Foto: Nelson Antoine
por Denise Assis, no Democracia e Conjuntura
Depois de passar pelo processo que desembocou no golpe que tenta pinçar do poder a presidente Dilma, eleita com 54 milhões de votos, não é mais possível reproduzir a tese de que o “país está dividido”.
Basta retroceder alguns passos para entender que a reeleição da presidente foi totalmente contaminada por uma campanha midiática muito semelhante aos métodos usados pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (pês, 1962-1972). O que bastaria para atestarmos que “divisão”, se houve”, foi absolutamente fabricada, induzida.
No período de dois anos, (1962 a 1964), financiados pelos recursos carreados pela CIA e por um grupo de empresários coesos que defendiam com unhas e dentes os seus interesses, os de um modelo capitalista, os integrantes do bojo conspiratório aninhados no Ipês não deram trégua ao governo de João Goulart, também eleito legitimamente.
O método consistia em, a princípio, comprar espaços na imprensa para disseminar artigos plantando a insatisfação, o pessimismo: as rodovias não prestavam, as ferrovias eram deficientes, o sistema de saúde era o caos, a educação era insuficiente e carente de recursos. Ou seja, tudo o que outros governos não cuidaram, e que o governo de Goulart começava a organizar, foi diuturnamente martelado na mídia existente na época, de forma a chamar a atenção da população para a “inépcia” do governo federal, que “não se ocupava de setores essenciais para o país”.
Logo os conspiradores não precisavam mais pagar por espaços. Todos os veículos da época, com exceção do jornal Última Hora, aliados aos golpistas, cediam agora páginas e páginas para que discursassem “contra tudo o que está aí”. Alguém viu este filme em reprise?
Décadas depois, com o sucesso do modelo implantado pelos dois governos Lula, que tirou o país do mapa da pobreza, expandiu a política externa, voltando os seus negócios também para os países da África, e nos livrou da eterna dependência do FMI, acumulando, inclusive reservas da ordem de aproximadamente 300 bilhões de dólares, os fascistas atacaram novamente.
Não era possível supor que alguém fora da academia, agindo apenas com a sua brilhante intuição e os anos de experiência em negociações sindicais, obtivesse tamanho êxito, tendo sido reconhecido como “o cara”.
Para fazer tremer as suas bases, e o seu plano de reeleição, foi desencadeado um terremoto jurídico que ficou conhecido como “Mensalão”. Era fundamental punir o “chefe da quadrilha”, como os jornais estampavam a torto e a direito, nem que para isto, tivéssemos que ouvir frases do tipo as proferidas pelos juízes do Supremo Tribunal federal, Rosa Weber: “Não tenho prova cabal contra Dirceu – mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me permite” ou com afirmações como as do ministro Gilmar Mendes: “Não se torna necessário que existam crimes concretos cometidos”.
A resposta veio meio enviesada. O povo reelegeu Lula, dando-lhe nova oportunidade e a chance de fazer a sua sucessora, uma mulher, para aumentar ainda mais a ira dos conservadores, pouco afeitos a essas ousadias.
Dilma atravessou o primeiro governo sem grandes emoções para si ou para o povo. Bastou, porém, o ano virar, e o calendário eleitoral ser marcado na folhinha, para que voltassem a agir. Nada muito criativo. Os direitistas tiraram da gaveta o velho modelo implementado com sucesso em 1964 e no Chile, de Salvador Allende, em 1973, onde foi também adotado, por ter dado tão certo por aqui. Desta vez, no entanto, com mais velocidade, amparado nas novas tecnologias das mídias sociais, que dinamizam a circulação das notícias e fomentam boatos e injúrias com a rapidez de um cometa.
Um velho comentarista de TV, começou a conclamar os jovens para a rua. “Onde estão os estudantes? Onde estão os caras-pintadas, que não vão para a rua protestar contra tudo o que está aí?” Perguntava com insistência, dia sim, dia também. Seus questionamentos ecoaram nos diversos canais, que o copiavam, mas pauta não havia para motivar a estudantada a se mover do sofá.
Até que, em junho de 2013, um aumento de 20 centavos na passagem dos ônibus, primeiro em São Paulo, depois no Rio, levou um grupo intitulado “Movimento Passe Livre”, a sair às ruas, num protesto convocado por meio das mídias sociais. Os governos demoraram na negociação, esticaram a corda, a ponto de fazer os velhos conspiradores perceberem ali, naquelas lideranças e naquele movimento, a sementinha que faltava para tocar fogo naquele governo que, apesar de toda a carga da imprensa, seguia levando trancos da crise econômica que jogava no chão os preços das commodities, mas nada que outras economias não estivessem enfrentando também.
É claro que um dos preços mais importantes para o Brasil, o do petróleo, caía com a ajuda dos americanos, que agora, com reservas suficientes, sem a dependência eterna do mundo árabe, forçavam para baixo os preços do barril, justo quando o Brasil descobria e começava a explorar o pré-sal, visto como salvação da economia e dos investimentos em educação e saúde. E quem não se lembra das espionagens americanas, denunciadas na Conferência da ONU, pela presidente Dilma, que se recusou a visitar os EUA em caráter oficial, depois das bisbilhotices sofridas? Pagaria caro pelo ato de dignidade e soberania.
Logo os movimentos contra o aumento da passagem passaram a ser engrossados por uma enxurrada de cartazes com protestos os mais variados. A esta altura, o Movimento Passe Livre se retirava das ruas, considerando a sua pauta razoavelmente atendida, ao mesmo tempo em que não mais reconhecia ali as suas lideranças. O que se viu foram jovens fascistas, uma parcela da elite conservadora, e radicais de direita ocuparem o “comando” abdicado pelo Movimento Passe Livre.
O desdobramento foi a radicalização desses protestos. A tal ponto que o tal comentarista de TV que exortou os jovens, estudantes, caras-pintadas, a irem para a rua, baixou o tom e queria que o diabo que ele puxou com sua cantilena diária, voltasse para dentro da garrafa.
Dentre outros motivos, porque a Polícia do estado governado por gente do seu partido não economizou bombas de gás e violência. No Rio, que também pesou a mão na repressão, o resultado foi um cadáver, o de um cinegrafista, trabalhador. A mídia sentiu que errou na mão e ela sim, estava levando o país ao caos. “São vândalos infiltrados”, passou a bradar o colunista e seus colegas, durante os comentários, quase em pânico. Foram necessários alguns pronunciamentos do governo e uma boa dose de calma e de negociação para que os protestos voltassem a um nível de “normalidade”.
Mas para a população média, o que estava posto é que o “caos” era do governo. Exatamente como aconteceu em 1964.
Acrescente-se a isto, a série de 28 “operações” espetaculosas, alimentando os veículos de Comunicação diariamente com manchetes sensacionalistas, o que só reforçou a consolidação, na população, de que havia uma roubalheira generalizada. Tudo orquestrado numa conjunção entre atores da Polícia Federal, um juiz de primeira instância elevado à condição de super-herói. Todos respaldados por um Judiciário que fazia vista grossa às falhas e tropicões da condução das “investigações”. Desde delações premiadas que passaram a ter o peso de verdade sem que nenhuma denúncia fosse checada, até o vazamento seletivo, que expunha os integrantes do partido do governo, e acobertava nomes ilustres que, não só eram poupados, como trabalhavam a queda da presidente.
Chegamos às raias do absurdo. Um desses “protegidos” – e que nome dar a um sujeito sobre o qual se têm um apanhado de provas, contra quem recaem acusações pesadas, e nada acontece? – preside a sessão que permite a abertura do processo de impeachment. O escárnio, exibido ao mundo e atacado por boa parte da imprensa internacional, encurrala um projeto vitorioso de busca pela igualdade, de conquista da cidadania e de democracia.
O somatório de tudo isto, embora que tardio, foi o encontro do governo com o seu povo, que agora começa a estranhar que senhores políticos encalacrados na Justiça julguem quem não deve nada e diz nada temer. Não há como sustentar a tese de “país dividido”, quando este mesmo povo rejeita o pretenso sucessor, dando-lhe 8% de aprovação, apenas.
Prestes a perder o cargo arduamente conquistado nas urnas, Dilma se joga nos braços dos que nela confiam e defendem. Quanto àqueles que, financiados pelos irmãos Koch, ou influenciados pela mídia, bateram suas panelas Tramontina, fazendo barulho nas varandas debruçadas sobre o mar, exigindo a sua saída, fizeram o movimento de refluxo das marés. Espera-se que esse refluxo não caia sobre nós, depois do Senado, sob a forma de um tsunami, varrendo de nossas vidas todas as conquistas dos últimos anos.