por Paulo Moreira Leite, no Brasil 247
Ao decidir, por 7 votos a 4, que toda pessoa pode ser conduzida à prisão depois de condenada em segunda instância, sem que a sentença tenha transitado em julgado, em minha modesta opinião o Supremo Tribunal Federal fez uma concessão amedrontada às reconhecidas pressões autoritárias que o país enfrenta com a Lava Jato. Na decisão, o Supremo perdeu a oportunidade de lembrar ao país a primazia dos direitos individuais como pedra fundamental das sociedades humanas e afirmar a liberdade como um direito precioso e universal, que só pode ser negado em circunstâncias precisas e especiais.
A mudança, que altera uma jurisprudência firmada pelo próprio STF, é uma derrota do ponto de vista dos direitos humanos e da presunção da inocência como princípio essencial do Estado Democrático de Direito. Representa um retrocesso civilizatório, também. Antes do século XVIII, não custa lembrar, a multidão das grandes cidades da Europa corria às praças públicas para assistir e aplaudir a tortura, ao enforcamento e até ao esquartejamento de condenados — em ambiente de aplauso, fúria e festa.
A mudança, na prática, irá ampliar as taxas de encarceramento num país que já possui a quarta maior população prisional do mundo — falta lugar para pelo menos 200 000 detentos — o que por si só representa um passo irresponsável para a vida em sociedade e a recuperação de apenados. Seu efeito previsível será reforçar o sistema prisional como uma escola de crime e de violência, infecta e corrupta, fornecendo uma quantidade cada vez maior de mão de obra gratuita ao crime organizado.
Isso porque ninguém imagina que num país com a condição econômica-social brasileira será politicamente viável reduzir verbas para saúde, educação e outras prioridades — urgentes e justíssimas — para investir no bem estar e na abertura de oportunidades para quem é apontado por uma parcela influente da sociedade como uma escória sem direitos e sem salvação. Como demonstrou um estudo pioneiro do antropólogo Antonio Flavio Pierucci, na década de 1980 a deformação ideológica de cidadãos da classe média paulistana chegava ao ponto de acreditar que nas imundas penitenciárias do estado servia-se champagne em bandeja.
Com apoio do juiz Sérgio Moro e da força-tarefa do Ministério Público envolvida na Lava Jato, a mudança foi aprovada por um tribunal receoso de ser apontado pelos jornais como cúmplice da corrupção e da impunidade. Ela é a primeira amostra de um processo de ambições mais amplas, que inclui um abaixo assinado favorável a aprovação de leis mais duras contra a corrupção — inclusive aceitação de provas ilícitas — e uma permanente campanha de execração contra advogados. Tudo sob medida para questionar direitos e garantias conquistadas pelos brasileiros no fim de uma ditadura de 21 anos.
A decisão terá consequências óbvias sobre os recursos dos réus da Lava Jato que chegarem ao Supremo, mas sua repercussão vai além de um caso específico. Sinaliza uma tentativa de mudança no eixo da justiça brasileira, que passa do garantismo ao punitivismo, da prioridade aos direitos e garantias individuais a primazia conferida ao Estado para acusar, julgar e punir. Celso Mello, o decano do Supremo, respeitado pela erudição, definiu a decisão como uma “inflexão conservadora.”
O argumento favorável a mudança é conhecido. Num país onde o Judiciário oferece quatro instâncias de recurso para uma decisão definitiva, é impossível dar conta da cláusula constitucional que prevê que a Justiça seja feita com celeridade. A tese até poderia fazer sentido, caso o Brasil fosse um país capaz de assegurar, a cada um de seus cidadãos, desde o colarinho branco que se tornou alvo político até o pobre diabo de pés descalços e estômago vazio, o respeito ao direito de defesa e ao contraditório e não uma nação onde 1 em cada 3 encarcerados cumpre pena em regime provisório, sem uma única condenação sequer.
Basta ter conhecimento, mesmo superficial, do funcionamento da Justiça do país, para reconhecer que os recursos — que até poderiam ser vistos como excessivos em outras situações — servem como contrapeso a uma situação de abuso e ausência de direitos.
Embora seja convenientemente apontada, hoje, como destinada a punir pessoas poderosas e endinheiradas — não custa lembrar aqui mais uma vez que todos têm o sagrado direito a presunção de inocência, inclusive Fernando Henrique Cardoso, mesmo depois das denúncias da jornalista Miriam Dutra — seu destinatário real é outra pessoa.
Num estudo exemplar sobre como se julgam e se condenam brasileiros, publicado pelo jornal Le Monde Diplomatique, o advogado Anderson Lobo da Fonseca mostra que grande parte das sentenças produzidas na Justiça Comum não passa de uma extensão da atividade policial. Embora o levantamento seja dedicado ao estudo do tráfico de drogas, delito de que são acusados 25% dos 600 000 brasileiros mantidos na prisão, é difícil negar que tenha aplicação universal. O professor mostra que a maioria das provas usadas para acusar e condenar é obtida em flagrante — consignado pela polícia. Em nada menos que 74% dos casos, as únicas testemunhas de acusação são os próprios policiais que prenderam os réus. “A palavra final é da Justiça mas dentro dela a palavra da Justiça conta demais”, afirma Lobo da Fonseca. É uma palavra que tem peso em situações ainda mais trágicas, quando se recorda a aceitação absurda de um documento conhecido como auto de resistência, que serve para acobertar execuções em massa de jovens pobres e pretos da periferia de grandes cidades.
Hoje considerado crime hediondo, condição em que se pretende enquadrar a corrupção, tráfico de drogas é punido com penas altíssimas, com obstáculos a penas alternativas e progressão de regime. Em teoria, isso deveria contribuir para dissuadir atos criminosos. O efeito real é nulo. Entre as mulheres, tradicionalmente menos envolvidas em atividades criminosas, o encarceramento por tráfico cresceu 246% em dez anos.
Para quem acredita nas maravilhas do encarceramento e das penas duras, os Estados Unidos constituem uma decepção exemplar.
Com 2,2 milhões de habitantes, sua população carcerária é a maior do mundo. Os EUA também são o único país desenvolvido que mantém a pena de morte em seu arsenal de combate a delitos criminosos. Basta examinar a estatística de homicídios dolosos — punidos com pena capital e penas mais duras — para reconhecer uma situação dramática. A taxa norte-americana para assassinatos intencionais é três vezes maior que a do Canadá e da França. Quatro vezes maior que maior que a de Portugal. Cinco vezes maior que a da Itália e Grécia. Seis vezes maior do que Alemanha. Tudo isso apesar da mitologia criada em torno do prefeito de Nova York, Rudolf Giulianni, campeão de encarceramento e penas duras, que tiveram muito maior utilidade para alimentar sua popularidade junto ao eleitorado branco e conservador do que para resolver dificuldades reais da criminalidade na maior cidade dos Estados Unidos.
Analisando a década de 1990, último período em que ocorreu uma queda significativa e duradoura na criminalidade naquele país, é possível apontar vários fatores que contribuíram para a mudança, desde a influência crescente de lideranças religiosas, até a legalização do aborto, que impediu que milhares de adolescentes que desejavam interromper uma gravidez indesejada tivessem filhos contra a vontade e se tornassem capazes de organizar as próprias vidas. Para o professor Richard Freeman, titular de Harvard e de um currículo acadêmico invejável, onde conecta a justiça, o crime e a vida social, o ponto essencial se encontra na criação de oportunidades reais de uma vida melhor para os de baixo. Freeman recorda que “a boa notícia para os cidadãos em dificuldade é que o boom econômico da década de 1990 trouxe uma melhoria visível em seu bem-estar e no ambiente social. Com desemprego a 4%-5% por um longo período, os ganhos dos trabalhadores mal remunerados se elevaram; jovens das periferias conseguiram empregos; a taxa de crime caiu; o número de mães adolescentes caiu; a pobreza caiu.” (Ler artigo “The US “Underclass” in a Booming Economy, de abril de 2000).