Foto: Roberto Parizotti / CUT
por Carol Proner, exclusivo para o Cafezinho
Dentro do avião e ainda muito impactada pelos últimos acontecimentos no Brasil, percorrendo o cardápio de filmes disponíveis durante o voo eis que me deparo com a oferta de um dos indicados ao Oscar, “Trumbo, Lista Negra” dirigira por Jay Roach. O filme conta a história de Dalton Trumbo, roteirista americano que se filia ao partido comunista em 1943 e que protagoniza a saga da perseguição aos diretores, escritores e artistas de Hollywood durante a Guerra Fria.
A Lista Negra elaborada pelo Comitê de Atividades Antiamericanas monitorou centenas de pessoas que foram implacavelmente perseguidas no trabalho e na vida privada. Assim como é frequente nos momentos de repressão política generalizada, também o macarthismo se valeu das delações premiadas e do denuncismo vicinal como instrumentos de criminalização e autolegitimação das ilegalidades nas alianças entre o uso legítimo da violência de Estado e o poder da toga contra as lutas sociais: artistas entregando companheiros que cometeram “crime de comunismo” e a sociedade mantendo distância higiênica enquanto os contaminados sofriam dramas de consciência sobre como/se ser um verdadeiro comunista.
“Trumbo” não mereceria estatueta nem pelo roteiro clichê numa leitura minimamente exigente nem pela inconsequente mensagem final de considerar que durante a repressão “todos somos vítimas”. Acho até que foi bem longe ao receber indicação de melhor ator ao bom trabalho feito por Bryan Cranston no papel do escritor silenciado, embora não fosse páreo diante do Urso DiCaprio de “O Regresso”.
E quem se importa?
O filme mexeu comigo porque o estômago está revirado. Para além das comparações notórias com o processo de criminalização que vive o partido dos trabalhadores (PT) e a esquerda no Brasil – ou acaso não caiu a ficha?! – e mesmo com cinquenta anos de distância de lá pra cá, o que prendeu minha atenção foram os silêncios, os compassos de espera até o sinal para a caçada às bruxas, aquilo que não se espera.
Afinal, quando realmente acreditar que o fascismo de todo o dia está de alguma forma sistematizado? Como saber se aquela piadinha de mal gosto contada por um vizinho ou um colega de trabalho contém mesmo aquele ódio que você já viu antes ou ouviu falar? Um ódio especial. Os silêncios eloquentes no olhar dos acusadores, dos delatores e oportunistas amparados por qualquer tipo de bandeira, a da vez, pintadas na ocasião pelas tintas da legalidade autoritária que estão sempre lá, permanentes e continuadas, e que transformam o adversário político em inimigo a ser eliminado. Quando Sacco e Vanzetti, já mortos em vida, batiam no peito para confessar que “noi siamo anarchici!”, isso 20 anos antes dos episódios de Hollywood, acaso não foi o mesmo que fez Lula no recente discurso cada vez que bateu a alma na mesa e falou direto ao coração da militância adormecida?
Fico pensando quantas lutas acumuladas pelos caminhos da história vamos ignorar permitindo um novo golpe à democracia e aos direitos conquistados. Devemos essas lutas a muitos brasileiros presos, torturados, demitidos, banidos e exilados. E será que Lula, do alto de sua biografia, diria que “todos somos vítimas”? Se a frase é mesmo verídica, este sim foi o crime de Dalto Trumbo: não somos todos vítimas, ao contrário, supõe-se que cada um é consciente de onde está neste momento, sabe a responsabilidade e as armas que tem para confrontar mais uma ameaça golpista neste país tão assediado.
Não cabe o benefício da vitimização generalizada, nem justificar a preguiça política com um singelo e cumplice “cansei”, não cabem os caminhos metafísico das crises econômicas a escala planetária ou da corrupção líquida. Nada justifica a ruptura do Estado Democrático de Direito, a destituição de um presidente eleito, a ilegalidade e criminalização de um partido político, nada legitima o pedido de volta dos militares e da repressão, a não ser, e aí sim concordar com Dalton Trumbo quando explica à filha pequena agredida pelos colegas fascistas da escola: “é uma época de muita maldade”.
Carol Proner é Professora de Direitos Humanos FND-UFRJ
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