Estreia do Cafezinho Literário com o escritor Leonardo Villa-Forte

Leonardo Villa-Forte em foto de Bel A. W. Nonno

Leia o segundo capítulo do romance “O princípio de ver histórias em todo lugar”

Leonardo Villa-Forte nasceu no Rio do Janeiro e é autor do livro de contos O explicador (editora Oito e Meio), eleito como um dos quinze melhores lançamentos nacionais de 2014 pela Tribuna de Santos. O princípio de ver histórias em todo lugar (também da editora Oito e Meio) é seu primeiro romance.  Aqui, no Cafezinho Literário, temos a honra de apresentar o segundo capítulo do livro. Ao fim da leitura, você encontrará uma breve entrevista com o autor.

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E vamos de Leonardo Villa-Forte! Apreciem sem moderação.

 

O princípio de ver histórias em todo lugar

Capítulo 2

Todo mundo tem uma maneira de viver. Quando somos parte de um casal, os dias transcorrem na base de pequenos acordos. Minha vida ao lado de Cecília se desenrolava numa sequência previsível, e isso, até algum ponto que não sei medir, mas que não é baixo, me fazia bem. Eu acordava cedo, saía para o trabalho e trabalhava. Retornava ao final da tarde, comprava algo no mercado e, já em casa, bebia algo, lia ou assistia à televisão. Jantávamos, fazíamos sexo – numa média de uma a duas vezes por semana, às vezes antes do jantar – e dormíamos. Posso contar os momentos invariavelmente cumpridos com ela: acordar, assistir à televisão, jantar, fazer sexo, dormir. Em torno da metade das ações de cada dia – cinquenta por cento da vida – ocorria apoiada na sua presença. A perspectiva de viver noventa dias sem Cecília era algo completamente inédito.

Me assustava a ideia de ficar três meses inteiros sem enxergar aqueles olhos negríssimos, duas bolotas onde íris e pupila se confundiam. As pálpebras que os cobriam de leve, no alto, como uma cortina que esqueceram de suspender por inteiro, o que lhe emprestava a aparência de alguém recém-acordado ou prestes a dormir. Os seios pequenos e pontudos, do tamanho da boca. A bunda para dentro, mas redondinha, que eu não parava de  mordiscar. A cintura mais fina que existe, um tronquinho apertado em torno do qual meus braços faziam a volta e, até o cotovelo, chegavam a se cobrir. O sexo tão ardente quanto nenhum outro que antes experimentei.

Ou pelo menos foi assim em nosso início. Depois, passado algum tempo, a coisa amansou. Transávamos cada vez menos, o que me incomodava justamente porque no início nosso sexo era quente, louco, intenso, úmido, e eu queria mais daquilo. Pena que falar com ela sobre nossa baixa frequência só fazia com que o tempo de espera pela próxima trepada se alongasse ainda mais. Entre quantidade e qualidade, compreendi que deveria me considerar satisfeito pela qualidade que ainda sobrava, a qual se mantinha bastante acima da média em relação às minhas experiências anteriores.

Admito que eu passava certos dias com um pressão aprisionada no pênis, uma sensação de inchaço quente que nenhum xixi aliviava. Não deixei de desejar outras mulheres. Eu procurava amenizar essa questão sozinho, no chuveiro. Dessa maneira, conseguia relaxar e esquecer possíveis cobranças a Cecília, evitando um novo adiamento de algo que sempre parecia estar prestes a acontecer.

Nesses três meses, além do sexo, eu sentiria falta do seu ouvido. Ele não estaria lá para receber minhas ligações quando regularmente ao meio-dia eu era tomado pela frustração e pelo desânimo na agência. Seu ouvido não estaria lá quando eu precisasse de alguém para fingir interesse nas ideias estapafúrdias que tenho em noites de insônia. Quem mais escutaria com paciência minhas soluções para problemas que não existem? A quem eu contaria os detalhes dos projetos que quero realizar? Durante um trimestre viveríamos em contraste: ela cercada de pessoas e novidades; eu sozinho, na mesma. Imersa em trabalho, encontros, reuniões, passeios, Cecília sentiria a vertigem dos que são apresentados a uma quantidade alta de estímulos num período curto de tempo. Já a mim faltariam assuntos, acontecimentos, pessoas, novidades. Restariam, sempre comigo, as minhas suspeitas.

Isso era o que eu imaginava.

Duas semanas após a despedida de Cecília, conheci Luiz, Carina, Thomas, Roberto e Felipa. Em pouco tempo tornei-me o elo entre eles. Estive em suas casas, conheci seus familiares, ficamos próximos. Uma oficina de escrita criativa foi a novidade que inventei. Seria uma maneira de conhecer pessoas, ter gente por perto, sentir calafrios… E talvez me reconciliar comigo mesmo, me reconciliar com o meu passado. Àquela altura, ainda parecia uma boa ideia.

***

 Leonardo Villa-Forte e o comparsa do espelho

Quem é Leonardo Villa-Forte?

Leonardo é um cara de quem meu pai e minha mãe falavam até que um dia eu me deparei com ele num espelho de banheiro. Foi um choque que me deixou ressabiado para o resto da vida, com poucas certezas sobre quase tudo, mas ali fizemos um pacto de que tentaríamos aceitar um ao outro. Fomos estudar psicologia acreditando que poderia nos servir para qualquer coisa, mas antes, a fim de nos preparar, lemos “Crime e Castigo”. Talvez tenha sido aí que a escrita nos apareceu de forma mais constante.

Quando o Leonardo da mãe e do pai e o Leonardo do espelho começaram a escrever?

Quando começamos a desenhar, com não sei qual idade, chuto entre 5 e 7 anos. Depois vieram as redações sobre astronautas com nomes como “Frank” e “Ryan” lutando contra aliens no espaço e então as letras de música para a banda Translúcida, em que éramos baterista. Contos mais estruturados vieram por volta dos 20 anos, publicados no antigo blog Catarse Controlada, iniciado em 2007. Nessa época, uma oficina de escrita e os comentários nos blogs foram animadores. Desde então, pegamos gosto.

O que os motivou a escrever “O princípio de ver histórias em todo lugar”?

“O princípio de ver histórias em todo lugar” partiu da questão: como fica uma pessoa quando aquilo que lhe ajuda a moldar sua identidade se afasta? No caso, um homem que vê sua mulher partir por três meses em viagem de trabalho – pelo menos é o que ela diz. Como este homem é sem ela? Como ocupará este novo espaço e tempo que se dispõem na sua vida? Publicitário desanimado, ele toma a decisão de se fazer passar por professor de criação literária. É uma tentativa de criar uma nova vida – mesmo que provisória e egoísta – e nisso ele acompanha mal ou bem os seus alunos, que também estão criando (contos e textos). Assim, o conjunto vai passando por mudanças juntos. Diríamos que é um romance sobre criação e identidade pessoal.

Vocês também são autores da coletânea de contos “O explicador”, que teve uma boa recepção pela crítica. Sobre o que trata o livro?

Boa parte de “O explicador” trata da diferença entre o que uma pessoa idealiza e o que ela encontra no mundo real. Os personagens vivem isso numa alta potência, em confrontos nos quais tentam negociar consigo mesmos a tendência a se afastar do cotidiano e a tendência a mudar para se adaptar a ele. Os caminhos que tomam levam a resultados tanto trágicos quanto cômicos. Boa parte dos textos é motivada por e ambientada em dois universos: o do trabalho/empresa e o do relacionamento/família, explorando as estranhezas de cada um – as quais já vivemos um bocado.

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Paulliny Gualberto Tort:
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