por Jaime Sautchuk, no Vermelho
No período da ditadura pós-64, a Polícia Federal era um instrumento da repressão, e pronto. No entanto, a Constituinte 1988 deu a esse órgão uma nova função, definida, em seu artigo 144, como órgão de segurança pública destinado a “apurar infrações penais (..) cuja prática (…) exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei.”
Em verdade, essa polícia foi criada em 1944, com o nome de Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), e tinha sua ação centrada no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Com o surgimento de Brasília, ela também foi transferida e teve suas funções ampliadas, ganhando uma jurisdição mais nacional, mas sempre subordinada ao Ministério da Justiça, como é até hoje.
Meses após o golpe de estado, em 64, a Lei 4.483/64 redefiniu as finalidades do DFSP, mas foi a Constituição de 1967 que promoveu mudanças mais sentidas, inclusive no nome, que passou a ser Departamento de Polícia Federal. Como se sabe, aquela Carta visava dar uma aparência de legalidade ao regime militar.
Na prática, entretanto, o novo DPF passou a ter múltiplas funções, com destaque ao seu papel de polícia política, em defesa da “ordem pública e social”, agindo na informação e na repressão, com ou sem amparo legal. O comando era difuso e arbitrário.
Atuava de modo coordenado e até subordinado aos órgãos de repressão criados nas estruturas (formais e informais) das Forças Armadas e ao Serviço Nacional de Informações (SNI). Tinha agentes infiltrados e informantes em todos os setores da sociedade e era responsável, também, pela censura prévia aos meios de comunicação.
Com o fim do último governo militar, em 1985, e a abertura política, a Polícia Federal caiu em desgraça e, enfraquecida, passou a atuar mais no combate ao tráfico de drogas e vigilância de fronteiras. Desde 1977, sua sede nacional, em Brasília, funciona em um edifício no Setor de Autarquias Sul, área bem central da cidade.
O prédio é todo revestido de vidro escuro e, por isso, é tratado pela própria PF como “Máscara Negra”. Durante a ditadura, porém, ele era chamado de “Tonton Macoute”, numa referência à truculenta milícia do ditador Papa Doc, do Haiti, cujos agentes trajavam roupas pretas e usavam óculos escuros, invariavelmente. Assustadores, como era o prédio.
Aliás, como responsável pela sucursal do jornal Opinião e, depois, do também semanário Movimento, eu era forçado a visitar o tal edifício duas vezes por semana. Às terças-feiras, levava o material pra submeter à tesoura; e ia dois dias depois buscar o que havia restado. Com sorte, sobrava um terço do que havia sido produzido.
O material era entregue e devolvido, sob protocolo, num balcão que havia no saguão de entrada. Certa feita, porém, era feriado no dia de buscar o material e só havia um guarda no local, a quem eu recorri. Ele interfonou a um “doutor” e veio a ordem pra que eu fosse a uma sala, ali no térreo mesmo.
Eu andei até lá, meio receoso. Ao abrir a porta, baita surpresa: o “doutor” censor que me recebia era o Bolinha, apelido do chefe de reportagem da sucursal do jornal O Globo em Brasília. Sujeito alegre, brincalhão, muito querido pela equipe. Infiltrado no jornal, como jornalista, portanto, ele tinha sido meu chefe, tempos antes.
Sorrindo do meu constrangimento, ele me entregou o material censurado e eu fui embora, zonzo.
Pois bem, mas o fato é que a Constituição de 88 redefiniu as funções desse órgão policial, adequando-as ao regime democrático. Pra isso, foi instituído um novo regime de carreira e reestruturada a Academia Nacional de Polícia, destinada à formação de seus quadros.
O DPF seria um órgão autônomo em suas ações, independente de governos, desde que dentro da lei. Até chegar a isso, contudo, haveria um longo caminho a percorrer, a começar pela garantia de recursos financeiros pra poder funcionar. A peneira de casos a investigar varia também de acordo a grana que tiver.
Assim, passou o primeiro governo civil, de José Sarney, veio Fernando Collor e daí o mandato tampão de Itamar Franco. Dinheiro pouco e muita desconfiança fizeram desse período o mais difícil vivido pela Polícia Federal nos tempos pós-ditadura, como relembram policiais mais antigos. Mas, ainda teria muita estrada por diante.
E aí entram as inevitáveis comparações entre os governos seguintes, de FHC, Lula e Dilma. Dados da própria PF demonstram que houve acentuado salto quantitativo e qualitativo entre essas duas fases.
São melhorias que vão desde o padrão salarial até mobilidade física, equipamentos, recursos financeiros e número de ações. Sem falar na absoluta autonomia, hoje em vigor.
Aposentado há dois anos, o ex-presidente da Federação Nacional dos Delegados da Polícia Federal, Armando Coelho Neto distribuiu na internet, semana passada, um VT explosivo. “O que existe é uma declaração de guerra ao PT, não à corrupção”, é uma de suas afirmações. Segundo ele, o princípio da “repressão uniforme” foi pro espaço.
Afinal, se a mídia vai filmar e fotografar uma ação que seria sigilosa é porque alguém avisou. Ocorrer um vazamento ou outro, digamos, seria até aceitável. Mas, quando é do Lava Jato ou envolvendo lideranças como Lula é um mundo de câmeras, muitas vezes ao vivo. Já em outros processos, só ficamos sabendo depois, laconicamente. E a lentidão é grande.
Como virou rotina, pois, esse procedimento demonstra ser bem mais grave. Há algum conluio mais amplo, fica evidente. E o temor de todos é que voltemos a ter uma Polícia Federal facciosa, partidária, como na época da ditadura.
Jaime Sautchuk trabalhou nos principais órgãos da imprensa, Estado de SP, Globo, Folha de S.Paulo e Veja. E na imprensa de resistência, Opinião e Movimento. Atuou na BBC de Londres, dirigiu duas emissoras da RBS.