Foto: Mídia NINJA
Brasil: uma democracia em risco nos trópicos
Por Bruno Araújo, no Público
Passadas mais de duas décadas desde o ocaso de um regime autoritário que cerceou liberdades e relegou o Brasil a uma condição de mediocridade no quadro geopolítico mundial, a Constituição de 1988 incorporou valores seminais de defesa de um estado de direito democrático sólido. Alçou a patamar de primeira grandeza os direitos sociais e individuais. Em outubro daquele ano, o novo ordenamento constitucional brasileiro inaugurou uma fase completamente diferente da anterior em termos de respeito pelas liberdades individuais.
Mais importante do que isso: a Carta de 1988 esboçava um campo de lutas legítimas pela conquista de novos direitos, ao mesmo tempo em que conferia as condições de efetivação dos direitos que já estavam inscritos em suas páginas. Desde o seu nascedouro, tratou-se de uma Constituição popular, muito distinta de textos constitucionais anteriores, que se preocupavam, do início ao fim, com o atendimento de demandas burguesas, cujo resultado sempre foi o aprofundamento da abissal desigualdade social que constitui a nossa pior face. Com efeito, a partir daquele momento, organizações da sociedade civil, movimentos sociais e o conjunto da população brasileira começaram a contar com uma atmosfera constitucional arejada: estavam lançadas as bases para que lutas fossem travadas por mais direitos. Ao contrário do regime anterior, o conflito entre visões e desejos, nos planos político, econômico, cultural e social, não era mais um problema: integrava, ao revés, a ideia mesma de espírito democrático, como em qualquer democracia de alta intensidade.
Ainda que tenha representado o início de um capítulo promissor na vida política brasileira, a Constituição de 1988 carece de um trabalho continuado de todos os cidadãos para que seja efetivada, e sua autoridade, respeitada. Muito do que lá está escrito escrito não são direitos já conquistados; representam, como em qualquer texto constitucional, o horizonte para o qual o povo, representado por um Poder Constituinte originário, deseja que o país caminhe. Está na essência da letra constitucional a ideia de que a democracia não é um regime acabado: necessita de doses diárias de aperfeiçoamento para que se mantenha em funcionamento.
Como uma sociedade não é uma operação matemática, havendo, pois, um contingente razoável de imprevisibilidade nos rumos que toma, esse aperfeiçoamento deve acontecer em função das imperfeições que a democracia vai revelando no decorrer da vivência democrática quotidiana. Isso possui um duplo significado: primeiro, a intensidade de uma democracia depende da melhoria de suas virtudes, mas muito mais da luta pela correção de suas imperfeições; segundo, o aperfeiçoamento desse regime só ocorre com injeções inesgotáveis de mais e mais democracia. Nessa equação, qualquer movimento que negue tal premissa só pode representar défice democrático.
É aqui, portanto, que situo a atual crise política vivida no Brasil, da qual podemos sair mais ou menos fortalecidos do ponto de vista do progresso de uma democracia que ainda não comemorou a terceira década. Dessa crise, pode derivar a destituição de uma Presidente da República, sem que ela tenha cometido qualquer crime de responsabilidade, pressuposto situado nas entranhas da Constituição, sem o qual o processo de impeachment se reveste de grave atentado ao documento que inaugurou entre nós um estado democrático de direito. Sem argumento convincente, a ponto de o saber jurídico nacional estar fraturado, tentam enquadrar, na categoria de tais crimes, duas posturas de Dilma Rousseff que não representam qualquer atentado ao ordenamento jurídico brasileiro, porque não possuem a necessária previsão legal: as ditas pedaladas fiscais e a assinatura de decretos de suplementação orçamentária.
Ambas as condutas, constantes da denúncia assinada por três juristas, e aceita por Eduardo Cunha, um presidente da Câmara enredado em escândalos de corrupção, são práticas corriqueiras na Administração Pública do Brasil: governadores e prefeitos recorrem a elas todos os dias, sem contar que todos os anteriores presidentes da república as cometeram ao longo de seus respectivos mandatos. Só agora, num gesto de franco atentado à segurança jurídica prevista na mesma Constituição, um conjunto de forças políticas, judiciais e mediáticas resolveu transmutar em crime de responsabilidade o que era e continua a ser visto, em Estados e municípios, como conduta habitual. E o pior: recorrem ao texto constitucional para respaldar algo que o próprio texto repudia. Trata-se de inominável esquizofrenia.