Lulo-petismo e a metáfora de Don Quijote de La Mancha

por Frederico Linhares, no Facebook

Impossível ignorar a dimensão simbólica do atual contexto político. Ela está enraizada na ideia de “limpeza ética” dos que defendem o impeachment, não tanto pela legalidade, mas pela conveniência simbólica, por sua função pedagógica, redentora, renovadora. “Depois de Dilma serão os cunhas, os temers, os alckmins, vamos pra cima de todos, vamos limpar o país!”

Simbolicamente, existe apenas um detalhe, mas crucial, que diferencia esta faxina moral do delírio quixotesco clássico: quixote era fraco, quase inofensivo, suas armas ridículas, de papelão, Rocinante era um jegue desnutrido, quase imprestável. Os higienistas políticos, diferentemente, ostentam as maiores armas que uma força política poderia gozar no país: têm o endosso do mercado financeiro, da grande mídia, da pequena-burguesia, da FIESP, dos bancos privados, das petroleiras internacionais, além de maioria absoluta na Câmara Federal; têm o líder da Cruzada tocando a tropa: Sérgio Moro e o ideal da justiça punitiva como caminho para a salvação. Não são quixotescos, portanto, são ubuescos: parecem-se com o rei Ubu, alguém de caráter absurdo e caricatural, mas efetivamente muito poderoso e perigoso.

Quixotesca, então, será a sina desse romance de cavalaria chamado lulo-petismo. Essa aventura ridícula de se alinhar com uma suposta burguesia progressista e criar o que se chama de governo de coalizão.

“Quem mandou se alinhar com o PMDB? Quem mandou fazer reforma da previdência? Quem mandou se acovardar perante o capital?”

Os moinhos de vento petistas são mais autenticamente quixotescos porquê a fragilidade de suas armas está escancarada: o mercado rejeita, o antimercado rejeita. A aliança com setores da burguesia se tornou uma rendição incondicional aos dogmas neoliberais, o governo está sem ação, ostenta a pecha de traidor, de acovardado, de corrupto, ladrão, incompetente, tem líderes presos, sigilos quebrados, devassa geral em suas entranhas. Enfim: nu, exposto, escancarado.

Eu fico com a dialética hegeliana aqui… a vitória na derrota é o que marca o delírio quixotesco. É de encharcar os olhos ler os capítulos finais de Dom Quixote quando os supostamente lúcidos, críticos, racionais, depois de tanto se esforçar para “curar” o Cavaleiro da Triste Figura, veem-no finalmente tomar ciência de seu delírio ridículo, de sua farsa, de sua fraqueza, de sua tragédia.

Nessa hora, quando Quixote se recolhe a seu leito e, sem suportar a miséria de sua condição, adoece e morre, pedindo perdão àqueles a quem fizera mal, nessa hora, os lúcidos se desesperam, percebem a verdade por trás daquele delírio, e veem-na perecer junto com o herói.

Assim perecerá, portanto, o lulo-petismo: com os isentões e a esquerda higienista sentindo um pequeno desespero inconfesso. No máximo, assumirão sentir alguma “pena” dos petralhas trapalhões. Já pude testemunhar alguns críticos implacáveis, entusiastas da Nova Política (de direita ou esquerda) pressentindo este movimento de “coroação bufa” do Quixote moribundo. Vejo-os a consolar os delirantes que, depois de 17 de abril, descobriram-se fracos, desarmados, desamparados. Na hora e vez de nossa morte, os outsiders, os lúcidos, os neutros, tentarão nos animar como nunca. “Vai ter luta, não deixaremos Temer e Cunha assumir tão fácil assim”.

Já os vejo chocados, assustados, mas ainda não confessam para si mesmos que estão com medo das consequências.

O que antes parecia divertido assistir, tipo um House Of Cards, agora os torna receosos… têm medo de que até os corações mais apaixonados possam se desiludir, parando de sustentar o delírio de suas paixões. Apenas quando perdemos algo percebemos seu real valor. Nessa hora, a turma da “falsa polarização” vai estremecer com a possibilidade de, morrendo Lula, morrendo o PT, morrendo o lulo-petismo, juntamente com eles, se diluir o poder de mobilização da classe trabalhadora, sair fragilizada a ideia que um sindicalista de modos simplórios possa presidir o país… enfim, se esfarelar todo o discurso e estética do governo popular e seu contraponto (ainda que apenas simbólico) ao neoliberalismo.

Quando Quixote baixar as armas, quantos anos precisaremos para recuperar as trincheiras mantidas por sua loucura? E será possível recuperá-las sem paixão, sem nos lambuzarmos de contradições, sem dividirmos a cama com o inimigo?

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