Imagem: Política no Face
No dia 1º de julho de 2012, a jornalista Miriam Leitão, do Grupo Globo, uma das principais porta-vozes do golpe no Brasil, colocou-se contra a deposição do então presidente do Paraguai, Fernando Lugo, que seria derrubado por parlamentares em um processo absolutamente frágil. Quatro anos depois, toda a preocupação da jornalista quanto aos valores democráticos parece ter escorrido pelo ralo. Confira, abaixo, o artigo publicado por ela em seu blog, no qual se diz, entre outras coisas, que “a ameaça atual da América Latina é exatamente a de golpe que não parece golpe” e “a maior ameaça hoje não é mais o golpe clássico, mas a manipulação da democracia contra a própria democracia”.
Risco latino
A entrada da Venezuela como membro pleno do Mercosul é uma ironia, na semana em que o Paraguai é suspenso. O que o Paraguai fez a Venezuela faz sistematicamente. No Paraguai, o Congresso deu um golpe e derrubou o presidente usando uma lei que está na Constituição mas que fere princípios democráticos, como o do direito de defesa. O governo Chávez tem feito frequentes violências à democracia com roupagem de legalidade.
A ameaça atual da América Latina é exatamente a de golpe que não parece golpe. A presidente Dilma congratulou o bloco pela decisão de afastamento do Paraguai, na mesma reunião em que aproveitou a ausência do Paraguai para aprovar a entrada da Venezuela como membro pleno do Mercosul. Seria cômico, se não fosse sério. A cláusula democrática do Mercosul é valiosa, deveria ser respeitada, deveria ser a base do bloco, mas a entrada da Venezuela esta semana a desmoraliza. Em toda a região há riscos para a democracia, mas o maior é na Venezuela, onde Hugo Chávez, em campanha para reeleição, está no poder há 14 anos.
Há fatos cujo desenrolar pode definir que tipo de compromisso têm alguns países da região com os valores e princípios democráticos. O caso mais recente é o do Paraguai, que isolado do Mercosul fará sua campanha eleitoral. A torcida é para que seja uma eleição livre e limpa e que o eleito em abril de 2013 fortaleça as instituições. O novo governante Federico Franco virou o mais forte candidato nessa eleição.
O México está realizando eleições hoje e o resultado mais provável é a volta do PRI ao poder depois de dois mandatos em que esteve afastado. O partido está voltando à presidência através de uma eleição legítima, em que seu candidato, Enrique Peña Nieto, foi mais convincente que os outros. O governo do presidente Felipe Calderón foi marcado por uma escalada sem precedentes da violência no país. O Exército, convocado para o combate às drogas, foi acusado de inúmeros atos de desrespeito aos direitos humanos.
O PRI durante mais de 70 anos manipulou as instituições para permanecer no poder. Realizava eleições fraudulentas. Seus tentáculos se espalharam pelo país e, através da corrupção e das fraudes eleitorais, o partido foi mantido no poder por décadas. Perdeu a presidência há 12 anos, quando o presidente Ernesto Zedillo, após conduzir uma eleição com neutralidade, reconheceu a derrota. Agora, o PRI e o México têm a chance de reescreverem essa história sob o comando de uma nova geração de políticos.
A Venezuela enfrenta os resultados da desmontagem lenta das instituições, executada por Chávez na última década e meia. Pela primeira vez está havendo uma eleição com um candidato forte de oposição, mas as instituições dominadas pelo presidente estão, de novo, criando regras casuísticas para favorecê-lo. A maior ameaça para Chávez não vem da oposição mas de sua saúde.
Na América Latina, tem havido ameaças sucessivas à democracia e essa é uma região com histórico de surtos autoritários. A Argentina reduziu a liberdade de imprensa, seja com leis aprovadas no Congresso, seja pelo cerceamento econômico. A Venezuela mudou a Constituição várias vezes para favorecer Chávez. O governo enfraqueceu os outros poderes e atacou a imprensa. Tudo funciona como se o sistema fosse democrático, mas os poderes não são independentes, a imprensa é encurralada, a justiça eleitoral muda as regras para beneficiar o presidente.
Equador e Bolívia, em intensidades diferentes, adotaram medidas chavistas para favorecer o ocupante da presidência. Não têm a força de Chávez, não foram ao extremo da Venezuela, mas usam a mesma estratégia.
Os que são favoráveis a Chávez, Rafael Correa e Evo Morales argumentam que tudo o que eles fizeram foi dentro da Constituição. Portanto, não seria antidemocrático. O mesmo argumento é usado, pelo outro lado político, para justificar a forma como Fernando Lugo foi tirado do poder. Curiosa concordância. O que aconteceu anos seguidos na Venezuela e o que acontece no Paraguai respeitam formalismos, mas não são democráticos. Essa é a sutileza da nova ameaça à democracia na América Latina.
A reação do Brasil de desaprovação do que houve no Paraguai foi correta e poderia ter sido o início de uma nova fase da diplomacia brasileira, mas virou apenas mais uma contradição. O Senado paraguaio era o único obstáculo à aceitação da Venezuela como membro pleno do Mercosul.
Na economia, os países com mais problemas são Venezuela e Argentina, que enfrentam uma onda de inflação com baixo crescimento e desordem fiscal. Colômbia, Peru e Chile têm mantido a dívida e o déficit sob controle e estão com previsões de crescimento de 4,5%; 5,8% e 4,4%, respectivamente. O Peru, governado por Ollanta Humala, tem uma meta de inflação de 1% a 3% e considerou alta quando a taxa chegou a 3,4% no ano passado. No Brasil o Banco Central comemorou 6,5%. Mas, na região, o principal problema não é a economia, mas a garantia do respeito às regras democráticas. A maior ameaça hoje não é mais o golpe clássico, mas a manipulação da democracia contra a própria democracia.