Foto: Mídia NINJA
“As instituições democráticas não estão funcionando”
Na CartaCapital
*De Nova York
Um dos brasilianistas mais destacados da academia dos Estados Unidos, James Naylor Green, professor de história latino-americana e diretor da Iniciativa Brasil da Universidade Brown, afirma não ter a menor dúvida de que o impeachment da presidenta Dilma Rousseff é um golpe.
Um dos mentores de um manifesto crítico ao processo assinado por mais de 2 mil especialistas em estudos da América Latina, Green também não poupa o jornalismo brasileiro: “O papel representado pelos militares nos golpes do século XX foi substituído pela cumplicidade da mídia”.
CartaCapital: O recente pronunciamento de Dilma na ONU desagradou a seus apoiadores, que esperavam uma denúncia mais eloquente do que o governo qualifica como golpe. A presidenta errou no tom?
James Naylor Green: Não. O pronunciamento foi digno e correto. A paranoia, a histeria dos pró-impeachment, ficou nítida no fato de dois deputados da oposição (José Carlos Aleluia e Luiz Lauro Filho) terem sido enviados a Nova York para fazer um contradiscurso, por conta da ideia de que Dilma iria ao exterior para difamar o Brasil.
O que Michel Temer e Eduardo Cunha precisam entender é que a mídia internacional está a par do que de fato ocorre no Brasil. A manobra institucional para desqualificar Dilma como presidenta está clara.
CC: A mídia internacional encampou a tese do golpe?
JNG: Não, a mídia internacional foi além da guerra das narrativas governo versus oposição e entendeu não haver justificativa legal para um impedimento. Abriu-se um abismo entre a cobertura da crise política da mídia estrangeira internacional e aquela da brasileira, que se revelou tendenciosa ao extremo. Os correspondentes internacionais baseados no Brasil, especialmente, demoraram a entender o que de fato ocorria, mas todos chegaram a um ponto em comum, o da real motivação do impeachment, com a exceção de The Economist.
CC: A The Economist foi a primeira publicação importante da imprensa internacional a pedir a renúncia de Dilma Rousseff…
JNG: Sim, e aí cabe-se perguntar: onde estava a Economist que não pediu a renúncia de Médici, Geisel ou Figueiredo? A publicação jamais foi crítica da ditadura militar e de forma hipócrita e sem legitimidade alguma exigiu a renúncia de Dilma, no que foi devidamente ecoada pela grande mídia brasileira. De qualquer forma, a farsa da votação de domingo 17 na Câmara dos Deputados esclareceu aos muitos correspondentes baseados no Brasil algo que não parecia, para eles, tão evidente. Acabou a confusão entre escândalos de corrupção e as acusações pelas quais a presidenta está sendo julgada.
CC: Três ministros do Supremo Tribunal Federal pronunciaram-se contra a tese do golpe…
JNG: É impressionante como ministros do STF têm facilidade em comentar discussões internas como se fosse um debate público. É totalmente diferente da tradição norte-americana. Os juízes da Suprema Corte dos EUA jamais fazem esse tipo de politicagem. Não tentam influenciar a opinião pública, são mais sóbrios.
Isso é extremamente problemático para a democracia brasileira, pois a impressão é de que se troca muito facilmente a objetividade legal por perspectivas ideológicas na casa mais alta do Judiciário. Não, as instituições democráticas não estão funcionando. É justamente esse o problema.
CC: O senhor então acredita que o Brasil vive uma crise institucional?
JNG: Sim, e vê-se isso claramente na Câmara, comandada por Cunha, que se recusa, por exemplo, a respeitar uma ordem do STF e dar prosseguimento ao pedido de investigação contra seu aliado Temer por crime de responsabilidade. São dois pesos e duas medidas. Ainda mais grave: as acusações seríssimas contra Cunha o deveriam impedir de comandar qualquer processo de impeachment relacionado ao Poder Executivo. A lógica democrática exige que ele seja afastado primeiro, o que não ocorreu. Ele tem interesse direto no resultado e está sob investigação. Daqui, o que tanto nós brasilianistas quanto a imprensa americana observamos é uma crise das instituições e da democracia brasileiras, sequestradas por determinadas personalidades com interesses próprios.
CC: O senhor acredita que a investigação da Comissão de Ética sobre o deputado Eduardo Cunha não dará em nada?
JNG: É evidente que Cunha jamais será julgado por seus pares por eventuais crimes por ele supostamente cometidos. Também não se sustenta para observadores internacionais a tese de que as pedaladas fiscais só são inconstitucionais e passíveis de crime de responsabilidade quando feitas por Dilma, mas não por Temer. Ou que não se tenha um único pedido de investigação contra os governadores que também pedalaram.
Ou seja, é um golpe político escancarado e que fere um dos princípios básicos de qualquer democracia séria: a lei precisa valer para todos de forma igual. Fez-se um acordão, e dele fazem parte inclusive ministros do STF. Não estou falando de reuniões conspiratórias na calada da noite, não é assim que funciona, mas é possível perceber códigos, entendimentos, de um jogo político oferecido por lideranças que acreditam de fato estarem fazendo o que é melhor para o país. E neste tabuleiro aparece, em destaque, o impedimento de Dilma, mas não só.
CC: O que o senhor imagina daqui para a frente?
JNG: Os próximos lances, muito claramente, são o impedimento da candidatura presidencial de Lula em 2018, o consenso em torno de um governo provisório de Temer até as eleições e o retorno da aliança PSDB-DEM, muito provavelmente com um vice do PMDB e com o apoio de vários políticos acusados de corrupção. Muda-se para ficar como sempre foi. Aí nos cabe pensar nos cidadãos que foram às ruas pedir o impeachment e repetiam “nos devolvam o nosso país”.
CC: Que país seria este?
JNG: O Brasil do passado, no qual as classes sociais conhecem muito bem os seus lugares. Vamos dizer claramente: querem o retrocesso. É algo muito próprio do Brasil. É o rearranjo de forças para manter o equilíbrio das elites no poder, a partir de um cenário econômico mais tranquilo para elas. Setores das elites econômicas, políticas e sociais têm uma noção muito clara de como deve ser o Brasil ideal para sua manutenção no poder. Mas, se setores do PT não tivessem entrado nesse esquema, não tivessem jogado eles também o jogo, seria muito mais difícil derrubar Dilma.
CC: Como o senhor vê a oposição do PT e da esquerda a um eventual governo Temer?
JNG: A rearticulação da imagem do novo velho Brasil precisa se dar rapidamente, daí a correria na Câmara e no Senado para o impedimento de Dilma, pelo fato de se ter um palco de ocasião para esta mudança: as Olimpíadas do Rio. Ainda vai demorar muito tempo para que os setores independentes do PT na esquerda, que irão naturalmente liderar a oposição a este novo rearranjo político, acumulem forças para cobrar, resistir, mobilizar-se em torno de atos como a exigência do julgamento de Cunha e até mesmo o questionamento prático de uma presidência Temer. Espero que haja uma dignidade dos jornalistas para acompanharem todo este processo com olhar de fato crítico.
CC: Como o senhor avalia o papel da mídia brasileira na crise política?
JNG: Para o golpe, neste momento, não foi necessário chamar os militares. O papel por eles representado no século XX foi substituído pela cumplicidade da grande mídia, facilitada pelos episódios de corrupção do PT.
O número de teses sobre a parcialidade da mídia brasileira na academia americana é enorme, e justamente por conta de seu caráter gritante. Quando houve a discussão da crise brasileira entre os brasilianistas, certo jornal brasileiro – não vou citar nome – deslocou um repórter para entrevistar os especialistas. Pois o jornal criou uma notícia falsa.
Disse que havia um racha na organização, o que não é verdade. Depois, em reportagem com brasilianistas, entrevista um grupo e dá a entender que a maioria dos que pensam o Brasil no exterior o faz de uma maneira uniformemente contra a narrativa do golpe, apesar de 90% dos professores apoiarem o abaixo-assinado da associação. Foi um exemplo gritante de como um setor da mídia está dedicado à manipulação da notícia, especialmente na crise política atual.
CC: Que resultado uma condenação internacional do processo poderia influenciá-lo?
JNG: Sou pessimista. Apoio a contestação ao golpe e pode ser até que outros países e instituições, como a OEA já o fez, igualmente denunciem o ataque à democracia, mas todos compreendemos tratar-se de uma dinâmica interna brasileira.
Eventuais manifestações serão traduzidas como apoio à resistência ao golpe, atos de solidariedade. Mas é difícil imaginar um roteiro diferente, a não ser que ecloda um novo escândalo a envolver diretamente boa parte dos protagonistas do teatro do impedimento e que a mídia atue de forma crítica e independente.
CC: Como o governo e as corporações dos Estados Unidos se posicionam em relação ao impeachment?
JNG: Não tenho acesso direto a conversas do Departamento de Estado. A subsecretária Roberta Jacobson esteve em Brown há três semanas e afirmou que a postura de Washington é a de não se fazer quaisquer intervenções relacionadas ao processo, um avanço em relação a 1964. Mas não tenho dúvida de que setores do governo e da economia dos EUA se articulam com os emissários de Temer.
CC: O senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), que é um dos principais interlocutores de Temer, manteve reuniões em Washington com altos oficiais do governo Obama e setores estratégicos da economia do país…
JNG: Sim. O mercado e as grandes corporações americanas estão preocupados com seus investimentos na economia brasileira e querem se garantir, se posicionar para novas oportunidades. Darão apoio a todo vapor ao governo Temer e a suas medidas econômicas. A gravação do Temer que vazou às vésperas da votação do impeachment na Câmara serviu não apenas para consumo interno, mas também para setores da economia internacional, acenando que Temer estava pronto para virar a mesa. Mas vamos ver se ele consegue se manter na presidência até o fim do mandato de Dilma. Se a situação econômica do Brasil é tão grave quanto a pintada pela oposição, vai ser difícil revertê-la em um governo de dois anos.
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