Foto: Nuno Pereira/PSDB
O que podemos esperar, caso vença o impeachment? Além do cerceamento do amplo direito à expressão e organização; a formação de amplas maiorias no Congresso com o objetivo de promover a desconstitucionalização dos direitos sociais e trabalhistas; e a recuperação da agenda das reformas liberalizantes e desnacionalizantes
por Alexandre de Freitas Barbosa, no Le Monde Diplomatique Brasil
O país encontra-se numa encruzilhada. Enquanto amplos setores da sociedade se organizam e tomam as ruas, as cúpulas dos três poderes estabelecem conchavos, buscando um desfecho que seja de seu agrado. Por ora, elas oscilam num movimento pendular entre os dois campos em disputa. O desfecho, qualquer que seja ele, não será imediato e trará sequelas profundas.
Parece evidente que a nova modalidade de golpe está em curso, promovido por uma parte da Justiça (que se crê acima do Estado e das prerrogativas legais), um Legislativo que há muito atua como balcão de favores e uma grande imprensa que apela para o tudo ou nada. O seu objetivo é conquistar o poder, sem passar pelo crivo das urnas, e depois distribuir o butim.
Para grande parte dos que vão às ruas em busca do impeachment, o butim – para além de preservar a posição social que julgam ameaçada – se resumirá aos ganhos simbólicos de viver em um país “livre” e “sem corrupção”. Poderão viver suas vidas privadas e dessocializadas em paz, pois a guerra se fará contra os outros e será travada fora do país em que habitam e trafegam.
O que podemos esperar, caso eles ganhem a parada? Além do cerceamento do amplo direito à expressão e organização; a formação de amplas maiorias no Congresso com o objetivo de promover a desconstitucionalização dos direitos sociais e trabalhistas; e a recuperação da agenda das reformas liberalizantes e desnacionalizantes que FHC não conseguiu viabilizar.
Seria uma espécie de “terceiro FHC”, mas agora disposto a criminalizar as lideranças progressistas do país (algo que o sociólogo presidente não fez nos seus dois governos, é importante lembrar), transformadas todas elas pejorativamente em “petistas”. Em suma, restrições à democracia e à diversidade de manifestações políticas, sociais e culturais, expansão da desigualdade, enfraquecimento do mercado interno e maior suscetibilidade às crises externas.
A senha para o avanço do golpe foi a criminalização de Lula a todo o custo e sem provas suficientes. Era preciso desmontar o mito do trabalhador que chegou ao poder e “fez melhor que todos eles”, quando “nunca se ganhou tanto dinheiro no Brasil”, e “nunca o pobre teve tantos direitos, possibilidades de ascensão social e autoestima”.
Esse discurso “lulista” era, até há pouco tempo, e mesmo no auge da crise econômica, imbatível. Não importa se é correto ou não. Ele tem apelo e tem voto, inclusive do poder econômico. Uma espécie de nacionalismo dos de baixo, mas que reserva lugar de destaque ao grande capital. No aspecto retórico, o discurso de Lula representa uma inovação com relação ao de Vargas, ao colocar o povo e os poderosos em pé de igualdade. É fruto de outro contexto histórico, de suas possibilidades e desafios. Mas também de suas contradições.
O plano golpista está traçado. E o nosso? Nós, quem? Quem somos? Para ampliar o campo da esquerda, de modo a incluir os que, no atual momento, se opõem ao golpe e aos seus efeitos nefastos, prefiro referir-me ao amplo segmento composto pelas forças progressistas da nação. Este campo – chamado pelo outro lado de “petista”, mas que hoje possui um contingente importante que, se votou, não vota mais no PT – expressa muito melhor a diversidade da estrutura social e da vida intelectual do país do que o formado pelos que mal podem esperar pelo momento do butim.
Sejamos francos. A única coisa que nos une é o respeito ao Estado democrático de direito que, no atual contexto, de crise econômica e esfacelamento do sistema político, significa também defesa do status quo. Isso porque, caso Lula volte à cena como quadro importante do governo e o impeachment seja detido, voltará como o “Lulinha paz e amor”, como ele mesmo antecipou no discurso da avenida paulista. Nada poderá ser feito de substantivo até 2018. O novo (velho) governo continuará bombardeado pela Lava Jato e o acordo – caso seja ainda viável – a ser costurado com banqueiros, empresários, pemedebistas etc. significará concessões de monta. Lula no governo, em nome da base que o apoia, conseguirá postergar a reforma da previdência e manter os direitos trabalhistas e sociais. Ponto.
Quer dizer que estamos lutando para isso? Não, nós estamos lutando para que a democracia, apesar dos seus defeitos, seja mantida e inclusive aperfeiçoada no futuro. Para que os movimentos sociais continuem tendo voz, poder e direitos. E para assegurar um mínimo de racionalidade ao final do mandato da presidenta Dilma, condição imprescindível para se recuperar o crescimento econômico e a confiança no país. O não retrocesso hoje é a grande meta. Não podemos negar que em termos de padrão de sociedade, apesar da grave crise econômica e da recente polarização política e social, estamos bem melhor do que estávamos nas últimas décadas do século XX.
Trata-se de uma posição pragmática como exige o momento. Os grupos da extrema esquerda estão inclusive desnorteados, pois Moro virou o subversivo – tirou o lugar deles -, usando de estratagemas para alterar o status quo que devem causar inveja a muitos dos nossos “revolucionários”.
Devemos, então, abrir mão da utopia? Não, a utopia deve começar a ser construída desde já. Primeiro, temos que criar uma narrativa própria sobre os avanços obtidos nos últimos anos e sobre a nossa incapacidade para gestar um projeto de desenvolvimento do país. Este nunca foi explicitamente colocado na mesa e discutido com a sociedade e os vários segmentos que a compõem nem nos governos de Lula.
Lembremos que a candidata Dilma sequer apresentou um programa à nação nas eleições passadas. Ela foi eleita com base nos efeitos tardios do lulismo, ancorado, aliás, em conquistas objetivas e subjetivas. Só sendo cego, para não percebê-las. Ou então tendo dois olhos e muito preconceito no coração.
A volta de Lula é a última tentativa de por o governo nos trilhos e de recuperar a base de apoio para se deter o impeachment. Poderá – se houver tempo e condições para tanto – acalmar os “mercados”, ganhar os votos do PMDB e de outros partidos que já flertam com o golpe e deslanchar alguns projetos de impacto social e simbólico. Mas não governará com a esquerda e para os movimentos sociais. Lula sabe melhor do que ninguém o poder dos que estão contra ele e Dilma, e o que é preciso para trazê-los “de volta”. Não se pode também descartar a hipótese de que as contradições anestesiadas durante os dois mandatos do operário presidente – a sua criatura – possam se voltar com toda força contra o seu criador.
Mas é preciso reconhecer que o nosso campo ficou refém do mito Lula. Quando eu gritava “Lula-lá”, na avenida paulista, no dia 18 de março, algo me dizia que eu estava mais ressuscitando o meu passado do que vivenciando algo capaz de se transformar em perspectiva de futuro. Como vamos construir uma nova utopia e um projeto de nação, algo que os governos do PT apenas esboçaram – mais preocupados que estavam em manter o poder, inclusive, fazendo uso de métodos ilícitos, e por isso, deploráveis? Isso é o que importa no presente momento.
Se conseguirmos deter o golpe, teremos que pressionar o novo (velho) governo para manter e ampliar as suas conquistas do passado. Porém, lembremos que as demandas de nossos adversários de dentro do governo serão muitas e, provavelmente, mais prontamente aceitas do que as nossas.
Portanto, é imperioso que construamos uma alternativa viável de longo prazo para as “nossas” reformas, mirando para além das eleições de 2018, e aproveitando o “coletivo” social formado contra o golpe. Não podemos mais ficar reféns do mito Lula. Precisamos ir além. Há quanto tempo não discutimos o Brasil que de fato queremos a partir das nossas possibilidades e potencialidades, sem fazer uso de slogans de campanha fabricados por marqueteiros milionários e sem acionar a nossa interminável ladainha sobre os pecados do neoliberalismo?
Alexandre de Freitas Barbosa é Professor de História Econômica e de Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP)