A lição da escola
Por Janio de Freitas, na Folha.
Uma única certeza: seja qual for o desfecho da crise, será muito ruim. Isto supondo-se que haja desfecho, propriamente dito, e não a também possível continuidade da degradação caótica como um estado permanente. A “Constituição Cidadã”, as leis, a reverência ao Direito, a ética jornalística, a administração pública, as práticas políticas, a respeitabilidade mínima do Congresso, a divergência com convivência –o que aí não está muito abalado é porque já desmorona.
A meio da semana, um aspecto dessa situação motivou observações que há poucos anos o Brasil não precisaria ouvir, sobre o respeito a procedimentos judiciais. Vieram de ninguém menos do que o próprio presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Roberto Caldas, em solenidade no Supremo. Referia-se, não citando por delicadeza diplomática, aos “vazamentos” de delações e investigações:
“Em vários países, quando se divulgam elementos da investigação, tais elementos se tornam nulos. Vejam o quanto isso é grave: tornam-se nulos.”
No Brasil, essas práticas já estão no território da imoralidade. A começar da denominação ingênua de “vazamento”. São acusações pesadas, em deliberada confusão de dinheiro sujo e doações legais. “O ex-ministro Delfim Netto participou da criação do segundo consórcio; Delfim teria ganhado propina de R$ 15 milhões” –disse um grande jornal, entre outros que apenas mudaram a forma. Se, porém, Delfim trabalhou para o consórcio de Belo Monte, teve o seu preço e o que recebeu não foi “propina” –que, no caso, é dinheiro comprometedor e em geral criminoso.
Nos anais da imprensa brasileira estará para sempre o “caso da Escola Base”. Era 1994 quando as mães de duas crianças denunciaram à polícia paulista que os donos da escola faziam orgias sexuais com os pequenos alunos. O delegado Antonino Primante revirou as casas dos acusados e a escola. Nada encontrou, nem em depoimentos. Crianças passaram por exame pericial, que nada constatou. Indignada, uma das mães repetiu a denúncia para a TV. Um escândalo fenomenal tomou a imprensa. A escola e as casas dos seus donos foram atacadas, eles estiveram presos. E mais dois delegados só puderam concluir que não havia sequer um leve indício de veracidade da acusação.
Os donos da escola tiveram as vidas arruinadas. Só a Folha se retratou. Nas Redações, houve uma onda de “lição da Escola Base”: não mais encampar acusações morais sem a segurança necessária, comprovar a seriedade do informante e a qualidade da informação, e por aí. Inúmeros artigos, debates, seminários ocorreram durante anos. Os “vazamentos” da Lava Jato, da Zelotes (sobre o Conselho da Receita Federal) e outros, seguem o mesmo padrão do caso Escola Base: um policial/procurador diz, é o suficiente.
Agora, um agravante sobre o caso anterior: o direcionamento.
A seletividade dos “vazamentos” originários da Lava Jato incorpora-se à crescente imoralidade política: a Lava Jato é uma função do Estado, e não pode estar a serviço de correntes políticas e ideológicas.
Por que o escarcéu só com alguns dos apontados pelo ex-presidente da Andrade Gutierrez, Otávio Marques Azevedo, como recebedores de dinheiro do consócio construtor da usina Belo Monte? Por que embaralhar doações legais e ilegais, pagamentos e caixa dois? Não é decente.
Em nada prejudicariam a Lava Jato e a imprensa as práticas, de parte a parte, respeitosas das leis pela primeira e da ética pela segunda. O procurador-geral Rodrigo Janot emitiu, há duas semanas, recomendações de sobriedade e obediência às normas. Falou ao vento, e, como em toda parte, a desordem ficou por isso mesmo. E foi o próprio Janot a dar uma colaboração: inverteu parecer de março para acusar Dilma Rousseff de “intenção (…) de tumultuar o andamento das investigações criminais da Lava Jato”. O Supremo, então, é incapaz para investigar Lula? Mas Janot invocou-se também com “as circunstâncias anormais da antecipação da posse” de Lula. É claro que se tratava de proteger Lula de novas exorbitâncias. Mas, ao que se saiba, presidente ainda decide data e hora das posses ministeriais e fazê-lo não constitui delito. Ao que se saiba, não. Sabia-se.