Esqueçam as manchetes apocalípticas, os editoriais furibundos, as previsões catastróficas!
Quando a direita assume o poder, no Brasil ou na Argentina, a mídia transforma completamente a narrativa.
Agora sinalizam-se soluções, o governo encontra espaço para culpar a gestão anterior e se explicar, o tom das reportagens oferece esperança de que, mesmo com as coisas piorando, o mundo não vai acabar.
O governo argentino decretou aumentos incríveis nas tarifas públicas cobradas aos argentinos. Mesmo assim, está tudo muito bem.
É um preâmbulo do que vai acontecer no Brasil, até porque é exatamente o que aconteceu na era tucana.
A crise econômica passa a figurar como uma coisa normal, até mesmo necessária. A mesma coisa vale para o desemprego, a recessão, o aumento da pobreza.
Reproduzo a matéria do Globo, sobre o “tarifaço” na Argentina, para registro histórico.
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No Globo.
Após tarifaço, argentinos são forçados a mudar hábitos de consumo
Para se adaptar, cidadãos formam grupos de compra, trocam escola e vendem roupas usadas
POR JANAÍNA FIGUEIREDO, CORRESPONDENTE 07/05/2016 6:00 / atualizado 07/05/2016 10:43
Compras conjuntas. Macarena Rawson criou clubes para economizar com as compras no atacado – Janaína Figueiredo / O Globo
BUENOS AIRES – O assunto se repete, diariamente, em conversas de café, na porta das escolas, nos escritórios e, principalmente, em reuniões sociais: como adaptar um orçamento cada vez mais limitado ao aumento, expressivo, do custo de vida na Argentina. Depois do tarifaço anunciado pelo governo Mauricio Macri em abril — o transporte público foi reajustado em 100% — este mês foi a vez dos combustíveis, que subiram 10%. No próximo mês de junho, já se sabe que a passagem do metrô portenho passará de 4,50 pesos (US$ 0,31) para 7,50 pesos (US$ 0,51). Macri disse recentemente entender “a dor e a raiva” dos argentinos, mas insiste em justificar um ajuste que já provocou queda de 2,3% no consumo das famílias nos primeiros quatro meses do ano, frente ao mesmo período do ano passado, de acordo com pesquisa da empresa de consultoria CCR.
— Entendo a dor e a raiva quando as pessoas veem os aumentos. Seria feliz se não tivesse que ter aplicado aumento algum, mas a economia estava à beira do colapso, deixaram (os governos Kirchner) o Banco Central sem reservas e o país isolado do mundo — declarou o chefe de Estado, tentando acalmar os ânimos de uma sociedade cada vez mais angustiada com o cenário econômico.
O tarifaço de abril representou um golpe duro no bolso dos argentinos. Em alguns casos, os reajustes das tarifas de energia elétrica e água chegaram a 300%. Isso, somado a uma inflação que atingiu cerca de 12% entre janeiro e abril, alimentada, principalmente, pela desvalorização de quase 40% do peso em dezembro passado, obrigou a maioria da população a modificar hábitos de consumo.
ABASTECENDO EM OUTRO PAÍS
A jornalista Macarena Rawson Paz criou 46 grupos na rede social Facebook, que ajudam mais de 200 mil pessoas, de todo o país, a conviver com a recessão e a inflação alta.
Um dos grupos, lançado por Macarena há menos de um mês, é o “Cheap 2 Cheap Go Market”, que já tem oito mil integrantes e organiza compras comunitárias em supermercados de atacado. Segundo a jornalista, separada e mãe de cinco filhos, “assim conseguimos poupar, em alguns casos, até 50%“:
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— A situação econômica explica o sucesso dos grupos. Já estou preparando o “Cheap 2 Cheap Pool”, que vai ajudar as pessoas a economizar gasolina dividindo o carro, por exemplo, no caso dos que moram longe de Buenos Aires e trabalham na capital. Muitos apoiamos e votamos por este governo, sabendo que viria este ajuste. Hoje estamos, todos, vendo como nos acomodamos melhor.
O primeiro grupo começou com 400 membros, em março do ano passado, e hoje já tem 18 mil pessoas que todos os dias compram e vendem roupas e objetos usados, em bom estado, no momento em que renovar o armário nas lojas portenhas tornou-se praticamente inviável.
Algumas famílias argentinas foram obrigadas a adotar medidas mais drásticas, como mudar as crianças de escola, em alguns casos, até mesmo para escolas públicas (cuja qualidade de ensino piorou muito nas últimos décadas). Mas, em geral, os cortes no orçamento familiar são menos dolorosos e afetam mais consumos considerados de luxo, como restaurantes e hotéis. Neste setor, a queda do faturamento já atingiu 30%, desde o começo do ano.
— Estamos resistindo, com a melhor intenção de não começar com demissões — admitiu o presidente da Federação Empresárial de Hotelaria e Gastronomia, Roberto Brunello.
Filas de automóveis na Argentina cruzam a fronteira com o Paraguai e o Brasil para encher os tanques de combustíveis e aliviar a escalada inflacionária que agora afetou o preço da gasolina. O fenômeno é registrado nas províncias nordestinas da Argentina, Misiones, Formosa e Corrientes, que fazem fronteira com os vizinhos. Os consumidores conseguem o litro do combustível por um preço entre US$ 0,30 e US$ 0,50 mais baratos que nos fornecedores nacionais. A prática ainda não fez cair a venda de combustíveis no país, mas o consumo de eletricidade recuou 9,4% em março passado, confirmou a Fundação para o Desenvolvimento Elétrico.
INFLAÇÃO ESTIMADA EM 35% AO ANO
Em seu relatório, a CCR mostrou que o parcela dos chamados “consumidores racionais”, aqueles que pensam antes de fazer uma compra, aumentou de 42% para 51% entre 2015 e os primeiros meses deste ano.
— Desvalorização, ajuste e aumento de tarifas levam, inevitavelmente, à queda do consumo interno. O que estamos vivendo era esperado. No segundo semestre, os aumentos salariais que já estão sendo negociados impedirão que o consumo continue caindo, mas não vai subir — disse a economista Soledad Pérez Duhalde, da empresa de consultoria Abeceb, que projeta inflação entre 35% e 36% para este ano.
Um dos mais afetados pela retração da demanda interna são os supermercados. Muitos argentinos passaram a comprar marcas mais baratas e frequentar supermercados que vendem no atacado. Em março, as vendas caíram 8% em relação ao mesmo mês de 2015, prejudicando, principalmente, o consumo de bens duráveis e produtos de perfumaria. A demanda por alimentos e bebidas, de acordo com a Associação de Supermercados Unidos, também não caiu tanto.
Perguntado sobre a crise econômica em seu próprio país e ao clima de insatisfação crescendo pelo aumento da pobreza, da inflação e do desemprego, o presidente Mauricio Macri mostrou-se confiante, em sua primeira entrevista coletiva com correspondentes estrangeiros, realizada ontem:
— Estamos numa transição difícil, mas a estamos percorrendo mais juntos do que nunca. No segundo semestre a inflação vai cair drasticamente.