Análise Diária de Conjuntura – 22/02/2016
Em Dublinenses, há um conto de James Joyce que trata de uma campanha eleitoral na cidade natal do escritor. Chama-se “Ivy Day no Comitê Eleitoral”. Cabos eleitorais de um candidato a prefeito de Dublin conversam, na sede de um comitê, sobre política, ou, mais especificamente, sobre os salários que o político ainda não havia pago a eles.
Um deles começa a vociferar contra o candidato, que havia prometido entregar, ainda aquela tarde, uma caixa de cervejas no comitê, e até agora nada. Até que chegam as garrafas e o mesmo personagem passa, subitamente, a elogiar o candidato.
É um conto divertido, que mostra uma realidade eterna da política democrática, desde os atenienses da antiguidade: a relação entre eleições e dinheiro.
Só que esta relação se sofistica ao infinito, até chegar aos tempos atuais, onde ela é criminalizada ao sabor das circunstâncias.
A nova fase da Lava Jato, a sua vigésima-terceira, intitulada Acarajé, não esconde, desde o nome, o seu objetivo: trazer João Santana, tratado como “o marketeiro do PT” e, especialmente, marketeiro da campanha de Dilma Rousseff, para dentro da narrativa.
O objetivo é sempre o mesmo: o golpe. No caso, o golpe hondurenho, via TSE. A nova fase visa subsidiar a narrativa de que a campanha de 2014 foi abastecida com recursos do “petrolão”. Para isso, inventarão de tudo – por exemplo, confundir o dinheiro que Santana recebeu no exterior para campanhas em El Salvador, com os recursos para a última campanha presidencial no Brasil.
Eu assisti à coletiva da força-tarefa da Lava Jato. Como sempre, não há prova nenhuma. Apenas indícios. Há documentos, mas os vínculos e narrativas que se tenta criar em torno deles são forçados.
Um vice-presidente da Odebrecht teve pedido de prisão requerido por causa de um bilhete. Marcelo Odebrecht, já preso, teve um novo pedido de prisão preventiva (outra loucura da Lava Jato, prender gente já presa), também por causa de um bilhete.
Santana detêm a maior empresa de marketing eleitoral do país, quiçá da América Latina. Presta serviços para vários partidos e candidatos, no Brasil e no exterior. No exterior, recebe, naturalmente, em contas no exterior.
O que fez a Lava Jato?
Oportunisticamente, tenta confundir a opinião publica, misturando os valores que Santana recebe no exterior, por campanhas feitas em El Salvador, dentre outros países, com fatos relacionados aos escândalos da Petrobrás e da campanha presidencial de 2014.
Não há nenhuma prova, ou indício consistente que João Santana recebeu, no exterior ou aqui, recursos de origem ilícita. Os procuradores, em especial Carlos Fernando, forçou essa narrativa, apesar de um dos delegados presentes, o dr.Paz, tentar moderar a questão, falando em suspeitas.
João Santana pode não ter declarado alguma ou outra conta. É um caso aí da Receita Federal, sem nenhuma correlação com a Lava Jato.
O próprio Dr.Paz admite que João Santana recebeu, legalmente, declaradamente, mais de R$ 150 milhões de partidos políticos para fazer suas campanhas, de 2005 a 2014. Ele mesmo estranha: qual a razão para receber recursos, que representariam menos de 10% desses valores, no exterior? A explicação, diz o delegado, é que seriam de origem ilícita.
Aí entra a tentativa de forjar uma narrativa falaciosa, e contará, naturalmente, com ajuda da mídia para tal.
A força-tarefa da Lava Jato, infelizmente comprometida com uma agenda e um objetivo políticos, omite que João Santana trabalhou para inúmeras campanhas eleitorais em outros países, e que estes valores recebidos em contas no exterior evidentemente se relacionam com esses serviços, e não com nenhuma campanha eleitoral brasileira.
Dr.Paula, outro delegado presente, admitiu que a força-tarefa ponderou a melhor data para deflagrar essa operação. Ora, não podia vir em momento melhor, em que a Lava Jato se encontrava abafada pelos escândalos envolvendo os lobistas de FHC, a Globo, o triplex dos Marinho e a Mossack Fonseca.
A operação tinha que vir com uma nova bomba sensacionalista.
Carlos Fernando falou ainda, na coletiva, sobre a enorme cooperação jurídica que vem recebendo das autoridades americanas.
Claro, os americanos tem todo o interesse em desestabilizar o Brasil, com vistas a derrubar um governo nacionalista, em prol de forças interessadas em fazer o jogo geopolítico dos Estados Unidos.
Pergunte se as autoridades americanas colaboraram com o Brasil quando se descobriu que os serviços secretos daquele país espionaram a presidenta da república e a Petrobrás?
Aí não vem ao caso.
É incrível ainda o cerco devastador que fazem à Odebrecht, a empresa brasileira com maior projeção internacional, e que concorria com grandes empresas americanas e europeias em países da África, América Central e até mesmo nos EUA.
Quanto a João Santana, é impressionante a violência de Sergio Moro e força-tarefa. O publicitário havia já se oferecido a esclarecer todos os pontos junto ao juiz.
Não adianta.
Sergio Moro quer oferecer o espetáculo da prisão de João Santana. É um objetivo político: oferecer a manchete aos jornalões: Lava Jato prende marketeiro da Dilma.
A Lava Jato é o principal fator de instabilidade hoje, mas ela não nasce do nada. Ela tem muita lógica. Em seu livro Horizonte do Desejo: Instabilidade, Fracasso Coletivo e Inércia Social, lançado em 2006, Wanderley Guilherme dos Santos já sinalizava: “O Brasil se revela, de fato, lá vão mais de 70 anos, como uma sociedade extraordinariamente instável, e arrisco a aposta de que assim continuará por algumas décadas, pois os indicadores da instabilidade pregressa não desapareceram totalmente, enquanto outros foram criados.”
Exatamente, professor! Outros fatores de instabilidade foram criados: a partidarização de órgãos de repressão, por exemplo. Não é difícil atribuir isso ao processo político: um partido se estende no poder por mais tempo do que outras forças políticas poderiam admitir, então se iniciam as conspirações para fazer as coisas voltarem ao “normal”, ou seja, para que o “status quo” permaneça o mesmo.
Daí temos a velha e genial máxima de Lampedusa em ação. O país vive momentos de intensa crise política, com as forças de repressão agindo com virulência enorme sobre todas as instituições e empresas que contribuíram, de alguma forma, para a vitória eleitoral de um partido trabalhista. A corrupção, como em todos os momentos de crise política, se torna o principal assunto nacional. Inventa-se uma grande “mudança”, uma narrativa de transformação, para que tudo permaneça o mesmo.
Entretanto, continuo otimista. O Brasil é uma grande cobaia para o analista que mantiver o sangue frio – o que talvez seja o mais difícil.
Até mesmo as conspirações judiciais nos fornecem um campo rico para estudar a questão penal. Em Vigiar e Punir, Foucault fala da “Ostentação dos Suplícios”, suplícios que hoje se converteram nesses espetáculos midiáticos, onde o sujeito é condenado muito antes de ter a chance de se defender. Afinal, que suplício maior hoje, no mundo profundamente midiatizado que vivemos, em ser apresentado para dezenas de milhões de espectadores, no meio de uma narrativa política já martelada há anos na cabeça do povo, como um bandidão algemado pelo “japonês da federal”.
O fato do tal “japonês” ser um agente condenado por corrupção dá apenas um toque irônico a isso tudo.
O mesmo pensador nos ajuda a explicar a origem das conspirações judiciais. Elas também são naturais. Elas integram esse poder fugidio, estranho, mas que é o poder mais concreto e mais terrível de todos, que se revela principalmente na pulsão para punir, para controlar o comportamento de todos os membros do corpo social, e difundir medo e terror entre aqueles poderiam se insurgir contra o status quo.
É um poder – e aí vemos a solução para nossa angústia, de ter que lidar com conspirações e ao mesmo tempo não sermos adeptos de teorias de conspiração – que se imiscui em todas as instituições, que busca forças inclusive junto aqueles que ele escraviza e submete, como é o caso do povo e da classe média. Escravizados, oprimidos, e mesmo assim batendo palmas para conspirações judiciais que visam apenas aumentar o nível de opressão contra os mesmos que aplaudem. Afinal, se não houver aumento de impostos para os mais ricos, para os banqueiros, quem pagará é a classe média e os pobres, não?
Foucault analisa como o poder punitivo evolui, não em quantidade, mas em qualidade. Se na Idade Média, ele visa o corpo, ao qual aplicará os mais bárbaros suplícios, na idade moderna ele centrará fogo na “alma” dos indivíduos. E hoje, no Brasil, vemos o poder punitivo indo mais além: ele não se satisfaz apenas em punir o corpo e alma. Ele quer também punir as ideias – este é o sentido que a Lava Jato assume hoje, ao se tornar uma operação cada vez mais política.
A campanha para destruir o partido dos trabalhadores, uma campanha oficial e assumida de forças incrustadas dentro dos aparelhos judiciais, representa o caminho natural de um poder que ainda não encontrou limites. Quer destruir também as ideias.
É por isso que as campanhas judiciais tem efeito psicológico tão profundo junto à militância de esquerda. É como se o aparelho repressor, usando a mídia como instrumento, aplicasse um castigo coletivo.
O esforço para quebrar empresas gigantescas, que empregam centenas de milhares de pessoas e, mais ainda, são pilares de setores inteiros, que por sua vez empregam milhões, também constituem um castigo deliberado, planejado, pelos novos carrascos. Aí não contra a militância, e sim contra toda a população, punida porque acreditou num projeto de soberania e reforma social que não é o mesmo dos barões da mídia, representantes dessas forças obscuras que, ao longo dos últimos 100 anos, patrocinaram golpes, privatizações e emendas de reeleição.
Alguns de seus intérpretes na mídia sequer escondem o objetivo: é preciso impor uma “lição” ao Brasil, ou seja, é preciso punir o povo e a própria classe média, que não tem grandes propriedades e contas no exterior, para se proteger durante este processo de “limpeza étnica”, no qual só restarão as empresas, partidos e indivíduos cujas imagens foram blindados pela mídia.
Claro, alguma lição será aprendida. Empresários ficarão atemorizados. A corrupção diminuirá. Mas ao custo de redução brutal da própria atividade econômica.
Quando os efeitos da campanha se diluírem com o tempo, tudo voltará ao normal, inclusive a corrupção. Não foi assim na Itália pós-Mãos Limpas? Destruição de partidos, comoção e trauma nacional, e, por fim, o retorno em grande estilo da corrupção, agora não sob a influência de partidos políticos cristãos-progressistas ou socialistas, mas sob o controle estrito de um autocrata proprietário dos meios de comunicação do país.
Enfim, para enfrentar os solavancos da crise política brasileira, as violências da Lava Jato e, sobretudo, as suas insidiosas armadilhas intelectuais, é preciso força, coragem, virtude.
Não podemos ser pessimistas, fracos ou descrentes.
A história das lutas sociais no Brasil é feita de muito sofrimento e derrotas, mas, ao final, a liberdade sempre avança.
O povo vem ampliando direitos e se tornando mais forte.
É certo que talvez nunca estivemos diante de um desafio tão complexo, nunca tivemos adversários tão sofisticados.
Por outro lado, a nossa juventude nunca esteve tão preparada para enfrentar essa guerra. É mais criativa, mais corajosa e mais bem alimentada que a geração anterior.
Precisará agora ser mais inteligente, porque terá à sua frente o pior inimigo imaginável: a ideologia da reação, as armadilhas intelectuais da mídia, a violência do Estado – violência seja na forma de cacetadas de polícia, seja de uma maneira ainda mais perigosa, a truculência penal, prendendo sem provas e patrocinando conspirações.
A resistência cresce na adversidade.
A resistência só existe na adversidade.
Como dizia um filósofo-poeta da Antiguidade: “a guerra é mãe e rainha de todas as coisas; alguns transforma em deuses, outros, em homens; de alguns faz escravos, de outros, homens livres.”
Não sei se venceremos esta guerra, mas espero que, ao menos, ela produza alguns homens – e mulheres – livres.
(Ilustração da capa: Goya).