção rampante. Renan Calheiros, presidente do Senado – que presidiu a sessão que determinou o afastamento da presidenta por até 180 dias, o golpeachment – é investigado em nada menos que nove linhas separadas de investigações na Operação Lava-Jato, além de ser objeto de dois processos criminais já em andamento.
Conheçam os Três Amigos da República de Bananas
Rousseff está com o mandato suspenso por no máximo 180 dias, enquanto uma comissão do Senado trabalha para golpichá-la por bem ou por mal. E entra o vice-presidente, príncipe coroado, presidente reserva Michel Temer – operador esperto, do tipo que se movimenta nas sombras – que Rousseff chamou de “usurpador”.
Não há dúvidas de que esse Brutus provinciano agiu como usurpador, por definição que ele mesmo distribuía por Twitter, dia 30 de março do ano passado: “Impeachment é impensável, criaria crise institucional. Não há base judicial ou política para impeachment.”
O governo Temer já nasceu com a marca do pecado original: é ilegal e massivamente impopular. Pesquisas de opinião sobre quantos brasileiros aprovam Temer, oscilam entre épicos 1-2%.
E já foi condenado, semana passada, por crime de violação de limites para financiamento de campanha eleitoral. Pode-se prever que esteja afogado no pântano de corrupção exposto por duas delações premiadas na Operação Lava Jato, acusado de participar de um esquema ilegal de compra de etanol; se condenado, pode tornar-se inelegível por oito anos. 60% dos brasileiros querem que Temer também seja impichado – no mínimo, sob as mesmas acusações levantadas contra Rousseff.
Brutus n.1 (Temer) nunca teria chegado a gozar seus 15 minutos de fama sem a colaboração ativa de Brutus n. 2 (o maior escroque do Brasil, ex-presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha – acusado de ter cometido crimes de perjúrio e recebimento de propinas, de manter contas ilegais na Suíça, o qual, agora, afinal, foi afastado pela Suprema Corte). Quem deu rédea solta à burocracia do processo do impeachment foi Brutus n.2, ao que parece por espírito doentio de vingança: o Partido dos Trabalhadores não lhe deu proteção quando começou a crescer o tsunami de acusações de corrupção. Brutus 2 usou todos seus muitos poderes – é coordenador de um ‘movimento’ para financiamento de campanhas dentro do Congresso – para tentar obstruir a investigação Lava Jato. E seu suplente, presidente interino da Câmara de Deputados do Brasil também está sendo investigado, acusado de receber propina.
Aí estão Temer, Cunha, Calheiros: esses Três Amigos são as verdadeiras estrelas da República de Bananas dos Canalhas/Escroques.
Ah, e que ninguém suponha que a Suprema Corte seja livre de vergonhas. O juiz Gilmar Mendes, por exemplo, é vassalo escandalosamente empenhado da plutocracia. Quando um advogado de defesa do governo do Brasil apresentou moção para suspender o impeachment, esse juiz disparou: “Ah, que peçam a Deus, ao Papa ou ao Diabo”. Outro pomposo juiz recebeu ação para afastar Cunha da presidência da Câmara em dezembro de 2015. Mas só apreciou o pedido mais de quatro meses depois, quando toda a imundície do golpeachment já entrava em fase final, sem volta. E sentenciou que “não há provas de que tenha contaminado o processo de impeachment.”
Por fim, coroando o monturo, temos a mídia-empresa brasileira dominante – cujo abre-alas é o tóxico império Globo – que gozosamente foi beneficiado e aproveitou-se do golpe militar de 1964.
Tudo isso para tentar obrar a restauração neoliberal
Wall Street – e a City de Londres – não conseguem disfarçar a excitação em torno do golpeachment, certas de que Brutus 1 Temer será alguma espécie de upgrade econômico. Pode até ser que se atreva a cutucar de leve as leis do Imposto de Renda no Brasil, kafkeanas e fazer alguma coisa para dar jeito no enorme buraco do sistema de aposentadorias. Mas o que a tal entidade mítica – os ‘mercados’ – e miríade de “investidores” babam só de pensar é a possibilidade de taxas de retorno estonteantes, tão logo o Brasil seja reaberto para especuladores e especulação. O jogo de Brutus n. 1 será uma orgia neoliberal, na verdade uma restauração, sem qualquer tipo de representação popular que atrapalhe.
A gangue do golpeachment irrita-se quando o pessoal lá é declarado conspirador e golpista. Mas fato é que não dão bola nenhuma para OEA, Mercosul, Unasul (todas essas organizações condenaram o golpe); e o Santo Graal, os BRICS, para os conspiradores e golpistas não valem um réis de mel coado. No governo de Brutus n. 1, o Ministério de Relações Exteriores, onde o golpe instalou um senador desprestigiado e em decadência, trabalhará para que o papel chave do Brasil entre os países BRICS naufrague, em benefício do Excepcionalistão.
Tudo o que se tem de saber é que nem o Prêmio Nobel da Paz Barack “lista de matar” Obama, nem a Rainha do Caos Hillary “Viemos, vimos, ele morreu” Clinton condenaram o golpeachment/mudança de regime light em curso. Perfeitamente previsível, considerando que a Agência de Segurança Nacional, NSA, do Excepcionalistão foram apanhadas espionando a Petrobras e pessoalmente a presidenta Dilma Rousseff –, evento do qual nasceu a investigação Lava Jato.
O porta-voz da Casa Branca Josh Earnest limitou-se às platitudes de rotina: “momento desafiador”, “confiança nas instituições democráticas brasileiras” e até “democracia madura”. Mesmo assim acrescentou, significativamente, que o Brasil está “sob escrutínio”.
Claro, consumou-se com sucesso o estágio atual de uma estratégia muito sofisticada de Guerra Híbrida. Mas há incontáveis pontos de suspense pela frente. A investigação Lava Jato – presentemente conduzida em câmera lenta – ganhará velocidade conforme seja liberada a dose mortal de veneno de muitas delações premiadas ainda na prateleira, para gerar meios para criminalizar suficientemente, ainda que sem provas, não só Dilma Rousseff mas, também a peça chave no tabuleiro de xadrez: Lula.
Fim de jogo? Calma. Ainda não. A frente antigolpeachment tem estratégia: convencer o “Brasil profundo”, as vastas massas de trabalhadores pobres, de que foi praticada uma ilegalidade; reconstruir a imagem de Rousseff como alvo de profunda injustiça; reenergizar a frente política progressista; assegurar que o governo de Brutus n. 1 fracasse; e criar condições para o homem que virá do frio nas eleições presidenciais de 2018.
House of Cards à brasileira? Boa aposta é que resolva-se com Lula derrotando as hienas da Guerra Híbrida, num abraço de cobra à Anaconda [orig. cobra clutch].*****
[1] Orig. Hanging chads, referência a cartões de votação que não foram completamente perfurados pela máquina de votar na Flórida, e foram arquivadas ainda com os ‘papeizinhos’ semiarrancados, que a perfuração devia ter arrancado completamente, mas não arrancou [NTs com informações de https://en.wikipedia.org/wiki/