por Rogerio Dultra dos Santos e Sérgio Graziano, no Democracia e Conjuntura
O sistema repressivo brasileiro – em especial as instituições encarregadas da persecução penal – nunca foi formalista. O verniz jurídico das decisões criminais sempre serviu de escudo para uma definição idiossincrática da criminalidade. Isto significa dizer que a história institucional do sistema punitivo brasileiro é a história da configuração de inimigos públicos que variam de acordo com a demanda política dominante. Sempre se prendeu antes de se investigar, sempre se condenou antes de se comprovar a culpa, sempre se puniu olhando o nome.
O direito penal, em outras palavras, operou na nossa história usualmente pela lógica política e não pela lógica do direito. Já foram os “capoeiras” e sambistas, já foi a vadiagem, supostamente “inadaptada” à disciplina fabril. Já foram os comunistas e os subversivos. Depois os mensaleiros, os “black blocs”, ontem os petistas, hoje o Lula, amanhã, quem sabe?
O inimigo do direito penal é quem o sistema repressivo quiser que seja. Ser inimigo público pressupõe, inclusive, a responsabilidade pelo crime independentemente do crime ter acontecido. É o que se chama “periculosidade”. O sujeito é perigoso em essência e em potência, independentemente, e mesmo antes, de ter feito qualquer coisa. Não pode ser “civilizado”, resgatado, educado ou modificado. É irrecuperável no seu atavismo, no seu desenvolvimento atrasado enquanto espécie. Mas esta é só a fundamentação pública e pretensamente “científica” do arbítrio.
E, por ela, pode ser qualquer um o atingido pelo sistema. Quem decide não são os códigos, na sua lógica do legal e do ilegal. São as instituições repressivas, como a polícia – respaldada hoje cegamente pelo Ministério Público e pelo Poder Juduciário –, na lógica política do amigo/inimigo.
Compreender a decisão de ontem do STF no julgamento do Habeas Corpus nº 126.292 é um movimento intelectual e político de envergadura. O STF negou provimento ao recurso da defesa, que antecipou a pena de reclusão para indivíduos que não tiveram sua condenação transitada em julgado. Tal veredito implica em aceitar que o Supremo rasgue o princípio da presunção de inocência e, por consequência, a própria Constituição, numa decisão longe de ser jurídica. Foi uma deliberação fundada no clamor punitivo da opinião, seduzida pelos meios de comunicação. Foi, de cabo a rabo, um julgamento político. O assim chamado “ativismo judicial” ultrapassou ontem todos os limites.
Em maioria, o STF fundamentou a sua decisão de “inovar” na Constituição e abraçar o “princípio” da presunção de culpa pela “vontade popular” de maiores penas e mais encarceramento. A decisão foi claramente para agradar a maioria, foi para fazer média com eleitores (não se sabe de quem), foi para acalmar a turba, não importando a que título esta “maioria popular” foi formada.
Mas este é o Supremo Tribunal Federal que a Constituição nos brindou? Em algum momento a Constituição diz que a comoção popular é motor do processo judicial? A decisão judicial criminal deve medir a opinião pública antes de decidir? Esta opinião pública, por mais sincera e intelectualizada, deve ser ouvida? Claro que não. Seria este um novo interpretar do consagrado “todo poder emana do povo”?
Claro que não.
Um Processo Penal, orientado por uma constituição democrática, deve preservar os direitos fundamentais ali consagrados e jamais permitir que os interesses políticos da turba do momento sejam institucionalizados e, em última análise, justifiquem o funcionamento da justiça.
Veja-se o problema criado pelo STF: a partir de hoje, quando qualquer criança alfabetizada ler na Constituição que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, inciso LVII, da CF) vai ter que entender que isto só será verdadeiro se o STF não disser o contrário em um caso concreto. A pergunta que todo cidadão, que toda criança deverá se fazer a partir de hoje é o que restará de um processo penal, quando a constituição de uma nação é brutalmente vilipendiada pelo seu próprio guardião? Nem o vernáculo, a literalidade da lei, escapará.
Para além da questão estrutural, relativa à consistência e legitimidade do sistema de justiça criminal, a pergunta fundamental é a seguinte: quais interesses concretos serão beneficiados por decisão tão esdrúxula? Ou em outras palavras: será que o STF realmente foi republicano ao “reescrever” a Constituição de forma tão radical? A quem interessa o aumento exponencial de pessoas presas antes de sentenças condenatórias?
Aí é que a porca torce o rabo.
É imperioso esclarecer a relação entre a maximização do crescimento da violência de Estado, por um lado, e a criação do sentimento social de combate à criminalidade através de políticas de segurança pública conservadoras, por outro. Em especial por meio da inscrição da vida dos indivíduos numa sociedade de controle, onde a economia que alimenta o sistema punitivo se nutre em particular de processos de exclusão social e de ampliação artificial da marginalidade criminal.
Não há somente um mercado em expansão calcado na privatização do sistema prisional no país. Há toda uma mercancia em torno do controle penal para além das prisões. Isto porque o funcionamento do sistema de justiça criminal está umbilicalmente ligado ao funcionamento do sistema econômico, em especial, por exemplo, pelos interesses nos lucros advindos da exploração e divulgação da violência.
Assim, a indústria do crime – hoje respaldada pelo STF –, não traz somente dividendos políticos, como a criminalização dos inimigos públicos, mas permite a mais vil das lucratividades: o lucro midiático e empresarial sobre o sofrimento alheio pela privação arbitrária e não fundamentada da liberdade.
O certo é que, devido à decisão do STF mais e melhores empresas irão lucrar com a privatização dos presídios e do sistema de controle da criminalidade. Mais governadores realizarão Parcerias Público-Privadas sem licitação para a construção emergencial de presídios. Mais cidadãos irão ter seus direitos flexibilizados por estímulo de um mercado organizado inclusive para o lobby sedutor das conferências internacionais e dos congressos onde juízes e promotores serão estimulados a condenar com mais rigor, menos pudor e com o apoio irrestrito e interessado dos meios de comunicação de massa.
Enquanto uma parcela do público faz festa com a postura progressista do STF em relação à união homoafetiva – com razão, obviamente –, e em temas como o aborto dos fetos anencefálicos, no momento em que a ordem econômica exige uma decisão estrutural, os Ministros não se constrangem em produzir um retrocesso do tamanho de nossa civilização, como o é a flexibilização do funcionamento repressivo e a consequente incriminação de inocentes “antes de que se possa provar o contrário”.
Hoje qualquer um pode ser considerado culpado previamente a um processo judicial corretamente realizado. O nosso sistema processual deixou de garantir ao cidadão o seu direito de provar sua inocência. O nosso processo penal, a partir de agora, condena antes de julgar, pune antes de condenar e democratiza o arbítrio repressivo de forma despudorada. E alguém certamente lucra com isto.
Os direitos fundamentais, tão defendidos pelo Ex-Professor Luis Roberto Barroso – um dos Ministros que surpreendentemente chancelou esta aberração –, ficaram para a história das derrotas da civilização brasileira.
Cada vez menos garantidos os nossos direitos sucumbem, a cada decisão penal do STF, à posição de instrumentos de legitimação da barbárie. E o STF, cada vez mais, se parece com os algozes dos inocentes perseguidos e asfixiados nos campos de concentração. Todos sob base estritamente legal. Com o aplauso da propaganda e a chancela dos juízes do Reich, todos ciosos de suas funções.