por Tadeu Porto, colunista do Cafezinho
“Opa, deixa comigo, é a minha vez” disseram milhões de pessoas nesse carnaval, quando a roleta de pegar uma cervejinha apontou a meta.
Chegando no freezer ou geladeira, alguém, com muita sabedoria e sede, escolhe a cerveja mais gelada e a pega com o maior cuidado do mundo, segurando com muita ponderação alguma parte entre a tampa e o gargalo com o menor contato de pele possível.
Antes mesmo do escolhido fazer a opção, uma voz perdida qualquer já havia se manifestado, como o mestre dos magos da caverna do dragão, para lembrar de não pegar no meio da garrafa (é tipo um pecado capital ou um jogo mortal) pois se acaso isso ocorrer e o suco de cevada irá congelar.
E não é mentira (até mesmo porque o mestre dos magos quase nunca erra). Se pegar no meio de uma garrafa “vestida de noiva” a probabilidade dela passar do estado liquido para o sólido é gigante!
Nos nos meus bons tempos de cursinho pré vestibular um professor de química utilizou esse fato tão presente no nossos churrascos para explicar que a cerveja é, na realidade, uma solução supersaturada que está num equilíbrio metafísico (ou metaestável, não lembro direito) e, portanto, qualquer variação brusca de temperatura ou pressão – as variáveis dinâmicas da boa e velha aproximação PV = nRT para esse caso – acarretarão em congelamento, uma vez que o líquido basicamente formado por água já está em temperaturas negativas e só não congelou ainda pelo desarranjo das moléculas.
Bom, fazer analogias com nosso cotidiano é sempre uma tarefa muito complicada, todavia essa mistura mágica de cerveja no carnaval e textos complexos sobre misoginia, racismo e homofobia, que está aparecendo cada vez mais nesses momentos de grande iteração humana – e acho isso ótimo – me permitiu viajar um pouco em uma certa equivalência.
E lá vai: o preconceito, quando não se manifesta, está numa posição de equilíbrio metafísica, ou seja, uma mínima pertubação é suficiente para expor a relação discriminatória que influencia culturas e atitudes.
Umx homossexual pode enfrentar uma fase de tranquilidade na vida, mas basta irritar alguém que muito provavelmente irá receber de volta uma boa dose de hostilidade sobre seu comportamento sexual. Como se ela ou ele estivesse errado em manter relações com quem deseja e precisasse ser lembradx disso toda vez que errasse.
Uma mulher vai estar num trânsito em equilíbrio com os demais motoristas até cometer alguma infração, daí pra frente será lembrada que ela não nasceu para dirigir e sim para pilotar um algum eletrodoméstico que a faça ficar presa em casa sem invadir o mercado de trabalho masculino.
E assim é com negros que “se não cagam na entrada o fazem na saída”; transexuais “com tanta mulher no mundo, coisa tão boa, não entendo como que vira isso” e pobres que estragam qualquer ambiente de paz com sua farofada e má educação. Algo do tipo, errar é coisa de humano-homem-cis-hetero-branco-e-rico o resto tem que se esforçar para não falhar.
Mas dentro de um contexto mais amplo, que envolve oprimidos e opressores numa discussão profunda, um caso me fez refletir um bocado sobre essa situação: o ator Fernando Bustamante, que saiu no carnaval com sua família fantasiada inspirada no clássico da Disney, Alladin, com seu filho negro, Mateus, fantasiado de macaco Apu, e sua a esposa, Cyntia, de Jasmine a princesa.
Uma situação, pra mim, tão metaestável como uma cerveja estupidamente gelada.
Comparar um negro com um macaco é muito errado. Tentar empurrar a lógica de “princesa de conto de fadas” para mulheres, também não é certo. Todavia, dentro de uma relação familiar, como fazer para julgar algo que, muito provavelmente, foi feito com amor e boas intenções?
Claro, alguém pode conversar com o Fernando e dizer que com essa atitude, ele vai machucar milhares de negros e negras, que se sentem ofendidos – com razão – por serem comparados a macacos ou macacas, tentando referenciá-los como um mamífero inferior ou não evoluído. Ou mulheres que não querem ser como princesas Disney, prontas a abdicar de tudo pelo seu príncipe encantado.
Mas quem vai lidar com as dores, incertezas, rebeldias e tristezas cotidianas da família é a própria família. Assim, me parece um pouco exagerado, apesar da delicadeza dos temas, textos que agridem ou condenem Cyntia, Fernando e Mateus sem conhecer o contexto passado deles ou se preocupar com as mazelas que as próprias agressões podem deixar no futuro.
Assim, ao nos depararmos com um caso de preconceito em potencial é necessário ter um cuidado a mais com as palavras ou tratamentos que achamos ser necessários para tal situação.
Claro, a intolerância está presente e é necessário combatê-la, seja fazendo o contraponto quando a atitude é escancarada ou buscando uma ética em que a mesma não exista. Mas atacar sem sabedoria pode não só ser um desperdício imenso de energia, como pode acarretar em piores situações que tragam a expansão da violência e não sua atenuação.
Se eu pudesse conversar com a família Alladin, diria para poder refletir um pouco sobre a maneira ingênua que propagamos o preconceito e pediria certa reflexão de como podemos mudar uma cultura que machuca tanta gente, sem destruir as relações humanas em si.
Ademais, se minhas palavras encontrar os indivíduos que atacaram o casal com filho adotivo, espero que elas possam levar certa ponderação sobre a efetividade de se agredir pessoas que mal conhecemos dentro de um objetivo que penso ser construir uma sociedade sem coação, brutalidade, ódio e opressão (não me parece nada eficaz).
E no mais, uma boa ressaca de carnaval para todos e todas!
Tadeu Porto é Diretor do Sindicato dos Petroleiros no Norte Fluminense (Sindipetro-NF)
Beto Azevedo
11/02/2016 - 16h27
Tiririca e Alexandre Pires também não enxergaram como preconceitousas suas músicas, que foram banidas pela justiça e pelo bom senso. Apesar disso, essas “obras” não deixaram de ser expressões extremamente infelizes de falta de responsabilidade, desconhecimento, ou até mesmo, quem sabe, extremo descaso, com o impacto negativo que pode acarretar na vida da população que sofre preconceito, principalmente as crianças, a relativização de práticas e preconceitos com um triste lastro na história e que, ainda, se propagam atualmente.
A Infeliz torcedora do Grêmio, flagrada ofendendo o goleiro Aranha, não o comparava com um divertido personagem da Disney, nem com um imponente César, protagonista dos filmes Planeta dos macacos, ou ao divertido Macaco Louco, do desenho As Meninas Superpoderosas. Ela se valeu da comparação exdruxula e secular negro=macaco, enraizada no fundo da garganta do típico racismo brasileiro, aquela coisa que fica guardada no coldre da estúpidez, pronta para ser acionada assim que seu/sua portadora se sentir no direito de injúriar alguém.
Sobre o casal, nada tenho a comentar, pois não os conheço, mas vendo a imagem e acompanhando a repercussão que vem ocorrendo, me lembrei dos tristes epsódios musicais citados acima. È que não precisa ser branco para vacilar nessa questão tão delicada e tão pouca debatida no Brasil. Só é preciso se perder na doce ilusão do mito de que o preconceito está nos olhos de quem vê, ainda que ele se encontre na nossa história, em diversos estudos acadêmicos, na realidade do mercado de trabalho, nos olhares e comentários desdenhosos, a surdina ou aos buxixos, no olhar espantado com um penteado afro ou um turbante.
Confesso que ao ver essa imagem me ocorreu um misto de espanto e tristeza, um sentimento como o que me ocorreu ao ver o joelho do Ronaldinho estourando e a fratura na canela do Anderson Silva. No cenário, a empolgante festa de rua que contagiou BH e região, uma coisa bacana e, pelo o que eu sabia até então (me refiro aqui a outro caso*), sem grandes tumultos ou confusões, de repente havia uma falta, um lance infeliz e desnecessário e, por que não dizer fatal. Ainda que não fosse caso para um cartão vermelho. Os “atenuantes” relacionados a família logo vieram a tona e, ao meu ver enriqueceram a discussão. Sim, pois acredito que vivemos um momento rico na evolução da consciência negra no país. Da adoção dos cachos e do crespo até a conciência de que ruim não é o tipo de cabelo, mas sim o preconceito, creio que estamos dando passos importantes para a mudança desse paradigma racial brasileiro. E precisamos falar mais sobre isso.
Felizmente vemos famílias dispostas a ter filhos, independente da cor da criança, e infelizmente, ainda vemos pessoas e personalidades que não se enxergam como negras ou como não brancas. Gostaria que a razão estivesse com as pessoas que acham que o preconceito está nos olhos de quem vê, pois tenho a ilusão que dessa forma seria mais fácil combate-lo, mas não, ele é real e precisamos saber lidar com ele e com tudo o que ele representa. Penso que essa foto presta um grande serviço a um país que precisa se enxergar melhor e discutir tudo aquilo que não é dito por medo, ignorância ou conformismo.
*infelizmente nem tudo foram flores na festa. Há relatos alguns problemas que ocorreram com blocos de menor expressão e da periferia como o Angola Janga e o bloco da bicicletinha.
Hell Back
11/02/2016 - 16h08
Não acredito que o casal citado no texto não sabia que isso não é politicamente correto.
Não, o casal não foi ingênuo coisa nenhuma. Os dois sabiam muito bem o que isso provocaria.