Um desequilíbrio estrutural empareda agora a vida dos filhos das camadas médias no mesmo torniquete de impossibilidades que espreme os jovens nas periferias
por Saul Leblon, na Carta Maior
Nada é mais central na luta política brasileira nesse momento do que posicionar-se em relação ao massacre do qual Lula é o alvo explícito.
Está longe de ser o único, porém.
Enganam-se tragicamente os que pensarem assim.
Lula é uma ponte simbólica — e estratégica.
Sua densidade histórica deriva do último grande ciclo de ascensão de massas no Brasil, iniciado com os levantes operários do ABC paulista, no final dos anos 70, seguido da campanha das Diretas, da Constituinte Cidadã e de quatro vitórias presidenciais progressistas na sétima maior economia do mundo.
Nas quatro letras que formam o seu nome junta-se o denso caudal da esperança na construção de um Brasil socialmente convergente e libertário, a erigir uma democracia social no coração da América Latina, em pleno século 21.
Desnecessário sublinhar a irradiação contagiante que um marco bem sucedido dessa natureza traria à luta pelo desenvolvimento nos quatro cantos do planeta.
Desnecessário reiterar a ferocidade dos interesses contrariados por essa possibilidade.
A singularidade da trajetória do ex-metalúrgico, o alcance de sua palavra, a credibilidade que carrega condensam, assim, um potencial transformador inestimável, e ao mesmo tempo, temido.
No momento em que a mais longa crise mundial do capitalismo desde 1929 impõe a repactuação das bases do desenvolvimento, a exigir um novo degrau de democratização da economia e da sociedade, é preciso lixiviar a possibilidade de que esse potencial, (na verdade nunca inteiramente exercido), estabeleça um novo estirão progressista na história brasileira.
Tudo isso que Lula traz grudado na pele, a irradiar perigosa mistura de precedente, otimismo e encorajamento social é o alvo efetivo da mira conservadora que o picota diuturnamente.
Vive-se uma contagem regressiva golpista.
O que se espera agora é que um personagem do rodapé da história se apresente ao desfrute conservador, de avental e machado na mão, a fremir nas ventas a disposição de desfechar o gesto final.
São esses burros de carga das encomendas superiores que cuidam também das manchetes sulfurosas nesse momento.
Suspeitos canteiros de acelga, canoas e pedalinhos de cisne em pesqueiro frequentado por Lula, em Atibaia, compõem o cerne de sua passagem pela história.
Que um jornalista como Clóvis Rossi, da Folha, tenha dado ao ‘complexo de Atibaia’ o epíteto de ‘um luxo’, evidencia a cooptação feroz dos espíritos pelo cuore conservador.
Com suas contradições de carne e osso, Lula é a costela de pirarucu atravessada na garganta conservadora brasileira. Trata-se da ponte mais extensa a conectar o rico e diversificado campo progressista às camadas mais amplas e sofridas da população.
Não é preciso endossar cada passo e ato do ciclo que elevou em 70% o poder de compra do salário mínimo e retirou 40 milhões de brasileiros da miséria para entender o porquê da convergência que agora avança inescrupulosamente para desloca-lo do imaginário social para um prontuário policial.
Consumada a operação, a restauração neoliberal está contratada para 2018, não importa quem seja o seu portador. Até um material político da qualidade de um José Serra torna-se competitivo nessas condições.
Exatamente por estar em disputa uma nova hegemonia e não uma simples dança das cadeiras dentro de uma mesma época histórica, a defesa daquilo que Lula representa não pode mais ser apenas retrospectiva.
É preciso dizer o que o seu potencial político tem a propor ao passo seguinte do país.
Dize-lo, sobretudo, à base social que o sustenta.
Mas não só.
Entre outras lacunas políticas na trajetória recente da esquerda brasileira, há uma que cobra cada vez mais alto uma resposta desassombrada, que de certa forma condicionará a eficácia das demais.
O que o campo progressista tem a dizer ao segmento mais numeroso da classe média, hoje, como sempre, o principal substrato do preconceito, da desinformação e da incerteza, manipulados para servir de base à agenda do golpismo neoliberal?
O sucesso ou o fracasso dessa resposta condicionará em grande medida o desfecho do braço de ferro que, inicialmente, o conservadorismo tentou resolver com o impeachment; e agora admite decidir nas urnas de 2018, desde que consiga trancar Lula fora da cédula.
Não existe ‘uma classe média única’.
Sob esse guarda-chuva sociológico reúne-se uma vasta gama de renda intermediária, da qual faz parte também uma elite integralmente identificada com os interesses dominantes da sociedade.
Não é desse pedaço do Brasil que se trata aqui.
Mas dos anseios de um amplo contingente de assalariados, profissionais liberais e funcionários públicos, cevados com doses maciças de medo e incerteza pela cooptação conservadora.
Inclui-se aí um pedaço significativo da juventude que vivencia na rua e no bolso o estreitamento do espaço de ascensão que seus pais desfrutaram –ou imaginaram desfrutar um dia, mas que o capitalismo rentista não mais propiciará.
Não é um gargalo criado pelo ‘lulopetismo’, como diz a propaganda das falanges dentro e fora da mídia.
É um estreitamento estrutural dos canais de mobilidade no capitalismo globalizado.
Nele, o emprego estável, de qualidade e bem remunerado sucumbiu, desde a base industrial minguante, até o setor de serviços expandido, configurando-se um novo normal de vagas abastardadas pela provisoriedade, a supressão de direitos e o achatamento real dos salários.
Um dado resume todos os demais: a modalidade atual de emprego que mais cresce na Inglaterra sob o domínio conservador é a que reduz o trabalhador a um insumo igual a qualquer matéria-prima. Só requisitada do ‘depósito’ (o mercado) quando a demanda assim o exige, ela receberá apenas e somente o equivalente ao tempo durante o qual seu cérebro e músculos forem diretamente consumidos pela engrenagem produtiva.
Isso não impede, na verdade guarda estreita funcionalidade com o fastígio da riqueza na ponta financeira do sistema.
Quase 2,5 milhões de crianças vivendo na antessala da pobreza absoluta na terceira maior economia europeia, compõe a síntese desse paradoxo semeado por Pinochet e Thatcher desde os anos 70/80, cuja essência consiste em libertar o capitalismo de seus contrapesos regulatórios de natureza econômica, política e social.
Deu-se o que se traduz nesse momento em um desconcertante avanço da desigualdade em escala global.
Um de seus vórtices foi exaustivamente documentado por Thomas Piketty: a riqueza financeira não apenas cresce sempre à frente, mas em contraposição à expansão real da renda per capita.
Em sua cristalização mais recente, a gosma inutilizou o sonho sistêmico do way of life na qual a classe média saboreou waffles com creme de mobilidade social, do pós-guerra até meados dos anos 70.
O protocolo da meritocracia perdeu sentido.
Nenhum critério uniforme de avaliação é justo quando a igualdade de oportunidades inexiste.
Um desequilíbrio estrutural empareda agora a vida dos filhos das camadas de renda média no mesmo torniquete de impossibilidades que espreme a existência dos jovens nas periferias conflagradas.
Questões básicas como o atendimento à saúde, a qualidade do ensino, a segurança e a moradia, o emprego, o custo de criar um filho sem sistemas públicos eficientes, o amparo à velhice dos pais mas também o anseio por dignidade, reconhecimento e convivência pública, assumem o peso crescente de uma centralidade política carente de respostas.
Nenhum agrupamento progressista logrou de fato traduzir esse mal-estar social do capitalismo financeiro em um projeto capaz de transformar os desfavorecidos de toda a sociedade em um novo sujeito histórico.
A extrema direita navega com razoável sucesso e competência nesse vácuo, como mostra os Le Pen, na França, o Tea Party, nos EUA, e uma ampla gama de fascistas em ascensão nos países nórdicos e do leste europeu.
A radicalização conservadora da classe média brasileira –localmente temperada pelo fermento golpista— reflete em certa medida esse mesmo caldo de cultura.
O fantasma da espiral descendente é o seu leme.
Escola pública de qualidade, transporte barato e eficiente, moradias sociais, saúde pública de reconhecida competência formaram no pós-guerra europeu um substrato de estabilidade, capaz de afastar assalariados e classe média das tentações totalitárias que a incerteza atual enseja.
O ganho de produtividade subtraído aos salários em nome da eficiência industrial era compensado pela rede de proteção coletiva, ancorada em uma tributação mais justa de todo espectro da riqueza.
A inexistência desse horizonte empurra o subconsciente da classe média a uma disjuntiva: aderir ao apartheid explícito ou regredir.
Sem falar a essa encruzilhada dos setores de renda média, será cada vez mais difícil a uma sigla progressista romper o cerco ideológico que a impede de ser ouvida pelo conjunto da sociedade.
O crescimento contagiante da candidatura do social democrata Bernie Sanders, nos EUA, que disputa com Hillary Clinton a indicação dos democratas à corrida presidencial, traz um sopro de esperança a essa equação.
O fenômeno Sanders consiste em falar aos ‘desiguais’ com uma mesma proposta: uma sociedade de serviços públicos dignos e eficientes para todos.
Os mais pobres, naturalmente.
Cerca de 47 milhões de pessoas encontram-se nessa categoria nos EUA — uma em cada cinco crianças, no país mais rico da terra.
Mas não só a eles.
A classe média espremida pela hipoteca, o desemprego, a descrença no futuro, o desamparo diante da velhice, a humilhação familiar e individual passou também a prestar atenção as suas palavras.
Sobretudo, os seus filhos.
Nas prévias dos democratas em Iowa, Sanders teve nada menos que 84% dos votos na faixa dos eleitores entre 17 e 29 anos.
Um ponto fora da curva?
Tudo indica que não.
A juventude ‘apática’, ‘apolítica’, ‘desligada dos partidos’, ‘indiferente aos velhos paradigmas de direita e esquerda’, como diz a sociologia conveniente de Marina Silva & FHC, que se atirou agora de corpo e alma na campanha de Sanders, é irmã histórica daquela que no ano passado, com igual entusiasmo, deu o comando do trabalhismo britânico a um velho socialista, Jeremy Corbyn
Todo o planeta pulsa a saturação da mais lenta, errática e incerta recuperação de todas as crises vividas pelo capitalismo do século XX até agora.
Desafios econômicos, sociais, ambientais e sanitários – a exemplo do aquecimento global e do zika vírus agora no Brasil— cobrarão cada vez mais respostas cuja eficácia técnica terá que repousar na repactuação política das formas de viver e de produzir, e contar com indispensável mobilização da sociedade.
Nada mais distante disso do que o fermento de preconceito, ódio de classe e desmonte do aparato público com o qual a restauração neoliberal pretende pavimentar a sua volta ao poder no Brasil.
O medo egoísta da classe média é o seu veículo.
Quem acha que não há nada a fazer sob o domínio do capitalismo desregulado do século 21, e pretende insistir no celofane da indiferenciação programática, abraçando reformas que o mercado exige, deveria atentar para o discurso simples e ao mesmo tempo empolgante de um sexagenário social-democrata norte-americano.
Bernie Sanders — tema do Especial de carnaval de Carta Maior — tem algo a dizer à encruzilhada do PT, de Lula; e à do Brasil, de Dilma.
Boa Leitura