Charge: Vitor Teixeira
por Wanderley Guilherme dos Santos, no Segunda Opinião
Manter a serenidade diante dos convites diários à insensatez é quase irresistível prova de loucura. Faz parte da sabedoria popular: só um doido pode permanecer razoável dentro de hospícios. Assumo o risco, mas evito comentar atitudes de deputados porque muitos deles se encontram em transe. As transmissões dos debates parlamentares expõem capítulos do que, em condições de normalidade institucional, seriam considerados surtos de heroína mal assimilada. Não espanta que o relator da Comissão do Impedimento sinta-se um herói depois de ler, com bravura e sem compreender grande parte do que leu, um catatau de cinco horas de discurso, preparado em não mais do que vinte e quatro horas depois da defesa da presidente Dilma Rousseff, apresentada pelo Advogado Geral da União, José Eduardo Cardoso. Não é para qualquer um, em sã consciência, fazer aquele papel.
Bem analisado, o relator mostrou-se genuíno representante da maioria dos membros da Comissão, quiçá da maioria da Câmara dos Deputados, não sei se de dois terços dela: institucionalmente frívolo. Isso não é frequente em colegiados, mesmo que medíocre em sua composição. Estudos comprovam que, em geral, do confronto de opiniões estapafúrdias chega-se, dando tempo ao tempo, a decisões sensatas. Dar tempo ao tempo é o segredo e antídoto dos regimentos de ação coletiva, de Constituições a diretorias de centros acadêmicos, contra a supremacia do verbo inflamado e das estratégias vertiginosas. Ou seja, exatamente o oposto do comportamento de ocupantes de posições essenciais para nossa sanidade social; por exemplo, nos lances de maldoso oportunismo do Procurador Geral da República, na volúpia denunciatória inconsequente dos executivos da Lava-Jato, no cálculo sedicioso do Presidente da Câmara, tudo culminando no delirante discurso de “posse” do títere em que se transformou o vice-presidente da República. É indispensável, por eficácia, abandonar o cuidado lógico, ser rápido e impedir a reflexão, o exame de argumentos e de fatos. Segue-se a complacência com que é admitida como normal o contorcionismo da tara de julgar por crime de responsabilidade uma figura pública, Dilma Rousseff, ausente de todos os processos e investigações transitando nas instâncias jurídicas apropriadas. Em transe, os desatinados do Parlamento criam figuras de interpretação constitucional, competência do Supremo Tribunal Federal, ajustadas à sentença condenatória previamente adotada. Por isso o papelão do relator foi ovacionado. Fez todo sentido.
Esvaiu-se a capacidade das instituições orientarem os comportamentos individuais. O que se espera de um juiz, de um parlamentar, de ministros, policiais federais, guardas de trânsito, da mesma forma como de barbearias, hospitais e clubes de futebol é que ofereçam, com maior ou menor competência, o previsto em seus contratos de locação e constituição: por isso um craque de futebol causaria espanto e sofreria punição se apanhado no comando de cirurgias, e o mesmo se diga de um guarda de trânsito flagrado a fazer malabarismos com laranjas e garrafas, substituindo um desses adolescentes que tentam sobreviver ganhando a vida trabalhando antes de se submeterem ao fascínio letal do tráfico e das drogas. É isso: sabotadas desde dentro por operadores audaciosos, as instituições estão falhando na garantia de coerência entre indivíduo privado e responsabilidade pública, impedindo que os débeis se entreguem ao tráfico e às drogas. Parece que continuam a desempenhar as funções costumeiras, mas, em verdade, esses heróis estão cativos de estupefacientes. Elevadas doses de dinheiro, poder, ambição, fama e subserviência à tendência humana a devorar o semelhante – eis as drogas causadoras da disfunção coletiva, unanimemente percebida por olhares estrangeiros. Para os estupefatos nacionais, contudo, tudo marcha normalmente, conforme roteiro e cronograma votados. E o diabo é que não se tem notícia de time de viciados que se cure por si próprio. Algo vai acontecer, mas nada é previsível.