A mídia e as bactérias intestinais

Análise Diária de Conjuntura – 08/03/2016

Uma característica incômoda – para um analista político – de tempos de guerra, ou de tempos em que uma crise política atinge seu ponto mais turbulento, a crise da crise, por assim dizer, é a aparente inutilidade de seu trabalho.

A força substitui a inteligência.

O exagero, a mentira, a desinformação, adquirem muito mais prestígio do que a verdade.

Em se tratando de história ou política, a verdade não porta armas, não carrega bandeiras, não grita. É uma velha senhora que fala em voz baixa. Prefere negar os fatos, ao invés de afirmá-los. Desmontar teses, ao invés de criá-las.

A mentira, paradoxalmente, é uma potência afirmativa, autoconfiante, segura de si.

A verdade é tímida, cheia de nuances, insegura, contraditória.

A verdade não se torna muito útil em momentos de turbulência política. 

Os cristãos declaravam que "a verdade liberta", mas desde o começo se aferravam, desesperadamente, às suas mentiras; de início, talvez, com certa ingenuidade; em seguida, com assumido cinismo e requintes de crueldade: mandavam queimar na fogueira quem contestava suas mentiras.

Se isso serve de consolo, essa postura – essa guerra desesperada contra verdades incômodas – tem sido constante em todas as religiões.  

Os conceitos de verdade e justiça nunca foram amigos. Semelham-se antes por seus defeitos do que por suas virtudes: ambos são ambíguos, confusos e tem servido, ao longo da história, para justificar todo tipo de massacres, mentiras e injustiças.

Não são amigos porque parecem se repelir o tempo todo: se eu mentir para salvar a vida do meu filho, estarei sendo justo?

Em política, por essas mesmas razões, não se fala a verdade. 

Os respectivos grupos políticos se reúnem entre si para trocarem palavras de incentivo, estímulo à luta, não para dizerem verdades, o que seria de mau gosto, contraproducente, quiçá ridículo. 

De vez em quando, alguns se afastam para um canto, ou se trancam numa salinha à parte, para discutir informações que nem o seu próprio grupo ampliado pode saber.

É hora de ir ás ruas, não de discutir "verdades"!

Defender o impeachment! Defender um Brasil livre dos corruptos do PT!

Defender a democracia! Defender Lula! Defender mais justiça social!

Não quero parecer ambíguo, contudo. Eu até entendo a intenção de alguns "imparciais". Respeito, no jornalismo, essa ambiguidade oleosa, semi-covarde, que se compraz em escrever no escuro e se fantasiar de isenta. Mas é algo que, definitivamente (e explicá-lo me demandaria uma outra análise), me dá náuseas. 

Eu, Miguel do Rosário, defendo a democracia, defendo Lula e defendo o PT contra o massacre midiático e contra as conspirações judiciais.  

Entretanto, nunca me vi diante de um desafio tão complexo. 

As mentiras e violências da mídia são tantas, chegam com frequência tão intensa, atacam em tantas frentes, que não me parece mais suficiente rebatê-las uma a uma.

São vermes que, a cada vez que os matamos, se multiplicam em muitos outros. 

Penso nas bactérias intestinais. Provavelmente em algum momento da evolução, elas nos matavam irremediavelmente – até o dia em que nossos ancestrais se transformaram de tal maneira, se tornaram tão adaptados a elas, que passaram a usá-las como auxiliares em nossa digestão. 

A melhor solução é essa: desenvolvermos anticorpos intelectuais tão fortes que transformaremos os vermes da mídia em bactérias intestinais, que nos ajudarão a deglutir esse manancial quase infinito de informações que surgem a cada segundo. 

Se não é possível derrotar a mídia – e pensar num mundo sem mídia me parece tolice -, então devemos usá-la a nosso favor. 

É tranquilizante pensar que, um dia, os Marinho, os Kamel, os Mervais, converter-se-ão em bactérias intestinais. 

Para isso acontecer um pouco mais rápido, para acelerar essa evolução darwinista, precisamos entender que a nossa principal arma – sobretudo numa guerra eminentemente midiática e psicológica – é a razão.  

Hannah Arendt, em seu clássico As origens do totalitarismo, tenta desvendar o grande mistério do antissemitismo, esse ódio tão bizarro quanto, aparentemente, inexplicável, sobretudo porque explodiu justamente na medida em que o poder e influência das elites judaicas já tinham desaparecido há tempos na Europa. 

A filósofa lembra, então, que algo semelhante acontecera na França revolucionária do final do século XVIII. Citando o livro O Antigo Regime e a Revolução, de Tocqueville, ela observa que o ódio à aristocracia francesa atingiu seu ápice exatamente no momento em que os aristocratas se encontravam virtualmente falidos e inclusive o seu poder político vinha declinando rapidamente. Os privilégios de que gozavam, por isso mesmo, pareciam, ao povo, mais odiosos – porque absurdos e inúteis. A aristocracia passou a ser odiada porque podia ser também desprezada. Ela não era mais temida, não tinha mais poder. Era vista como parasita social. 

Com os judeus, diz Arendt, acontecerá algo semelhante. As elites judaicas, tinham gozado, por séculos, de alta reputação junto às monarquias, em função de suas notáveis habilidades financeiras. À época do imperalismo nascente da virada do século XX, ou seja, exatamente no ápice do antissemitismo, não representavam mais nada. 

O ódio ao PT talvez siga uma lógica similar. O partido perdeu eleitores, deputados e prestígio. Várias de suas lideranças foram condenadas e foram ou estão presas. As perspectivas eleitorais da legenda não são promissoras para os próximos anos. No entanto, o ódio contra o partido parece ter atingido seu grau máximo.

O fato da presidenta da república, acuada pelas circunstâncias desfavoráveis, não exercer o poder, acaba por atiçar ainda mais esse ódio, porque à população, mesmo para aqueles que votaram em Dilma, parece que seu voto foi inútil. Para que tanta pompa, se Dilma não manda em nada? O povo sai de casa para votar e eleger uma liderança, pensando que esta efetivamente exercerá a liderança. Ao optar por governar no escuro, sem comunicação direta, sem mídia, Dilma ajudou a elevar o ódio e o desprezo da população por ela e, consequentemente, pelo PT. 

O ódio do povo não se volta contra aqueles que exercem o poder, mas sim contra aqueles que ocupam cargos de poder mas não o exercem, porque isso lhes parece traição ou covardia.

Eu sempre achei que as misteriosas "jornadas de junho", de 2013, tiveram a ver com essa sensação de abandono, de falta de governo, de vazio de poder, muito por culpa de uma presidenta ausente, que apenas aparecia à população mediada pela grande mídia.

Quando se fala tanto em crise da representatividade, seria interessante agregarmos esses conceitos arenditianos. Os freios e contrapesos, características mais importantes e mais saudáveis de uma democracia, e que visam essencialmente conter o poder, também ajudam a explicar a antipatia crônica das populações aos governos, vistos como inúteis, como simples marionetes daqueles que, efetivamente, detêm o poder. Em se tratando de governos de esquerda, que são (saudavelmente) contraditórios em relação ao regime econômico , as elites fazem questão de impor todas as travas possíveis ao exercício do poder. 

Há um outro enfoque que gostaria de dar a esta análise, com base num ensaio famoso de David Foster Wallace, intitulado E Unibus Pluram: Television and U.S.Fiction. 

Foster, fugindo de todos os clichês da crítica à cultura televisiva, observa como um público cada vez mais treinado, já não vê para onde a TV aponta, mas para a própria TV: "Um cão, se você apontar para alguma coisa, olhará apenas o seu dedo".

É o que tem acontecido, em escala crescente, e não apenas com a tv, mas com o nosso sistema corporativo de comunicação, que funciona com uma homogeneidade tão grande, que se parece, aos olhos do público, como uma coisa só. É por isso que o termo PIG tornou-se tão popular: um ser tão homogêneo, precisava de um termo que lhe desse vida, e ao mesmo tempo expressasse sua característica principal, que é representar um campo político específico. 

No mesmo ensaio, Foster fala da relação dúbia entre TV e ironia. A TV teme a ironia como um prestigitador receia que seus truques sejam revelados. A ironia quebra a relação necessariamente ingênua, ou artificialmente ingênua, entre o espectador e a TV. Foster cita, por exemplo, a ironia que emerge da diferença entre o som e as imagens, e lembra uma entrevista, feita com um alto executivo da United Fruits, num especial sobre a Guatemala. Enquanto este dizia ao repórter que desconhecia qualquer opressão política no país (e a empresa sempre foi acusada  de eleger e derrubar governos), apareciam imagens de ativistas degolados e crianças doentes em favelas do país . 

No Brasil, a ironia é profundamente temida pelos grandes meios de comunicação, porque eles sabem que ela pode se voltar contra eles mesmos. Essa talvez seja a razão principal pela qual o humor na TV aberta tem sido, aos poucos, eliminado. A Globo ainda tentou exibir um programa de humor com Marcelo Adnet pela madrugada, mas não deu certo. Nos Estados Unidos, a força cultural da TV, explica Foster, deriva da contradição entre a sua profunda diversidade, de um lado, e a sua tendência brutal à homogeinização. Aqui, no Brasil, pelo fato da TV ter se consolidado justamente no período ditatorial, onde havia censura e controle político dos conteúdos, ficamos apenas com a homogeneização. 

A mídia brasileira não consegue conviver com a ironia, e isso me parece o mais bizarro. Os analistas políticos da mídia corporativa falam o tempo inteiro da crise política, mas não podem falar do principal ator da cena política brasileira: a própria mídia onde eles trabalham. A mídia brasileira, em função da condição de oligopólio, não pode falar de si mesma. A ironia, portanto, está proibida na grande mídia, daí esse rancor crescente, negativo, apocalíptico, que vemos em seus telejornais. Não é – penso eu, embora esse seja um fator importante – apenas uma estratégia política para enfraquecer o governo. É uma doença própria da mídia brasileira. 

***

Num de seus livros, Wanderley Guilherme dos Santos discorre sobre o conceito de instabilidade criativa, provocada por algumas das crises políticas que caracterizam a nossa história. Nem todas as instabilidades são criativas, porém. 

A instabilidade atual seria criativa? 

Eu acho que sim.

Em primeiro lugar, ela põe em evidência um problema que, uma hora ou outra, deveríamos enfrentar: a falta de discussão sobre os mecanismos pelos quais membros do ministério público e do judiciário são renovados. São mecanismos nada democráticos, que povoou o Estado de elementos quase fascistas, com quase nenhum compromisso com as consequências sociais de suas decisões. 

Em segundo lugar, e talvez isso seja o mais importante acontecimento desde a redemocratização, a questão da mídia passou para o primeiro plano do debate político.

Em terceiro lugar, mas ligado às duas questões anteriores, testemunhamos agora, pela segunda vez desde o julgamento do mensalão, os perigos da relação promíscua entre corporações de mídia e corporações judiciais. 

As corporações de mídia me parecem equivocadamente confiantes no sucesso de seus planos para derrubar o governo e o partido dos trabalhadores, ou pelo menos deixá-los tão enfraquecidos, tão emasculados, que não representem mais nenhum perigo em 2018.

Aparentemente, essas empresas  – detentoras dos mais poderosos e eficientes instrumentos de pesquisa de comportamento social – já fizeram suas contas.  Sua insistência em métodos tão notoriamente inescupulosos de manipulação da opinião pública, nos leva a acreditar que elas entenderam que o contraponto, através dos blogs e redes sociais, não é suficiente para impedir o processo de controle da opinião social. 

Desde Chomsky que estudamos o poder descomunal da mídia para produzir consensos. Nos Estados Unidos, cujo governo detêm um poder de comunicação sem paralelo na história mundial, sempre houve uma convergência de interesses entre a grande mídia e o governo, em função mesmo das características próprias do imperialismo americano. No Brasil, sempre que tivemos democracia, temos essa divergência entre uma mídia historicamente financiada por agências de publicidade norte-americanas, e o governo, que tem compromissos com o eleitorado. Esse é mais um fator de instabilidade, dentre tantos outros. No momento, é o fator de instabilidade primordial, e que não será resolvido tão cedo. Mesmo se o governo for derrubado e substituído por um governo fantoche das corporações de mídia, a instabilidade não será solucionada. 

Ao contrário, essa instabilidade estará, mais que nunca evidente, e por isso insisto sobre o fator criativo da crise. Esses consensos se formam na superfície da consciência social. Não são profundos. A tendência, ao contrário, é que eles se desfaçam em seguida, e por isso as ditaduras são populares apenas num primeiro momento. 

Se as conspirações midiático-judiciais quisessem dar o golpe para fazer bem ao povo, ainda sim seria um golpe, mas suas consequências seriam menos complicadas. Mas não é. Não é preciso ser nenhum gênio da política ou visionário para perceber que lidamos com uma revolta mafiosa, que não governará para os mais pobres. 

A "criatividade", portanto, gerada pela instabilidade fará correr muito sangue e lágrimas pelo solo brasileiro e por isso os movimentos sociais, que sabem disso, lutam com tanto afinco para que não haja uma ruptura política conforme tentam fazer os segmentos mais corruptos e violentos da sociedade brasileira.  

O povo não tem desejo nenhum de ser cobaia, nem para historiadores futuros, tampouco para estrategistas políticos. 

***

O tensionamento da crise política, e sua consequente polarização, dificulta as análises críticas, mas não podemos perder a oportunidade de fazê-las, porque o momento pede soluções inteligentes que, por sua vez, precisam de críticas para serem pensadas adequadamente. 

A sucessão dos erros do governo e do partido dos trabalhadores, à luz dos problemas vividos hoje pelo país, não pode ser mais posto de lado. 

Todos eles, porém, podem ser resumidos numa só palavra: política. 

O desprezo pela política resultou trágico  – para todos.

Não se discutiu a mídia.

Não se discutiu o judiciário.

Não se discutiu o julgamento do mensalão.

Não se discutiu o ministério público.

Não se discutiu a mobilidade urbana.

Não se discutiu o fim dos conselhões, que reuniam empresários e trabalhadores. 

Todos os fóruns de discussão política foram desmantelados. Todos os programas de comunicação política entre governo e população foram esquecidos. 

Até mesmo a política internacional – que sempre gerou reflexos positivos, durante o governo Lula, para as questões políticas domésticas – foi deixada de lado.

No ano passado, Dilma abriu a Conferência das Nações Unidas e perdeu a magnífica oportunidade de abordar assuntos de política interna. Poderia ter feito uma denúncia – justa, necessária, urgente! – contra o estrangulamento do debate político feito por uma mídia concentrada. 

O partido dos trabalhadores, por sua vez, enterrou-se vivo. Parou de produzir seminários, debates, abertos à sociedade. 

Por que o PT nunca fez uma grande conferência nacional sobre democracia e mídia? Não digo uma conferência fechada, para petistas, mas algo aberto a todos, sobretudo aberto a todos? 

Tudo isso é política – e foi esquecido.

Esta é a razão pela qual a crise que vivemos hoje tem uma razão de ser. 

Ela é necessária. É uma prova que temos de atravessar. 

Outras crises já foram vencidas, mas as forças governistas optaram sempre por, vencida aquela batalha, aposentar as armas. Não é assim que funciona a questão política, sobretudo num país estruturalmente instável como o nosso. 

Não podemos, todavia, encarar as batalhas próximas como sendo as derradeiras que enfrentaremos, ou temer derrotas como se significasse o fim trágico de uma era. 

Nada vai terminar. Sempre haverá resistência, reconstrução e novas batalhas. 

Somos uma democracia jovem, com problemas estruturais profundos, e que precisará enfrentar ainda muitas crises para dar solução a seus inúmeros problemas. 

Mas as próprias soluções gerarão, por sua vez, outras crises e outros problemas. É um ciclo natural e necessário da vida, cujo natural não é a paz, mas o tumulto.

Sêneca dizia que quando os vícios explodem e os reinos são transformados em tirania, surge a necessidade de leis; mas estas mesmas leis depois são manipuladas por pretensos sábios. 

Entretanto, são estes mesmos ciclos que empurram para a frente a história. Desde que reduzamos os seus danos, e evitemos as guerras e os massacres, eu acho que estará tudo bem. 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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