Reconciliação ou luta de classes acirrada? O dia seguinte da votação do impeachment
Por Wilson Ramos Filho*, exclusivo para O Cafezinho
Era na Alemanha em meados de 1915. Embora a quase totalidade dos deputados do SPD (Partido Socialdemocrata Alemão) apoiasse a guerra da Alemanha para ampliar sua presença colonial, um grupo de parlamentares saiu do partido e criou a USPD como dissidência, identificados pela mídia como “os independentes”. Apanharam muito da imprensa, críticas do empresariado, da Direita e do SPD. Quando já estava claro que a Alemanha perderia a Guerra, os independentes se uniram aos comunistas para criar o PKD sob a liderança de Karl Liebneck e de Rosa Luxemburgo, uma feminista que ousava pensar em uma sociedade profundamente belicista, patrimonialista e machista.
Na sequência, com a aceitação do vergonhoso armistício imposto à derrotada Alemanha – que perdeu todas as colônias, teve o território fragmentado e reduzido a um terço, sem contar a dívida-indenização de guerra junto aos países vencedores – o Kaiser abdicou. Terminava ali o Império Alemão. No mesmo dia a República foi proclamada em duas praças diferentes em Berlin. Em uma delas o líder do SPD, Friedrich Ebert e na outra o líder do PKD, Karl Liebneck. Impossível saber qual evento mobilizou mais manifestantes. Para garantir a república fundada pelo KPD começaram a ser fundados ou fortalecidos, em todos os bairros populares das principais cidades, os Conselhos de trabalhadores e desempregados, muitos dos quais ex soldados. Essa mobilização popular foi memorizada como “A Revolução Alemã”. De outra parte, Ebert convocou o empresariado e a imprensa para tentar sufocar a mobilização e a vontade popular. Com a bandeira alemã usada como símbolo de extremo nacionalismo, estigmatizaram “os vermelhos” acusando-os de “inimigos internos” e verdadeiros culpados pela derrota na guerra. Era a estratégia para sensibilizar quase dois milhões de ex-militares dispensados e obviamente desempregados.
Nas ruas, os militantes da Direita quando encontravam “os vermelhos” promoviam verdadeiros massacres ou físicos ou morais por meio de ofensas. Ebert apelou para a “reconciliação nacional” com o apoio do empresariado. Estes concordaram com a limitação da jornada de trabalho em oito horas (para gerar mais empregos) e Ebert convocou uma Assembleia Nacional Constituinte, para reinstitucionalizar e pacificar o país. No entanto, Karl Liebneck, Rosa Luxemburgo e seus companheiros nos sindicatos e nos conselhos resistiam e avançavam em sua proposta de um governo sem o empresariado. As manifestações de rua continuaram alternadas, uma semana um grupo, na seguinte o grupo adversário tentando superar a mobilização anterior. Um grupo de ex-militares, agora a soldo do empresariado, sequestrou e assassinou Karl e Rosa covardemente, imaginando que matando os líderes teriam mais facilidade para obterem a reconciliação nacional. Como represália o KPD não aceitou participar da Assembleia Constituinte que se reuniu e deliberou, em uma pacata cidadezinha do interior chamada Weimar e longe da pressão dos sindicatos e dos demais movimentos sociais, um texto constitucional. Assim surgiu a primeira “constituição social” na história recente, a Constituição de Weimar, reconhecendo vários direitos aos trabalhadores, sufocando uma revolução e influenciando cartas de direitos por todo o mundo.
Voltando ao Brasil, li recentemente algumas críticas ao discurso da Presidenta Dilma explicitando a traição do Michel Temer. Algumas delas mostravam preocupação com o “dia seguinte à derrota da proposta de impeachment”. Outras apontavam para a “necessidade de recompor com o PMDB e com o empresariado”, com os golpistas, para a obtenção de uma “conciliação” até o final do mandato. Respeito cada uma dessas ponderações. Contudo, tendo em vista o que aconteceu na Alemanha na virada de 1918 para 1919, ou seja, há quase cem anos, talvez haja quem anteveja o oposto: não haveria como compor com traidores, não seria possível conciliar com canalhas, não haveria como negociar com fascistas, com um empresariado medíocre, com uma imprensa criminosa, com esses setores que estavam dispostos até a ter um escroque na Presidência e outro, sabidamente corrupto, na “vice”. Muitos movimentos sociais entenderão que naquele momento não haveria como reconciliar a luta de classes que eles acirraram. Provocaram a revolta popular, mexeram com quem estava quieto, por intermédio de um “camisa-preta” rasgaram a Constituição e agora querem nos recompor com esses pulhas? Penso que esta será a posição majoritária. Sabemos que o governo Dilma está longe de ser “de esquerda”, no máximo socialdemocrata e isso se ampliarmos ao limite o seu conceito programático, mas a classe trabalhadora no campo e na cidade estava pacificada, em especial como efeito das políticas públicas de inclusão. Agora a mídia colocou combustível na latente contradição fundamental entre as classes sociais. A direita, a mídia, o empresariado e seus aliados circunstanciais em defesa própria (35 dos 38 deputados que votaram favoráveis ao impeachment estão sendo processados por corrupção) resolveram derrubar o governo. Reação imediata: as classes populares reagiram, a esquerda unificada por bandeiras de consenso foi às ruas. Nunca a política foi tão debatida nos bares, nos salões de beleza, nas barbearias, nas escolas, nas igrejas, por todas as partes, agudizando também a latente luta de classes.
Ao contrário da Alemanha, não contem com a classe trabalhadora para a reconciliação. Suas entidades, não todas, mas a maioria, altamente mobilizadas pela reação ao golpe não servirão de amortecedor nesse embate entre as classes sociais, não estarão a serviço do entendimento, da conciliação. Bem ao contrário, estariam decepcionadas se a pacificação lhes fosse imposta. E com mais garra e com mais fúria se o golpe enfim for materializado com a presidenta deposta. Depois do que a Globo, a Veja, a maioria do PMDB e o empresariado industrial fizeram, ateando fogo, acirrando o ódio da Direita contra “os vermelhos”, só haverá moderação se eles aceitarem a derrota no próximo domingo. Serão derrotados no domingo, mas, irresponsáveis, seguirão potencializando o ódio e sua contra-face, a resistência. Não necessariamente resistência pacífica, dos movimentos populares, mas a acirrada resistência da raiva fermentada nos últimos dois anos de golpismo. A classe trabalhadora no campo e nas cidades aprendeu com a Alemanha de 1919, cuja “reconciliação” só serviu para que a mesma imprensa e o mesmo empresariado que conclamavam a “união nacional” treze anos mais tarde aplaudissem os Nazistas no poder. Hitler não necessitou de um outro marco institucional, fez o que fez sob a mesma Constituição de Weimar. Não precisava mudar nada, pois ela continha um vício de origem: era fruto de um pacto com o empresariado para sufocar uma revolta popular.
O Brasil ficará melhor. O “gigante acordou” para ser derrotado nas ruas, nas praças. Mexeram com quem estava quieto, repito: agora aguentem. Vamos relembrar de Rosa em 2018 quando dizia que há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir.
* Wilson Ramos Filho, doutor, professor de Direito do Trabalho na UFPR (Curitiba) e no Doctorado en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo na UPO (Sevilha), advogado de sindicatos e movimentos sociais.