Por Daniel Cerqueira e Gustavo Pedrollo, no Democracia e Conjuntura.
Na tradição do Direito Constitucional e no Direito Político do Ocidente, temos, usualmente, dois institutos que podem ser usados para o afastamento dos chefes do executivo.
O primeiro, mais conhecido em terras brasilis, é o impeachment. Instrumento comum nas democracias presidencialistas, o impeachment é o impedimento do chefe do executivo por parte do poder legislativo. No entanto, como estamos falando do afastamento de alguém eleito diretamente pela população, e que, como tal, goza de legitimidade política própria, esse afastamento não decorre de mera vontade do legislativo, mas de motivo específico e estabelecido, no caso do Brasil, na própria Constituição Federal.
Assim, a única forma de se afastar um presidente da república (ou, por analogia, de um governador de estado ou prefeito) é por crime de responsabilidade, conforme estabelecido no Artigo 85 da CF:
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
I – a existência da União;
II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV – a segurança interna do País;
V – a probidade na administração;
VI – a lei orçamentária;
VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.
A Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, que regulamenta o processo de impedimento (impeachment), especifica os crimes de responsabilidade listados pela Constituição e disciplina o rito de julgamento.
Em outras palavras, o impeachment somente pode ser aplicado se o Presidente da República tiver cometido um dos crimes listado na lei e, importante, no curso do mandato atual. A Constituição é expressa e muito clara ao estabelecer isso. O impeachment não é aplicável em outros casos, como impopularidade ou falta de base parlamentar.
O segundo instrumento de afastamento é o chamado Recall, ou voto de desconfiança, e é comum nas repúblicas parlamentaristas. Aqui, como é o Congresso quem elege o Primeiro Ministro, a ele compete derruba-lo, bastando para tanto que o mesmo não possua mais apoio parlamentar. Uma votação com maioria qualificada é suficiente para o impedimento do primeiro ministro e nenhum crime é necessário para tal.
Percebamos o equilíbrio entre os dois instrumentos: no impeachment, o chefe de governo é nomeado (eleito) pelo povo. Logo, seu afastamento somente pode ocorrer em situações extremas, por graves atos que atentem contra a responsabilidade que se espera do ocupante do cargo. Já no recall, o chefe de governo é nomeado (eleito) pelo parlamento e pode ser afastado pelo mesmo a qualquer momento, bastando para tanto que não possua mais sustentabilidade política.
Existe ainda um terceiro instrumento de afastamento do chefe do executivo, mas que é pouco conhecido e usado no mundo, o referendo revogatório. Seu princípio acumula os princípios dos dois anteriores. Típico das repúblicas presidencialistas, o reverendo revogatório é a possibilidade da própria população abreviar o mandato de um presidente quando este não mais possuir sustentação política. Como somente pode derrubar quem nomeia, somente o povo poderia afastar presidente por impopularidade ou insatisfação com seu governo. E aí, não se exigiria nenhuma comprovação de crime cometido pelo Presidente. Como dito antes, poucos são os países que possuem em seus ordenamentos o Referendo Revogatório, como a Venezuela e a Bolívia. No Brasil essa previsão não existe.
Dito isso, o amigo e a amiga já devem ter entendido que o atual processo de impeachment da Presidente Dilma carece de um elemento absoluto e fundamental: a comprovação fática de crime de responsabilidade. Sem isso, não temos um processo juridicamente correto, o que pode nos trazer problemas ainda mais graves no futuro. Trata-se de um precedente perigoso que coloca o chefe do Executivo mais do que nunca à mercê do toma-lá-dá-cá da relação com o Poder Legislativo. O voto mais importante do sistema presidencialista, o voto no Presidente, perderá importância, se tornará refém do Parlamento, no âmbito federal, estadual e municipal.
Inegável que a Presidente Dilma teve sua base de apoio política corroída, por motivos que não iremos analisar neste momento. Mas impopularidade não é motivo de impeachment. Se tivéssemos o referendo revogatório, o processo de afastamento teria toda a legitimidade política e jurídica para seguir em frente. No entanto, da forma como posto hoje, não. E nem adiantaria mudar a Constituição Federal para incluir o Referendo Revogatório (uma ideia excelente): se isso fosse feito, tal mudança somente poderia surtir efeitos para o próximo presidente eleito.
Nesse sentido, falar que o impeachment, nas atuais circunstâncias, caracteriza golpe de Estado, faz todo sentido. Um golpe de Estado não se caracteriza pelo uso da força, mas sim pela ruptura institucional, pelo descumprimento das normas que regulam o exercício dos poderes políticos. Exemplificando, o uso da força para garantir a posse e o exercício dos poderes do parlamento eleito, ou do Chefe do Executivo eleito, não caracterizam um golpe, pois se trata de uso da força legal e constitucionalmente autorizado. No entanto, se um Presidente é deposto em processo de impeachment sem que se comprove os crimes de responsabilidade estabelecidos pela Constituição e especificados pela lei, há descumprimento da Constituição, há uma ruptura institucional. A Constituição estabelece mandato de quatro anos e impedimento apenas em caso de crime de responsabilidade. Se ela não é cumprida, há um golpe. O voto de cada eleitor que elegeu a Presidenta é desrespeitado. Não há uso da força, ao menos em um primeiro momento, mas há sim uma ruptura institucional que caracteriza um golpe.
Assim, o Impeachment está previsto na Constituição Federal? Está sim, de maneira indireta. E ele pode ser usado em qualquer situação? Não. Apenas nos casos comprovados de crime de responsabilidade da Presidente, no exercício de seu mandato atual.
Ora, se a presidente for afastada, isso decorrerá muito mais da falta de base parlamentar do que outro motivo. E se esse precedente for aberto, qualquer chefe de executivo (presidente, governador e prefeito) no futuro que não possuir maioria parlamentar estará à mercê de um impedimento, mesmo sem motivo jurídico adequado como preconizado na legislação. E ai, a saída para se manter no poder poderá ser a perpetuação de práticas corruptas, como o pagamento de mesadas a parlamentares, conseguindo assim e de forma artificial, a base parlamentar necessária para a tranquilidade de manutenção do mandato. Seria o efeito perverso da norma: em nome do combate à corrupção, poderemos estar estimulando a mesma, em níveis sequer imagináveis.
Então fica combinado assim: No Brasil, presidente só pode ser afastado por crime de responsabilidade devidamente comprovado. Governo impopular se derruba nas urnas, como se fez com o PSDB em 2002. Qualquer outra coisa é indevida e deve ser chamada pelo nome correto: golpe.