Por Rogerio Dultra dos Santos, exclusivo para o Cafezinho.
Charges: Vitor Teixeira
O mundo assistiu, no fatídico dia 17 de abril – um domingo de horror para o Brasil –, a aprovação inicial do processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, sem que fossem expressos quaisquer fundamentos jurídicos.
Este foi, dentre outros fatores, o resultado da distorção provocada por um sistema eleitoral baseado no financiamento empresarial de campanha.
Mas a consolidação do golpe de Estado – como a maioria da imprensa internacional parece começar a compreender – não passa somente pela derrota do governo Dilma Rousseff no plenário da Câmara dos Deputados. São vários os seus fatores, como: as manifestações de rua que dividiram o país; a oligopolização da mídia, transformada em partido das classes dominantes; a pouca firmeza do governo Rousseff em manter o comando das agências repressivas; a crise econômica; ou mesmo a articulação sediciosa do Vice-Presidente Michel Temer, em andamento pelo menos desde meados de 2015.
Uma das maiores ameaças à democracia hoje, aquilo que pode eliminar a possibilidade de sonharmos com eleições livres de ingerências externas e com um Estado de Direito – que sempre existiu de fato apenas para setores não populares – são os desvios jurídicos por trás da chamada “Operação Lava-Jato”.
O que é a Operação Lava-Jato
Até mesmo a origem da Operação Lava-Jato é problemática. De um lado, a sua existência justifica-se como uma investigação da Polícia Federal, iniciada em março de 2014, com o objetivo de examinar eventual lavagem de dinheiro num posto de gasolina de Curitiba (daí o nome “fantasia” Lava-Jato), chegando à descoberta de propinas na empresa brasileira de extração e refino de petróleo e gás, a PETROBRÁS.
Os primeiros indiciados e presos da Operação seriam um negociador de câmbio negro (o Doleiro Alberto Youssef) e um Ex-Diretor de Petróleo e Gás da PETROBRÁS depois deste último ganhar um carro de presente do doleiro.
Na verdade, esta origem “pública” justifica e legitima a continuidade da Operação na Justiça Federal do Paraná e não o seu envio para o STF, ou mesmo a sua decomposição em vários processos endereçados a outros Estados da Federação, onde a maioria de crimes teria ocorrido.
O Juiz Moro argumenta que o primeiro processo que lhe deu projeção nacional – o julgamento das fraudes no Banco do Estado do Paraná (o Banestado), em 2006 –, envolvia o mesmo doleiro Alberto Youssef e o falecido político José Janene (do Partido Progressista), investigados por evasão de divisas em Curitiba. Por conta deste fato, Moro seria o juiz competente para receber os inquéritos relativos à PETROBRÁS.
O problema é que as escutas telefônicas que fundamentam esta ligação – e que autorizariam ser o Juiz Moro competente para avaliar o processo – foram obtidas de forma ilegal. E, no direito brasileiro, a origem ilícita da prova invalida a sua utilização no processo (Art. 5ª, LVI, da Constituição).
Outra irregularidade da operação é que o Juiz Sérgio Moro tem avocado – isto é puxado processualmente para si – todos os inquéritos abertos em outros Estados, sem ter competência ou jurisdição para tanto.
Fundada no instituto da delação premiada, uma novidade mais ou menos recente do sistema processual brasileiro, a Operação apresentou à mídia nacional um intrincado esquema de propinas e financiamento ilegal de campanhas eleitorais (o chamado caixa dois), envolvendo empreiteiras de construção civil, diretores da PETROBRÁS e políticos de vários partidos.
Procuradores do Ministério Público Federal lotados na Cidade de Curitiba, local do início da operação, se organizaram junto à 13ª Vara Especializada da Justiça Federal, presidida pelo Juiz Moro, afim de realizar os acordos de delação e articular novas investigações, que se sucedem em “fases” – atualmente a Operação encontra-se na 25ª fase – conjuntamente à Polícia Federal. Esta é a “força tarefa”.
A força tarefa da lava-jato tomou dimensões de um quarto poder no Brasil, surfando na onda do “combate à corrupção” e legitimada pelos meios de comunicação de massa, estes claramente articulados em oposição política ao primeiro governo Dilma Rousseff, no ano de sua apertada e dramática reeleição.
A Operação tem se mostrado prodigiosa em números. São mais de 480 buscas e apreensões, 117 prisões, 49 acordos de delação premiada, além de dezenas de acordos de cooperação internacional em vários países, 93 condenações, contabilizando 990 anos de pena. O Juiz e os Procuradores foram alçados à condição de heróis nacionais e grande parte da crise política do governo deriva de suas ações.
Curiosamente, embora um sem número de agentes políticos ligados aos partidos de oposição ao governo tenham sido delatados ou mesmo aparecido em listas apreendidas em investigações, a maioria absoluta dos indiciados e presos têm ligação com o governo.
Uma lista apreendida de FURNAS, empresa de energia elétrica do Estado de Minas Gerais, indicou a existência de propina para suas principais lideranças, ainda no mandato de Fernando Henrique Cardoso. Os hoje responsáveis pela articulação da aprovação do impeachment de Rousseff estão na lista de propinas, como o candidato derrotado à presidência do Brasil Aécio Neves, o Senador José Serra e o atual governador de São Paulo Geraldo Alkmin, todos do PSDB.
Delatores na Lava-Jato indicaram recentemente que o esquema de propina de Furnas continuou sendo operado até o governo Lula por Aécio Neves, sem que isto tenha gerado qualquer ação repressiva ou de investigação por parte da “força tarefa”.
Aliado a este fato, reiteradas operações contra aliados do governo, em especial contra o Ex-Presidente Lula têm ocorrido, sem que nada tenha sido comprovado. Apesar da falta de provase mesmo de indícios, as suaspeitas e as ilações do MPF culminaram com a “condução coercitiva” do Ex-Presidente no último mês. Isto gerou fortes suspeitas de que a Operação lava-Jato tem, para além do propalado combate à corrupção, um objetivo político maior: retirar o Partido dos Trabalhadores do poder e evitar que Lula, candidato forte à sucessão presidencial, seja eleito.
Os problemas da Operação Lava-Jato
Nesse sentido, e num exame mais atento, pode-se concluir que os principais instrumentos da Operação Lava-Jato são ou ilegais, ou inconstitucionais, ou utilizados de forma abusiva ou seletiva e enviesada.
Um problema estrutural da Operação é a sua organização em forma de “força tarefa”. O fato de que policiais federais, procuradores e juiz criminal estejam operando em conjunto viola a Constituição Federal na medida em que, no Brasil, vige o princípio constitucional do processo penal acusatório.
Isto significa que, pelo nosso ordenamento jurídico, as funções de investigação, acusação e julgamento são distintas e não podem ser confundidas, ou pior, fundidas na figura de uma “força tarefa” que age em comum acordo.
Se é o mesmo órgão que investiga, acusa e julga, não há a equidistância e a independêcia exigidos por lei e pela constituição. O indivíduo submetido a tal procedimento tem violado seu direito a um juiz imparcial, ou seja, um juiz que se coloca equidistante entre as partes, ou seja, que se coloca numa posição de imparcialidade entre acusação e defesa.
Nesse sentido, o processo judicial, amparado pelo direito ao contraditório e à ampla defesa, se transforma num mero inquérito, numa inquisição, onde o indiciado ou o réu perdem qualquer condição de se contrapor em igualdade de condições à acusação, visto que esta se confunte com quem julga.
Outro conjunto de problemas deriva dos chamados “vazamentos” seletivos. Para que se legitime politicamente a atuação da “força tarefa” frente à opinião pública, partes doas delações, ou mesmo partes ou o inteiro teor de processos em segredo de justiça, muitas vezes com informações pessoais e privadas de indiciados ou réus chegam às mãos dos meios de comunicação quase em tempo real.
Esta articulação sistemática e “secreta” entre a “força tarefa” ou alguns de seus agentes e os meios de comunicação tem produzido dois efeitos: a) o de antecipar a criminalização de indivíduos sem que haja acusação formal ou sentença condenatória – numa espécie de antecipação “midiática” da culpa; e b) o de “blindar” a operação perante a opinião pública, criando uma aura de mística moralista em torno de sues principais personagens.
Um destes personagens, o Procurador Deltan Dallagnol, tem realizado dezenas de palestras pelo país defendendo o caráter de cruzada religiosa de sua atuação bem como uma reforma completa da legislação nacional com o objetivo de eliminar garantias processuais e direitos fundamentais para “facilitar” a criminalização de corruptos (as chamadas “Dez medidas contra a corrupção”).
Os últimos vazamentos produzidos pela Operação para televisões e jornais geraram inclusive uma repreensão do Supremo Tribunal Federal e um pedido de “desculpas” do Juiz Moro. Foram os vazamentos de interceptações telefônicas de conversas privadas entre o Ex-Presidente Lula e a Presidente Dilma Rousseff e desta com Ministros de Estado.
Pela legislação federal que regula a interceptação telefônica e de dados (a Lei 9296/96) e de acordo com a Constituição, o conteúdo de nenhuma interceptação judicial pode ser publicizado. E a sua publicização indevida constitui crime, com pena de reclusão de dois a quatro anos e multa. Assim, o “pedido de desculpas” do Juiz se fez sob a real – ou pelo menos jurídica – possibilidade dele ser responsabilizado criminalmente. O que, diga-se de passagem, não ocorreu.
Outro fato corriqueiro na Operação Lava-Jato é a sonegação de informações ou a proibição de acesso dos advogados de defesa ao inteiro teor de documentos e mesmo do processo. Vários juristas renomados abandonaram a defesa de clientes presos ou indiciados pela Lava-jato por conta da simples incapacidade processual de realizaram a atividade de defesa. Outros tantos fizeram publicar nos órgãos de imprensa uma abaixo-assinado com dezenas de professores de direito e juristas, denunciando as arbitrariedades da operação.
O expediente mais cruel, entretanto, é a constante e excessiva utilização da prisão processual, sob fundamentos genéricos – como a “garantia da ordem pública” e a “conveniência da instrução criminal” – com o fito de constranger empresários e outros acusados a realizar a “delação premiada”.
Depois de presos em média por mais de cinco meses, os réus realizam delações e muitas vezes são soltos para responder em liberdade o processo. Enquanto aqueles que não aceitam fazer a delação são mantidos presos e condenados a penas estratosféricas, como ocorreu com o principal executivo e dono da empresa de construção civil Marcelo Odebrecht, condenado a 19 anos de prisão.
Assim, a forma como o instituto da “delação premiada” foi “reinventado” pela Operação Lava-Jato violenta a Constituição e a legislação penal e processual penal brasileira: o constrangimento de réus confessos e a coação para que admitam somente o que interessa às autoridades tornaram-se o fundamento jurídico por excelência de seu funcionamento. Alguns têm caracterizado este procedimento como tortura.
Este tipo de atuação judicial estimula o que se chama comumente na teoria do processo penal de primado da hipótese sobre o fato, sintoma usual dos inquéritos ou inquisições. Na inquisitio, a autoridade constitui uma interpretação sobre o que acredita ter acontecido. Ela conduz – às vezes inconscientemente – os testemunhos na direção de sua verdade imaginada, à revelia do que efetivamente poderia provar com o trabalho exaustivo que caracteriza o sistema de provas judicial, que exige o contraditório e a ampla defesa. Em resumo, a “delação premiada” – especialmente quando obtida de réu preso por um período longo e sem sentença –, aprofunda a submissão do sistema jurídico brasileiro à lógica inquisitorial, essencialmente autoritária, kafkiana e avessa às garantias constitucionais.
Alguns acordos de delação já firmados com o Tribunal Regional Federal da 4ª Região – colegiado de Desembargadores a que deve se submeter o Juiz Sérgio Moro e que, aparentemente, chancela as violações do procedimento descritas – impedem que delatores entrem com Habeas Corpus ou mesmo que desistam dos pedidos de liberdade eventualmente existentes.
A pesquisa relatada pelo repórter investigativo Sérgio Rodas, da Revista Conjur, dá conta de que na maioria dos acordos de delação da “Lava-Jato”, a defesa dos réus fica proibida de ter acesso ao inteiro teor dos processos, por motivo de “sigilo”.
Os réus delatores devem, também, renunciar ao direito ao silêncio e à garantia contra a autoincriminação. Suas penas serão cumpridas, na maioria das delações, no regime inicial geralmente mais gravoso, por tempo indeterminado. Todas estas cláusulas dos acordos de delação violam dispositivos constitucionais e legais.
Além disso, lembre-se, enquanto as grandes corporações de mídia têm acesso livre e abundante a “vazamentos” regulares de partes dos processos, ditas sigilosas, os advogados de defesa simplesmente são impedidos de saber contra o que estão lutando, numa distorção medievalesca do devido processo legal, como já adjetivou o Ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki sobre atitudes do juiz Moro na Operação Lava-Jato.
O que significa a Operação Lava-Jato em termos jurídicos e políticos
É preciso dizer, contudo, que o sistema penal brasileiro – o quarto maior do mundo em população carcerária –, já tende a abdicar de sentenças condenatórias como fundamento das prisões. Ele já funciona como uma burocracia de encarceramento regular e automático dos indivíduos alcançados pelos aparelhos policiais. A população pobre já conhece há muito o lado fascista da justiça criminal brasileira. Prende-se e mantêm-se presos réus somente com indícios e prisões policiais são chanceladas pelo judiciário de forma burocrática e pouco criteriosa, conforme pesquisas abundantemente comprovam.
Para compreender como um movimento que, em tese, objetiva combater a corrupção no núcleo do poder político e econômico, mas que se transformou numa arma política enviesada e seletiva, é preciso não só entender o funcionamento da Operação Lava-Jato, mas como opera o sistema de justiça criminal no Brasil.
Na prática, apesar da codificação e de inúmeras leis, o sistema repressivo brasileiro – em especial as instituições encarregadas da persecução penal – nunca foi formalista. O verniz jurídico das decisões criminais sempre serviu de escudo para a seleção e determinação enviesada da criminalidade. É o que a sociologia criminal chama de configuração artificial de inimigos públicos, que variam de acordo com a demanda dos interesses dominantes.
No país, inclusive por conta de uma herança ditatorial nunca extirpada, quase sempre se prendeu antes de se investigar, quase sempre se condenou antes de se comprovar a culpa, quase sempre se puniu olhando a quem. A justiça brasileira não é cega: ela encherga de forma seletiva.
Para significar o protagonismo político da Operação Lava-Jato é preciso lembrar que os governos Lula e Dilma ampliaram e empoderaram todos os órgãos do Poder Judiciário, incluindo aí a Polícia Federal, não somente através de planos de carreira, aumento de salários, concursos públicos, equipamentos, etc.
Este empoderamento foi radical a ponto de que os governos petistas abrissem mão de sua prerrogativa de controlar a indicação de várias chefias destes órgãos (e isso entre 2002 e 2016). As listas tríplices e sêxtuplas para a escolha de Ministros, Procuradores e Chefes, estabelecidas pela Constituição para permitir a coordenação de governo de órgãos como o Superior Tribunal de Justiça, o Ministério Público Federal, a Advocacia Geral da União, etc., respaldada pela democracia, foram “respeitadas” de forma como nunca dantes se viu.
Assim, os “indicados” passaram a ser invariavelmente os primeiros das listas, isto é, os mais votados em seus órgãos de origem, e não aqueles escolhidos pelo Poder Executivo – independentemente da posição nas listas –, na fórmula clássica de “freios de contrapesos”, onde o Poder Executivo controla politicamente as indicações das “cabeças” das instituições judiciais, realizando na prática o equilíbrio entre Poderes.
Acontece que este procedimento “respeitoso” à suposta democracia interna dos órgãos do Poder Judiciário, em sua origem corporações funcionais, gerou um efeito perverso: uma radicalização do corporativismo nunca dantes vista. Grupos políticos coesos se formaram em torno da luta pela hegemonia interna, produzindo uma agenda política de autonomia funcional e independência em relação ao Poder Executivo – o que, inclusive, a Constituição não permite.
Portanto, a pauta política que hoje é capitaneada pela “Operação Lava-Jato” não nasce somente da cabeça de um juiz e seus “assessores” procuradores. Ela é fruto, paradoxalmente, de um processo de erosão do controle democrático sobre o Judiciário, cujos responsáveis diretos foram os próprios governos do Partido dos Trabalhadores.
Sem o devido controle institucional, o principal objetivo desejado pela Operação Lava-Jato, o “combate à corrupção”, é concretizado através da supressão dos limites do processo penal. O fato é que a Operação Lava-Jato, desde o começo, e por uma “tradição institucional” funciona como um juízo de exceção.
O juízo de exceção é exercido nos moldes de uma monarquia sem leis ou como uma ditadura, ou seja, pela vontade exclusiva de quem dirige o processo. A autoridade assim compreendida não se submete aos limites legais e não avança os respeitando. O juízo de exceção tem, no seu horizonte de sentido, um objetivo político: o de reafirmar um determinado poder.
Por trás de uma pauta aparentemente respaldada pelo direito subjaz, assim, um projeto moralizador, refratário ao funcionamento naturalmente plural e contraditório da democracia. Imbuída de que porta a verdade inquestionável, a Operação Lava-Jato se debruça sobre a vida política nacional, esquadrinhando os seus agentes e impedindo o seu curso, numa ânsia religiosa de purificação do que considera estranho à República.
Portanto, uma instituição submetida aos limites normativos oficiais é quase inviável quando a corporação define sua agenda operacional a partir de interesses exclusivistas. É que a instituição perde seu caráter republicano, porque não submetida ao controle externo, porque não orientada pelo interesse público. Assim, o primeiro grande movimento dos agentes do Estado que atuam em nome do povo – sem terem sido eleitos para isto – é a criminalização da política: eles desacreditam das eleições, dos políticos e dos partidos.
O caráter político do juízo de exceção macula o seu pretexto de limpeza e correição. Neste processo judicial, é exatamente aquele que corrompe o procedimento quem persegue os corruptos do país.
A Operação Lava-Jato se inspirou assumidamente na “Operação Mãos Limpas”, ocorrida na Itália nos anos 1990. Lá os objetivos de exterminar os partidos representativos e questionar o processo democrático como um todo funcionou como um relógio. Nada houve de menos político e democrático que as sucessivas eleições de Berlusconi, um subproduto de mídia, de perfil francamente autoritário.
Subjaz a este movimento mais pontual da Operação Lava-Jato um projeto de reforma legislativa inspirado no maior sistema carcerário do mundo, os EUA. O objetivo é a flexibilização ou mesmo a extinção de garantias fundamentais que protejam os cidadãos contra o arbítrio do Estado penal.
Apesar de decisões recentes do STF na direção da fragilização de direitos processuais penais em casos isolados, como a relativização da presunção de inocência, o problema para a implantação deste projeto é que o nosso sistema constitucional – apesar de nosso histórico autoritário – ainda cerca de direitos processuais os cidadãos brasileiros que, mesmo processados e condenados, têm a garantia do duplo grau de jurisdição e todos os recursos a ele inerentes, bem como fazem juz à presunção de inocência até o trânsito em julgado de sentença condenatória.
Embora a prática do sistema viole sistematicamente estas garantias elas estão lá, quase que para demonstrar que os operadores do sistema de justiça as violam sistematicamente. O objetivo especificamente legislativo da Lava-Jato é fazer que esta prática repressiva, hoje ilegal e inconstitucional, se transforme numa operação respaldada por uma nova e mais flexível legislação.
Pela lógica da Lava-Jato, não é o direito que tem a função de controlar, limitar e punir as práticas violentas e autoritárias do sistema de justiça criminal, mas sim estas práticas torpes é que devem orientar a produção legislativa.
Apesar de já experienciarmos uma mudança de rumo em direção à tradição anglo-saxã do processo, como a observada desde meados dos anos 1990, ela ainda não foi capaz de modificar a essência do sistema. O nosso processo penal, pelo menos na sua orientação constitucional, continua majoritariamente acusatório – na sua divisão entre investigação, acusação e juízo – e com uma rigidez no que respeita aos direitos processuais, o que o difere fortemente do processo penal norte-americano.
Pode-se afirmar, entretanto, que leis esparsas relevantes, como a de crimes hediondos, a dos juizados especiais criminais, a de crime organizado, a de crimes contra a ordem tributária e econômica, a lei de lavagem de capitais e a lei de drogas trouxeram um deslocamento na dinâmica do processo: a disponibilidade para que o Ministério Público e o Juízo negociem a culpa, conduzam depoimentos para a obtenção de provas e barganhem a atribuição de penas. Tudo isto em um trabalho “conjunto” com a acusação.
Este é, obviamente, um movimento claro em direção à relativização de direitos e à “privatização” dos procedimentos e decisões judiciais, bem ao gosto dos operadores da Lava-Jato, muitos deles com estudos realizados nos EUA.
Na prática, esta legislação de inspiração alienígena flexibiliza o processo na direção da eficiência gerencial e na configuração do andamento das causas penais tendo em vista a contabilidade dos resultados.
O juiz, esta figura complexa que transparece racionalidade imparcial e se submete sem constrangimento à necessidade de atender a “opinião pública”, transforma-se em um gerente de expectativas sociais e do andamento do processo, para além dos constrangimentos e limites que as normas jurídicas possam estabelecer.
Escancara-se com isto o caráter decisionista do direito, isto é, o fato incontornável de que as razões políticas e econômicas do processo orientam a sua gestão, para além da letra da lei. O juiz transforma-se, deste modo, num agente sobredeterminado por questões outras que não as estritamente jurídicas no momento em que decide sobre o caso penal.
A barganha, a transação, a negociação, o blefe são os novos instrumentos que o processo penal brasileiro passou a oferecer para que se alcance os objetivos sociais de criminalização da pobreza e da política. Embora se possa afirmar que existam diferenças entre o processo de criminalização da pobreza e o da criminalização da política, o fato é que o mesmo instrumento está funcionando, nos dias de “Operação Lava-Jato”, sob princípios idênticos.
A Operação Lava-Jato tem feito bem para o Brasil?
Dois dias antes da deflagração da 24ª fase da “Operação lava-jato” o Ministro da Justiça pediu exoneração. Assim, no último dia 4 de março, o Juiz Sérgio Moro, violando o Código de Processo Penal, autorizou a “condução coercitiva” do Ex-Presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva, que prestou depoimento em situação de cárcere ilegal durante algumas horas no Aeroporto de Congonhas em São Paulo.
Fez isto, portanto, numa situação em que não havia Ministro da Justiça apto para impedir o arbítrio – visto que, em tese, o MJ têm ascendência administrativa sobre a Polícia federal. Se não fosse a imediata reação de populares que lotaram o local com protestos, provavelmente Lula seria levado diretamente para Curitiba, Q.G. da Operação, onde seria preso.
Esta operação foi flagrantemente ilegal porque Lula não foi intimado anteriormente a prestar depoimento na Operação lava-jato, nem mesmo se negou a depor – os dois requisitos que autorizariam a condução coercitiva, segundo o Código de Processo Penal (seja como testemunha, Art. 218, seja como acusado, art. 260). Lula nunca havia se negado a depor na Operação Lava-Jato exatamente porque nunca havia sido intimado.
Nesta toada em que a Operação Lava-Jato encontra-se livre, como lembra Gisele Cittadino, prendendo para obrigar as delações que lhe interessam, arquivando investigações contra a oposição ao governo, vazando somente os depoimentos que sustentam aquilo que pretende provar, e ocupando o púlpito pedindo apoio da população, o que tem feito o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição?:
“Desde logo, e como estratégia para não arriscar um único arranhão em sua própria autoridade, o STF assiste, paralisado, aos desmandos da autoridade de um juiz da 13ª Vara da Justiça Federal do Paraná. Como acredita que sua legitimidade decorre exclusivamente do fato de que é autoridade, colocar limites à autoridade alheia parece representar, para o STF, colocar limites a si próprio.”
O certo é que, continua a autora, apesar de liberal em matéria comportamental, o STF, após várias decisões em processos de natureza penal e, especialmente, diante da relativização do princípio da presunção de inocência, tem revelado o seu conservadorismo em matéria criminal.
Moro, o operador judicial da “Lava-Jato”, ao fugir da neutralidade e escancarar a politização da justiça, compromete e empareda o Judiciário. Na pele de um justiceiro vingador, ele nega a própria razão de ser da Justiça, afasta o Judiciário da posição de garante da democracia e torna-se um poderoso ator politico, sem a correspondente responsabilidade exigida pela República. Assim, o condutor do processo passa por uma verdadeira a entronização, uma cerimônia que exalta sua figura e a coloca no centro das expectativas morais e sociais, como um exemplo e guia do que fazer.
O juiz e os procuradores da “lava-jato” não são questionados por vazamentos, declarações fora da legislação da magistratura, prêmios recebidos com regozijo em cadeia nacional de tv, comentários sobre processos em andamento. Eles são celebrados, considerados representantes da elite sã, combatentes da diferença e exterminadores da barbárie.
Num balanço das “fases” da Operação Lava-Jato deu conta da recuperação de R$ 2.9 bilhões frutos de corrupção. No decorrer dessas “fases”, como se disse, houve a prisão de um sem número de executivos e diretores de empresas de construção civil, de petrolíferas e mesmo da eletronuclear, responsável pela construção do primeiro submarino nuclear com tecnologia nacional.
O problema é que o resultado da Operação foi a retração desses setores da cadeia produtiva nacional, gerando um prejuízo na economia estimado em R$ 60 bilhões (há consultorias que falam em mais de R$ 200 bilhões de prejuízo). O aprofundamento da crise econômica, sensivelmente estimulado pela Operação Lava-Jato levou, numa linha reta, ao aprofundamento da insegurança jurídica, política e econômica, e a uma crise sem precedentes que ameaça destruir o país e não salvá-lo ou purificá-lo.
Demandar o devido processo é considerado hoje uma atitude de desespero dos que se sentem injustiçados, e não uma necessidade básica que torna possível a convivência social das diferenças, ou uma garantia coletiva, racional e objetiva da liberdade, para ficar no âmbito da tradição do constitucionalismo liberal. Esta é a tragédia atual do Brasil: a existência de senhores da lei que brincam como querem com a nossa democracia.
Nota: Esse texto é fruto do acompanhamento da Operação Lava-Jato desde o seu início “oficial”, em 2014. Boa parte das reflexões aqui expostas derivou de textos anteriormente pulbicados no site www.democraciaeconjuntura.com e em outros sites de análise política no Brasil, durante os anos de 2015 e 2016.
Rogério Dultra é professor de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, Doutor em Ciência Política (antigo IUPERJ), Bacharel em Direito (UCSal) e Mestre em Direito Público (UFSC).