por Rogerio Dultra dos Santos, no Democracia e Conjuntura
No acarajé vai pimenta, vatapá e camarão. Pelo menos. Nos olhos dos outros a pimenta é sempre refresco. No acarajé é essencial. Não queira experimentar o acarajé quem não está acostumado aos temperos da Bahia. Dá indigestão. É igual a questionar eleição vencida. É como uma droga: depois do sabor e da euforia, pode vir a depressão e o caos. A emenda sai pior que o soneto.
É bom cuidar dos temperos, portanto. No vatapá, o leite de coco é abundante, mas o camarão é seco. A preparação é essencial. Afobação é a receita do fracasso. Se não tiver estudado, se não souber o andamento do processo, não invente. Vai ter sempre um baiano para dizer que você fez errado. E a vergonha não será alheia. Será sua.
Sonhar é mais fácil do que fazer um acarajé funcionar de acordo com as expectativas.
No começo, o sonho é doce. Existe o sonho da democracia e existe o sonho da ordem. O sonho democrático implica em pluralismo, aceitação das diferenças, ganhar e perder. O sonho da ordem são outros quinhentos. A ordem sonhada é só sua. Qualquer um outro é intruso. Enquanto no sonho da democracia todos podem participar, no sonho da ordem só quem pode meter a mão é você.
O sonho da ordem não é doce. As elites brasileiras não sonham com a democracia. Nem mesmo operam sob seus parâmetros. Têm um sonho próprio, cujo desejo revelado é a acumulação de status, de benesses e de capital. E este sonho que não se sonha junto tem caráter exclusivista: está todo mundo proibido de participar. É um sonho de poder e é privativo, do qual deriva uma ordem que exclui e marca uma diferença que se consagra por si.
Sonho que se sonha sozinho pode ser amargo. Não deixa de ser um sonho inebriante, que seduz alguns dos explorados, sob a promessa de que, tornados semelhantes temporários, sonhem virarem iguais em um dia perdido no firmamento. Mas um sonho que não se sonha junto é de difícil extração. Demanda muita violência, mídia paga, reportagens sem fim, uma justiça venal e uma articulação que pode enganar muitos por algum tempo, mas não a todos o tempo inteiro.
E quando o artifício se esgota, lá pela vigésima terceira vez que é utilizado, aparece o povo, em romaria.
Aparece o negro, o nordestino, retorna o acarajé, cobrando o experimento. Aparecem até as forças do candomblé e acusam a blasfêmia. E o sonho de um só é o destino de um só: se torna perdido em pensamento.
Na real, a universidade do interior não ajudou. Não permitiu, nele, concatenar direito e democracia, constituição e processo, acusação com prova. Ficou tudo confuso, desde o começo, naquela faculdade do caipira, naquela vida sem luz.
E com a cabeça afundada em nós, o pai peão com sede de poder, e mesmo sem saber orar, o filho pródigo veio mostrar o seu olhar, para a globo lhe dar a paz e a fama de seu sonho sonhado a só.
Mas, por mais que rezasse, e força tarefa fizesse, não vinha nada.
Ou melhor: vinha das minas geraes o pó. Mas o pó desfazia o sonho e o sonho se desfazia com o pó e com o acarajé. Então o pó era varrido para debaixo do tapete toda vez que se espalhava pelo ambiente. E o acarajé, mastigado sem dó, era expelido em golfadas pela polícia política descontrolada.
Até onde iria o sonho?
Que a democracia poderia se perder a custa de suas aventuras, não importava. Afinal, o sonho se sonhava só. Sem povo, sem voto, sem jurisdição.
Até onde ir? Era a pergunta que, no fundo, não queria responder. Porque aí o sonho fatalmente acabaria.
E não restaria povo, democracia, país. Não restaria porque sonhar.
Restaria somente o pó.
E o seu olhar não bastaria para redimir toda a ignorância, e toda a violência, e a barbárie que uma vida escura e medíocre causara a todo um país. E o acarajé seria apenas uma triste lembrança, um regurgitar medonho do que nunca poderia ter sido.