Os últimos dias tem sido revolucionários em dois sentidos. A direita foi às ruas, lutar pelo golpe. Esse é o lado negativo. O lado positivo é que se criou uma rede de legalidade que já ultrapassou nossas fronteiras, e atingiu comunidades de brasileiros em todo o planeta. E que também estão indo às ruas, lutar contra o golpe, pela legalidade, contra os vazamentos seletivos e criminosos e pelo respeito ao voto da maioria do povo brasileiro.
O estudante Bruno Araújo participou de uma manifestação em Lisboa que conseguiu superar a dos golpistas, apesar de não terem nenhuma grande mídia a seu lado, ao contrário da outra.
Ele aparece em alguns vídeos que viralizaram, como aliás tem viralizado todas as manifestações antigolpe. O Cafezinho entrou em contato com Bruno Araújo para uma entrevista exclusiva, que publicamos abaixo, na íntegra.
Araújo é de uma geração que pode estudar e desenvolver instrumentos intelectuais para lutar a complicada guerra contra a manipulação da mídia.
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Bruno Araújo: um brasileiro em Portugal, lutando pela democracia
Entrevista exclusiva para o Cafezinho
Cafezinho: pode me falar um pouco sobre o que você estuda em Portugal e sobre suas posições políticas?
Bruno Araújo: Sou doutorando em Comunicação na Universidade de Brasília, onde ingressei em 2014 com um projeto de pesquisa sobre a construção discursiva da corrupção no Brasil e em Portugal. Estou em Portugal desde fevereiro, para passar um ano, e desenvolver parte substancial da pesquisa de doutoramento. O objetivo central da minha futura tese é analisar a cobertura de alguns meios jornalísticos brasileiros e portugueses sobre o chamado escândalo do mensalão, para perceber como o fenômeno da corrupção foi representado pelo discurso da mídia. Como a pesquisa envolve dois países e um único caso de corrupção, a ideia é perspectivar o chamado mensalão como um escândalo transnacional, a exemplo do que ocorre agora com a Operação Lava Jato. Tendo envolvido diretamente atores políticos e econômicos portugueses, meu objetivo aqui é analisar como parte da imprensa do país construiu a imagem dos atores portugueses no caso mensalão, a fim de observar se houve diferenças no tratamento dado aos atores brasileiros. Além disso, interessa-me verificar como essa mesma imprensa encarou as relações que houve entre os dois países no âmbito do escândalo. Naturalmente que, por detrás dessa análise empírica, existe um enquadramento de ordem histórica, que discute as relações seculares entre Portugal e Brasil e as proximidades e influências mútuas no que diz respeito à realização de práticas de corrupção. Isso, aliás, ajuda a entender que a corrupção é muito mais antiga do que alguns pensam e que não foi instaurada, tampouco institucionalizada no Brasil, por um partido político. O mesmo partido que injustamente hoje carrega essa pecha é o mesmo que proporcionou diversos meios de controle da corrupção. O paradoxo está aí.
Em relação aos resultados da pesquisa, muito limitados, porque ainda não incluem as análises que serão feitas em Portugal, pude verificar, nos milhares de materiais que tenho analisado, que a corrupção funciona como mote para uma cobertura altamente personalizada, isto é, focada basicamente nos atores sociais envolvidos e nos destinos deles quando processados e julgados. O interessante é que as lógicas midiáticas nada têm que ver com os procedimentos da justiça: os tempos, os discursos, os ritos, tudo isso é muito distinto, o que faz com que tenhamos quase um quadro em que um único acusado responde a dois processos distintos: um judicial, outro midiático. O mais preocupante é que se à Justiça cabe conferir o in dubio pro reu (em dúvida, para o réu), a mídia quase sempre promove o que alguns autores chamam de tribunal da opinião pública, no qual investigados e suspeitos são previamente condenados, cabendo-lhes, ao contrário do que prevê um Estado de Direito democrático, provar a sua inocência. Ora, nada é mas antidemocrático do que isso.
Por outro lado, se a cobertura da corrupção é altamente centrada em pessoas, perde-se obviamente a oportunidade de um debate mais aprofundado sobre o fenômeno que procure compreender as suas causas reais, as consequências e, o mais importante, que procure propor medidas de combate a ele. Como a mídia está cada vez menos interessada no debate, em sentido amplo, desenvolve, em contrapartida, abordagens centradas em jogos retóricos e num processo de espetacularização crescente, para o qual as veleidades e a intimidade dos atores políticos, os efeitos poéticos da linguagem, as fotografias sensacionais e outros ingredientes são a matéria-prima da construção desse espetáculo. Juntando a isso a visibilidade negativa desigual que certos atores políticos merecem na cobertura, marcada pela forte seletividade de fatos, falas e denúncias, temos uma discussão enviesada e estereotipada, justamente porque, em vez de alargar a compreensão publico acerca do fenômeno, a cobertura reduz o entendimento a equações e compreensões simplistas que dominam o senso comum. A complexidade inerente à corrupção se perde em meio a um pseudodebate. O resultado é a frequente construção de um pathos da indignação ou de uma catarse moralizante que, por razões que compreendo, possuem forte aderência pública, facilitando, assim, o surgimento de discursos que depreciam a própria política, como se fora dela houvesse possibilidade de erradicação das nossas mazelas.
Sobre as minhas posições políticas, tenho lutado pela conquista e pela manutenção de direitos, em especial para aqueles e aquelas que sofreram na pele as injustiças de uma sociedade autoritária, hierarquizada e profundamente preconceituosa. Pelo meu histórico de vida, filho de família humilde, egresso da escola pública, é evidente que tenho de estar associado a políticas que promovam a igualdade entre os brasileiros e as brasileiras. Isso faz parte de mim, porque fui fruto dessas políticas, ainda que meus pais se tenham esforçado toda a vida para dar o melhor a mim a à minha irmã. De todo modo, dentro dos limites que eram permitidos. Conheço bem a sensação de impotência que deriva da vontade de vencer na vida e vê-se podado pelas escassas oportunidades a que a maior parte da população tem direito. Isso começou a mudar nos últimos quinze anos, e apenas a desonestidade intelectual ou a cegueira deliberada de alguns podem justificar que se queira negar isso.
Cafezinho: você participou de uma manifestação em Lisboa cujo vídeo viralizou no Brasil. Por que você participou e como vocês se organizaram?
Bruno Araújo: A manifestação, que ocorreu no Largo de Camões, na baixa lisboeta, foi organizada por um conjunto de jovens brasileiros residentes em Lisboa e foi convocada pelas redes sociais. O curioso é que não apareceu lá nenhum órgão de comunicação social português, ao contrário do que aconteceu no domingo, dia 13 de março, em que uma manifestação pró-impeachment, realizada no mesmo local, e com menos participantes que a nossa, teve repercussão em quase todos os canais de televisão do país. Também por isso, ficamos muito felizes com a repercussão que o vídeo alcançou. Eu jamais esperei ser ouvido pelas milhares de pessoas que, neste momento, já visualizaram e compartilharam a mensagem em suas redes sociais. Mas já que houve essa repercussão, fiquei muito feliz em ver, pelas várias mensagens de carinho que recebi, que as minhas palavras foram representativas do que pensa parte importante da juventude brasileira, especialmente daquela que hoje está na universidade, graças às recentes políticas de inclusão.
Ao longo da nossa manifestação, cada um de nós ia fazendo a sua análise e passando a sua mensagem em relação ao que está acontecendo no Brasil. A maioria de nós éramos professores e estudantes, mas havia também brasileiros e brasileiras que vivem em Portugal há bastante tempo, e que, muito justamente, continuam se preocupando com os rumos que o país toma. Nada mais legítimo e patriota do que isso. No momento em que eu fazia o meu depoimento, um cidadão brasileiro, contrário à manifestação, passou e gritou: “Então, por que você está aqui?”. O sentido implícito na pergunta-provocação dele era o de que eu, bem de vida, estava em Portugal porque havia escolhido viver num país com melhores condições de vida, para fugir aos problemas que assolam o Brasil, contra os quais pessoas como ele supostamente protestam. Mesmo que eu tivesse escolhido viver em Portugal, não enxergaria problema nenhum na minha participação engajada naquele ato. Não era, porém, o meu caso. Estou em Portugal para estudar e por tempo determinado. Ao ouvir aquela provocação injusta, aumentei a contundência da minha fala e fui tomado por uma emoção que me levou a dizer o que disse, com toda a verdade que há dentro de mim. Disse-o e repito-o aqui: estou em Portugal, atualmente, graças às políticas de inclusão social criadas e mantidas pelos governos do Partido dos Trabalhadores.
Para alguém que nasceu numa cidade de oito mil habitantes no interior do Ceará e lá viveu até os dezessete anos, conseguir, hoje, estar inscrito no doutorado, em uma das melhores universidades do meu país, com a possibilidade de fazer parte da pesquisa na Europa, é mais do que uma realização pessoal; sem medo de cometer exagero, é a manifestação clara de que vivemos num país mais inclusivo e menos desigual. Habitamos um país que continua padecendo de muitos problemas, mas que, ao contrário do passado, mostrou ao seu povo que é possível diminuir a brutal desigualdade que marca as relações sociais no Brasil. Pela primeira vez na história, um governo, mesmo com muitos defeitos, conseguiu mostrar ao mundo que é possível combinar democracia, crescimento econômico e política social, destruindo as teses de certas mentes contrárias à inclusão pelo Estado.
Elogiar o que foi feito nos últimos anos não significa que estejamos satisfeitos com o que se conquistou até aqui. Ao contrário, quer dizer que devemos continuar lutando para aperfeiçoar o caminho da inclusão nos vários quadrantes da nossa sociedade. E isso só pode ser feito no âmbito de uma democracia forte, com instituições igualmente sólidas e um povo com consciência política que o permita pensar autonomamente. É por acreditar nisso, e por ter a certeza de que tudo o que conquistamos até aqui está em risco que eu estava lá e, diante de uma provocação gratuita, reagi com vigor, não ao senhor isoladamente, mas a todos os que pensam como ele. E, hoje, ao ver que há milhares de jovens que pensam como eu, estou ainda mais certo de que estou do lado correto da luta.
Cafezinho: como você vê as informações sobre a crise política chegarem a Portugal?
Bruno Araújo: Portugal talvez seja o país que mais tem dado importância à atual crise política que se vive no Brasil. Os meios de comunicação aqui têm dado expressiva visibilidade a tudo o que se passa do outro lado do Atlântico. De análises no interior dos telejornais a programas de debate com a situação brasileira no centro das discussões, tenho verificado um claro interesse pelo contexto político do Brasil. É evidente que, como estudioso do jornalismo, estou sempre atento àquilo que considero menos bom na cobertura, porque está na crítica a possibilidade de melhorarmos o estado das coisas e o próprio jornalismo. Assim, observar os meios de comunicação portugueses nesses últimos dias tem sido um exercício muito estimulante. Uma situação que me incomoda bastante é ver inscrita, nas páginas dos jornais e nas telas das televisões, a palavra “imunidade” em referência à suposta proteção que Lula receberia caso o seu processo fosse deslocado para o Supremo Tribunal Federal. Isso pode parecer um detalhe, mas para quem, como eu, se tem dedicado aos estudos do discurso, não é irrelevante. As intepretações fornecidas pelo jornalismo formam sentidos no interior da opinião pública, que, apesar de heterogênea, tende a ser influenciada por eles. Outra questão de que sou crítico é o fato de os meios portugueses recorrerem bastante aos jornais brasileiros como fonte de informação. Poucos são os que enviam jornalistas diretamente ao local dos acontecimentos no Brasil.
Ainda assim, observo que, ao contrário da nossa realidade, existe mais contraponto nos meios de comunicação social de Portugal. Os portugueses estão menos reféns da opinião única que tem dominado largamente a imprensa brasileira, com algumas poucas exceções. É possível ouvir opiniões divergentes, visões diferentes sobre o momento vivido, com análises muitíssimo bem fundamentadas, vindas de pessoas dos diversos espectros político-ideológicos.