A política de extermínio da Ancine contra distribuidoras de arte

Reproduzo abaixo depoimento de Priscila Miranda, diretora de uma pequena mas ultracombativa distribuidora de filmes de arte, estarrecida com a violência da Agência Nacional de Cinema (Ancine).

A Ancine aumentou, sem discutir com ninguém (violência dupla, portanto), o imposto cobrado às distribuidoras para lançar um filme em salas de cinema (o chamado Condecine), de R$ 1.458,25 para R$ 7.291,25!

Um aumento de 500%, de um momento para outro!

O pior não é isso. Antes, havia diferenciação para filmes menores e filmes maiores. Agora não. Mesmo um filme de arte, lançado em poucas salas, terá que pagar o mesmo preço que Os Vingadores, lançado em 700 salas.

E não há, nunca houve aliás, nenhum tratamento diferenciado para pequenas distribuidoras e grandes distribuidoras.

Pequenas, como a da Priscila, que distribui filmes franceses, portugueses, coreanos, tem de pagar as mesmas taxas que grandes distribuidoras estrangeiras que tem filiais aqui no país.

É pura estupidez e brutalidade, porque a Ancine não vai conseguir ganho de arrecadação nenhum com as pequenas.

Vai apenas destruí-las!

Abaixo, o depoimento da Priscila:

***

“Em 15 de outubro do ano passado, eu e outros colegas distribuidores estávamos participando de um mercado lá fora, e nos deparamos, no diário oficial, com o anuncio do aumento de condecine, imposto cobrado por filme lançado a cada janela (janela é um jargão das distribuidoras, usado para designar a plataforma de lançamento: sala de cinema, tv, internet, etc).

Eu e os colegas distribuidores, todos de filmes independentes e de arte (Mares e Imovision) ficamos espantados com o tamanho do valor, que foi de 1458,25 reais para 7.291,25 reais.

Confesso que a princípio não acreditei, pensei que, como antes, o que determinaria seria o número de cópias, de acordo com a proporção do lançamento, ou seja, um imposto de 1458,25 reais ou 3500 reais aproximadamente. Isso, digo, para janela de cinema, que é a janela mais frágil e mais custosa para os lançamentos de arte e contraditoriamente, é também a principal para esse tipo de filme, que tem por vocação ser visto na tela grande.

Em novembro, lancei o filme As mil e uma noites de Miguel Gomes, reconhecido e premiado mundialmente pela excelência artística. O filme foi lançado em pouco mais de 10 salas e paguei um condecine de 1458,25 reais.

Ainda estava tranquila.

Porém, hoje fui retirar o condecine de um futuro lançamento, um filme coreano (muito divertido, por sinal) que, com sorte, estreará em mais de 10 salas. E, para minha surpresa, terei que pagar um condecine de 7.291,25 reais!

Segundo a Ancine, se o filme for lançado em até 6 salas, pagará R$ 2.130. Antes era R$ 900. Só que isso é forçar o cinema independente a ser sempre minúsculo. Um lançamento pequeno, mas digno, deve acontecer em 10 salas ou pouco mais.

Eu, distribuidora independente, pagarei pelo lançamento de uma obra de arte, que estreará em 10 salas o mesmo valor de imposto que a Disney e as majors por seus lançamentos em mais de 1000 salas, que arrecadarão milhões?

Será esse o fim da diversidade do cinema nas telas de nossos cinemas? Adeus filmes latinos, asiáticos, europeus.

Esse valor inviabiliza os lançamentos, até mesmo dos filmes brasileiros que antes custavam 600 reais e agora passou a ser R$ 1.458,25 reais.

Exemplificando a conta, filmes como As Mil e Uma Noites Volume 1 – 3.577 espectadores receita de R$ 49.333, 69 total, distribuidora: 19.733, 476

Dessa receita da distribuidora, leva-se em conta os custos de lançamento do filme com cópias e promoção (nesse caso, do filme As Mil e Uma Noites, usei as redes sociais) e o VPF que também foi aceito e introduzido no mercado brasileiro pela conveniência americana.

O que é o VPF? É o virtual print fee, os studios americanos criaram essa taxa para os distribuidores apoiarem o custo de digitalização das salas, o valor dessa taxa é de $850 dólares e foi um acordo entre distribuidores e salas americanas após ser levado em consideração que os distribuidores economizariam no custo das cópias em digitais.

Aqui no Brasil esse acordo foi incorporado, os distribuidores se organizaram e fizeram muitas considerações, desde valor ser taxado em dólares; e o cambio? Questionou-se ainda o fato desse valor não poder ser aplicado aos lançamentos menores, independentes, brasileiros e de arte. Conseguimos abaixar o valor para 650 dólares, o que ainda é super caro para o lançamento independente. Também conseguimos um valor proporcional ao numero de sessões, pois sabemos que esses filmes estreiam com poucas sessões. Então o valor ficou em 25 dólares por sessão.

Pois bem, no meu custo de lançamento de As Mil e Uma Noites, tenho custo de 10 mil reais de VPF, somado ao condecine pago e outros custos, o que sobra de receita? Sem falar no valor pago ao produtor do filme, para poder distribuir a sua obra aqui.

Muita gente deve estar se perguntando: ah então porque distribuir um filme como esse? Por que distribuir filmes de arte? Será que eu sou burra?

Distribuidores, apesar de serem os integrantes comerciais da cadeia, também trabalham motivados pela paixão, pelo sonho, por ideologia. A recompensa às vezes é fazer com que certas obras sejam descobertas pelo público de seu país, e dessa forma contribuir na formação de olhares diversos, de um pensamento mais plural.

Desvendar culturas diferentes.

Muitos distribuidores independentes surgiram com a maravilha do digital, que democratizou o acesso aos filmes, barateou o custo da operação. Isso significa diversidade, crescimento econômico da atividade e do audiovisual em geral.

No ano passado, abri uma empresa de distribuição na França. É um mercado completamente diferente, com uma atuação pública muito mais independente. o CNC (espécie de Ancine de lá) não aceitou o VPF dos americanos, fez seu preço e o imposto que pago lá por filme lançado em cinema é 240 euros, imposto que é usado para o financiamento da produção audiovisual de lá. As salas de arte foram digitalizadas com parte desse recurso também, e assim o VPF, claro, não é cobrado.

Por fim, quero dizer que estou chocada, sem palavras. Este ano pretendia lançar um maravilhoso e premiado filme sul-africano, para ter o prazer de lançar um filme diferente no mercado.

Mas parece que a Ancine está querendo ver é só o Tio Sam na tela!”

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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