Análise Diária de Conjuntura – 23/03/2016
"Livra-me dos mundos nascidos do ódio, salva-me da negra infinitude sob a qual morrem meus céus. Acende um raio de luz nesta noite e que saiam as estrelas perdidas na densa névoa de minha alma. Mostra-me o caminho para mim mesmo, abre-me uma senda em minha espessura. Desce em mim com o sol e dá início a meu mundo". Cioran, em O livro das Ilusões.
Peço desculpas por não ter escrito análises nos últimos dias, mas é que fui literalmente soterrado de mensagens de Facebook, whatsapps, emails, telefonemas, a maioria das quais realmente importantes e que tive de responder.
Além disso, o Cafezinho se tornou um dos veículos principais dessa enorme articulação contra-hegemônica que se montou para derrubar um golpe que é essencialmente midiático. Tive que arregaçar as mangas e divulgar cada ato contra o golpe, e tem sido dezenas, centenas de atos, diários, em universidades, sindicatos, auditórios, teatros, praças, rua…
Apesar de estar sendo chamado de golpe jurídico-midiático, ou midiático-judicial, a parte mais importante dele é o "midiático". A parte jurídica é uma farsa. Uma farsa que vem sendo construída desde o julgamento do mensalão, e que nunca foi devidamente combatida pelos setores progressistas.
Para escrever minha análise, tenho que desligar o celular, fechar as páginas de facebook, esquecer tudo o mais por alguns minutos e me concentrar. Vamos lá.
A situação melhorou um pouco de ontem à noite para hoje. Teori Zavaski, ministro do Supremo Tribunal Federal, arrancou à força a chave de prisão de Lula das mãos de Sergio Moro. Podemos ao menos nos tranquilizar em relação a isso por alguns dias. Lula não será preso.
Há dois passos institucionais contra o golpe em andamento: 1) a votação em plenário do STF para reempossar Lula como ministro da Casa Civil, pondo fim ao AI-5 de Gilmar Mendes. 2) as articulações para barrar o impeachment na Câmara.
Os deputados progressistas na Câmara hoje são minoria, mas são combativos, e se dividem entre a militância parlamentar e a militância social. Nunca trabalharam ou lutaram tanto em suas vidas. Terão um lugar de honra na história. Destaco o papel de três parlamentares: Jandira Feghali, do PCdoB, Wadih Damous, do PT, e Jean Wyllys, do PSOL.
Entretanto, o fato mais marcante da conjuntura, a meu ver, se dá fora do campo institucional. É nas ruas que o principal jogo está sendo jogado.
A movimentação legalista vem crescendo a um ritmo vertiginoso.
O movimento antigolpe, numa velocidade incrível, se tornou maior do que a minha análise pode abranger. É como tentar ver um arranha-céu muito de perto. A gente estica o pescoço para cima, até doer a nuca, e não consegue ver o seu fim.
No Brasil inteiro, em praticamente todas as universidades, públicas e privadas, estão se montando comitês antigolpe.
Grandes manifestações antigolpe já ocorreram nas universidades mais importantes do país. Outras ocorrerão hoje e nos próximos dias.
O 31 de março promete ser o maior evento democrático já testemunhado em nossa história.
Mas os eventos democráticos não tem essa característica monolítica dos protestos midiáticos. Não temos "um" grande evento, mas muitos grandes eventos.
O fato dos eventos antigolpe terem uma participação das principais cabeças pensantes do país, de ter uma presença tão grande de intelectuais, artistas e classe média, mata de vez o velho preconceito contra os apoiadores dos governos petistas, segundo o qual estes seriam apenas analfabetos, recebedores de bolsa família ou comprados com sanduíches de mortadela.
Não.
O que a gente vê no Brasil, mais do que uma grande movimentação contra um golpe de Estado em andamento, é um corte epistemológico, de consequências revolucionárias para o nosso futuro político.
As pessoas despertaram para dois processos de manipulação que vinham se dando paralelamente: o processo de manipulação da mídia, de um lado, e o processo de manipulação jurídica, de outro.
Os dois continuam ativos, e com muita força.
Tendo apostado todas as fichas num ruptura institucional, as forças golpistas da mídia e dos aparelhos repressivos estão acuadas e desesperadas.
Às vezes eu acho que, no fundo, eles sabem que perderam a guerra. Serão derrotados se o golpe for bem sucedido e serão derrotados se o golpe falhar.
Se o golpe for bem sucedido (toc toc toc), haverá resistência, numa magnitude muito maior do que todos imaginávamos.
Para manter a estabilidade de um governo golpista, eles terão que apelar para repressão crescente das estruturas organizadas, o que gerará mais revolta e mais resistência.
Se o golpe falhar, a resistência legalista exigirá do governo, dessa vez com um ímpeto infinitamente maior, medidas para coibir a manipulação da informação. Ou seja, derrota dupla do golpe.
Há uma dialética da qual a mídia não consegue escapar. Quanto mais as forças golpistas (cujo núcleo é a Globo) se enlameiam em suas manipulações, aumenta a audiência dos meios de comunicação alternativos.
A audiência dos blogs explodiu: estão auferindo, individualmente, de 400 a 1 milhão de pageviews por dia.
Os Jornalistas Livres emplacaram de vez. Suas reportagens estão ganhando audiência. A Mídia Ninja se firmou como o principal noticiário alternativo audivisual do país, consolidando sua filosofia, mais que moderna, de que a melhor informação é a informação direta, sem filtros. Então os Ninjas tem exibido manifestações ao vivo em todo país.
Mas não só os Ninja. A CUT, a UNE, centros universitários. Todos estão criando ou aperfeiçoando, de maneira muito acelerada, seus próprios meios de comunicação, todos unidos tentando criar brechas nesta sinistra muralha de manipulação e mentiras que a grande mídia criou no Brasil entre os fatos e o povo.
Volto ao dia 18 de março: aquilo foi incrível demais.
A manipulação da Globo para diminuir o 18 de março entra para a história como algo similar ao que tentou nas Diretas Já, em que o Jornal Nacional mentia à população brasileira, dizendo que se tratava de uma manifestação pelo aniversário de São Paulo.
As manifestações golpistas do dia 13 de março foram superestimadas e as manifestações antigolpistas, subestimadas. Para cúmulo da manipulação, a Globo faz um percentual – um percentual! – de uma manipulação sobre outra manipulação, para chegar a infames 7%!
Em Lisboa, os manifestantes contra o golpe superaram os manifestantes pelo golpe.
No Rio, a manifestação antigolpe foi muito maior do que a dos golpistas. Tomamos a praça XV e as ruas adjacentes! Os golpistas tomaram a praia de Copacabana. Eu estive nas duas manifestações. A manifestação golpista é um grupo fechado, homogêneo, de brancos classe média zona sul.
As manifestações antigolpistas são muito mais plurais. Há gente de todas as classes sociais, de todos os bairros, das periferias, trabalhadores, estudantes, intelectuais.
As manifestações golpistas são muito mais artificiais: em Copacabana, havia grande número de pessoas segurando os cartazes impressos e distribuídos pela Habibs. Sem querer diminuí-las, elas são de pessoas que se limitam a se manifestar por um par de horas num domingo.
As manifestações antigolpistas são mais orgânicas, mais alegres, e logo se transformam em atos culturais. As pessoas ocupam as praças por horas a fio, festejando a democracia. Não há palavras de ódio. Ninguém deseja a morte ou prisão de Aécio Neves. As mensagens contra Sergio Moro são quase carinhosas: pedem imparcialidade e bom senso, apenas.
A movimentação contra o golpe está se tornando um dos maiores movimentos de massa já vividos pela história recente do país. Mas tem algumas características importantes, que precisamos destacar: não é puxada por um partido político, central sindical, ou movimento social específico, muito menos pelo governo.
São horizontais, espontâneas, e estão crescendo.
A reação democrática ao golpe é algo extraordinário, e tem surpreendido, positivamente, todos os analistas e cientistas políticos. A maioria já dava o golpe como certo, como uma tragédia já anunciada.
Até eu, um otimista inveterado, quase doentio, estava sucumbindo ao pessimismo.
Agora não.
Uma luz de esperança voltou a brilhar.
Porque, de fato, é uma coisa incrível, quase inacreditável.
A conjuntura não poderia ser pior para as forças progressistas. Economia ruim. Câmara subjugada por um bandido golpista e por uma oposição reacionária e antidemocrática. Governo fraco. Uma presidenta corajosa, mas totalmente desprovida do dom da fala e sem capacidade de análise de conjuntura. Um golpe jurídico trabalhado nos mínimos detalhes, através da implantação de um verdadeiro Estado policial.
Com tudo isso, mais uma vez nos vemos diante de um milagre.
Aliás, eu já tinha batido nessa tecla antes: o governo Dilma resistiria por milagre.
Esse milagre é a consciência democrática.
Claro, não há nada ganho ainda. Na verdade, ainda estamos perdendo. A conspiração midiático-judicial acelerou. A Lava Jato tem lançado uma nova operação por semana, buscando pautar a agenda política nacional e chantagear empresários e políticos encarcerados na Guantanamo do Paraná – em busca de novas delações que possam subsidiar o golpe.
Delatem Lula! Nos ajudem a derrubar o governo! É a ameaça constante aos presos da Lava Jato.
Em caso contrário, prisão perpétua, destruição de suas empresas, e, agora com a nova fase da operação, prisão de amigos, sócios, parentes.
São tantas ilegalidades, tantos os arbítrios, as mentiras, as manipulações, os vazamentos ilegais, que a Lava Jato deveria ser inteiramente anulada. Outras operações, por muito menos, o foram.
A ditadura midiático-judicial, que já estamos vivendo, entrou numa espiral fascista frenética. É um alívio, por isso mesmo, que o caso Lula tenha saído das mãos de Sergio Moro, a esta altura completamente surtado: ao mesmo tempo que recebe críticas pesadas da comunidade jurídica e acadêmica, é cada vez mais incensado pela Globo (o Fantástico passado o tratou como deus).
Diretores respeitados de faculdades de direito tem chamado Sergio Moro de bandido para baixo. Afirmam que ele cometeu crime qualificado, ao vazar os áudios de Lula e Dilma, e que deveria ser processado e preso em regime fechado por 2 a 4 anos.
A mídia tenta, a todo custo, trazer o povão para o seu lado. O noticiário econômico apocalíptico tem este sentido. Mas não tem conseguido.
É uma crise difícil, porque o golpe midiático é, como bem explicou Amir Haddad, teatrólogo, em evento antigolpe realizado anteontem na Fundição Progresso, uma doença, um vírus contagioso.
As pessoas contaminadas parecem se tornar zumbis sem cérebro. Elas não dialogam mais. Apenas repetem bordões midiáticos. Eu testemunho isso todos os dias, pelo blog e pelo Facebook do Cafezinho. As pessoas repetem lugares-comuns, como se elas tivessem se transformado em robôs da mídia.
Dilma terá que abordar esse problema de maneira mais direta.
Sobre o STF, já está bastante claro que há um movimento pesado para intimidá-lo e chantageá-lo. A Globo vai dar um prêmio Faz Diferença para a próxima presidenta do STF, Carmen Lúcia. Ela não deveria aceitá-lo. Esse prêmio é uma propina. Muito pior que uma propina, porque corrompe não apenas o juiz que o recebe, mas todo o sistema judiciário, que não pode ficar a mercê de hierarquias nobiliárquicas impostas pela Globo, representante maior dessa cleptocracia que assola o Brasil há séculos.
É triste ver que os ministros, quando sozinhos, agem de maneira acovardada.
Em plenário, a covardia continua, mas diminui um pouco.
Essa é a nossa esperança, no entanto não podemos mais depositar inteiramente nossa confiança em nenhuma instituição.
Todas as instituições brasileiras parecem estar sob chantagem da Globo, que não hesita em mostrar os dentes para todos, como vimos no caso de Rosa Weber, vítima de insinuações assim que recebeu o HC de Lula.
A consciência democrática do Brasil respira forte, coração acelerado, sem dormir direito.
É uma consciência nervosa, desesperada, porque agora já temos a certeza que o golpe orquestrado pela mídia e por setores conspiradores do Estado foi planejado de maneira assustadoramente minuciosa. Todos os passos que damos contra o golpe são respondidos com uma nova ação golpista.
Além disso, é um golpe sofisticado, que fala difícil, que engana facilmente o povo com sua linguagem jurídica empolada.
É também um golpe armado, já que boa parte da Polícia Federal se tornou um braço armado do golpe.
As pessoas perderam a sua confiança na democracia. Todo mundo, absolutamente todo mundo, está com medo de estar sendo grampeado pela Polícia Federal, o que é uma loucura total, porque isso mata o espírito de liberdade e a confiança nas garantias constitucionais que deveria prevalecer no país.
O vazamento contra a presidenta da república representou um ataque violentíssimo à soberania popular.
O vazamento de áudios íntimos da família do ex-presidente Lula representou um ataque repugnante às liberdades políticas e garantias individuais.
Em toda parte, vemos o recrusdecimento de algo que jamais esperíamos ver no Brasil: o fascismo em estado puro e cru. Crianças sendo agredidas por estarem usando camisa vermelha. Cãezinhos agredidos e seus donos xingados por estarem usando lenço vermelho. Pessoas agredidas por suas posições políticas. Sedes de partido depredadas. Assassinatos políticos de dirigentes comunistas.
A Globo, concessão pública, não faz nenhum editorial contra isso tudo: é cúmplice do fascismo.
Agora há pouco, o músico Lobão divulgou o endereço do filho do ministro Teori Zavaski, como forma de ameaçá-lo: mais fascismo.
O editor da Época, Diego Escoteguy, divulgou, em seu twitter, mensagem ameaçadora contra o ministro Teori, dizendo que ele seria vítima de violências. E ainda completa, cinicamente, que estava somente "constatando". Ora, editores de um grupo de comunicação tão grande como a Globo deveriam estar fazendo campanha para que as divergências políticas não degenerassem em agressões, sobretudo agressões contra um ministro do STF!
Ao chancelar, cinicamente, todos os atos de fascismo e violência que temos visto, a Globo e todos os órgãos submissos à mesma lógica, se mostram cúmplices de um movimento que, ao sair de controle, vitimará todo mundo, vide as agressões a Aécio Neves, ao secretário de Segurança de São Paulo e ao líder dos Revoltados Online (este último foi xingado de comunista, petralha e por pouco não é agredido fisicamente, em manifestação na Paulista).
O Brasil precisa de paz, democracia e respeito às garantias.
Não vai ter golpe!