Foto: Andre Dusek/ Estadão
por Tadeu Porto, colunista do Cafezinho
Confesso que fui ler, com muita curiosidade e interesse, a chamada do Estadão para uma fala do ex-presidente do STF, ministro Ayres Britto, no MIT: que o Brasil vivia uma “pausa democrática”.
A priori, só pela análise do título, não busquei desqualificar a fala de Ayres por que, de certa maneira, concordo que o país passe por um momento de transição política e nessas horas analogias são bem vindas para tentar descrever melhor esse contexto complexo.
Não canso de afirmar quando tenho a oportunidade, por exemplo, que nossa democracia é como um prédio que foi construído num brejo: não importa o quão a estrutura foi bem pensada, a base que o sustenta simplesmente não é sólida e confiável. Exemplos de falhas do nosso processo estão por todos os lugares, apesar de escutarmos, com muita frequência, que nossa instituições estão em pleno funcionamento (frase que seria arrogante até para a democracia mais antiga do mundo).
É insustentável, histórica e matematicamente, tentar manter um sistema dinâmico e limitado que alimente sistematicamente, de maneira desigual e padronizada, as partes que sustentam o mesmo.
Fica difícil ignorar, por exemplo, o caso nunca esclarecido de PC Farias; os milhares de escândalos que não foram estudados nem resolvidos, como o da SUDAM, Banestado ou Privataria; o fato de termos um quadro representativo hereditário ou milionário que sequer chega perto de retratar como é de fato nossa sociedade; propostas de reformas estruturais que nunca foram pra frente (talvez exceto pela reeleição que, aparentemente, foi comprada).
Existem, ainda, muitos outros exemplos de métodos inequivocamente tão plutocráticos — praticados por todas as esferas e poderes no país, diga-se de passagem — que era de se esperar a inevitável consequência de tamanha injustiça estourar no colo da população, gerando mazelas para ela e, consequentemente, a insatisfação geral.
Pois bem, voltando ao Britto: com a fé cega e o pé atrás de sempre — que procuro usar desde que decorei o álbum Filmes de Guerra e Canções de Amor do Engenheiros do Hawaii — li toda a matéria do Estadão. Decepcionante, e nada surpreendente, descobri que o ex-ministro gastou uma analogia até legal com uma visão pobre e equivocada do nosso momento político.
E ao ler os complementos da “pausa democrática” como “freio de arrumação para ideias, valores e processo da sociedade brasileira” e “quem não estiver com o cinto de segurança da decência, da transparência e do dever de casa cumprido vai se machucar seriamente” minha veia dialética pulsou de maneira que não pude controlar meus dedos de escrever um contraponto.
Em primeiro lugar, pausa democrática está longe de descrever o deslocamento que nosso sistema político faz no tempo: pausar, digamos, se assemelha a se manter imóvel no instante e não existe outra característica que descreva nosso momento do que retrocesso, regresso, retorno, volta, marcha ré, enfim, nosso vocabulário rico nos oferece dezenas de opções… Menos pausa. É difícil não ver um recuo no país com conspirações abertas do vice-presidente e uma das casas do legislativo sendo presidida (e controlando um processo de afastamento de uma chefe de poder) por um réu unânime no STF, e negligenciar esse fato, como fez Britto, é um desserviço para qualquer análise de conjuntura brasileira.
Em segundo lugar, se o país é um carro em movimento, não é um freio simples que vai selecionar, como mágica, quem vai sobreviver ou não da arrumação. Seria maniqueísta demais contar com a lógica binária do “com ou sem” cinto, pensar na modelagem do nosso sistema político.
Se somos mesmo um carro, estamos passando, na verdade, por um blitz da plutocracia, feita pelos policiais mais corruptos da corporação. Os criminosos, se escondendo nas fardas constitucionais e legais dos seus empregos, mandam encostar o carro, atrás do local da blitz, e deixam passar as pessoas dispostas a pagar um café ou dar aquela “molhada de mão”. Se não quiser jogar o jogo da propina, ótimo: as consequências são uma multa no valor do carro e algumas coronhadas de legítima defesa (deles), obviamente, dentro das atribuições normativas de cada um.
Se nas nossas análises – bases para as tomadas de decisões do futuro – não pensarmos com muita seriedade nos abusos de poderes dos nossos agentes corremos sérios riscos de achar normal um estado de exceção travestido de democracia, ou um golpe fantasiado de processo legal.
E para essa observação, precedida de um diagnóstico, o ministro Ayres Britto consegue mais atrapalhar nossa política do que ajudar, com afirmações tão inverossímeis como essa.
Tadeu Porto é Diretor do Sindicato dos Petroleiros do Norte Fluminense (Sindipetro-NF)