Liberdade? Por Rubens R. R. Casara

por Rubens R. R. Casara, no Empório do Direito

O empobrecimento do debate público brasileiro, em especial no campo do sistema de justiça criminal, com a redução do pensamento ao modelo binário-bélico (amigo/inimigo, bem/mal, etc.), faz com que a complexidade dos fenômenos sociais etiquetados de penalmente relevantes seja ignorada e que correntes de pensamento, que buscam tratar com alguma sofisticação (ou mesmo a partir de princípios) das diversas questões que aparecem nos processos de criminalização primária e secundária, percam importância ou acabem ignoradas.

Hoje, no momento em que direitos e garantias individuais são afastados com naturalidade por serem percebidos como óbices à eficiência punitiva do Estado, lamenta-se a ausência dos teóricos liberais no debate sobre o agigantamento do Estado Penal.  Refiro-me aqui aos verdadeiros liberais, que prezam a liberdade e não a tratam como mercadoria, não aos reacionários ou conservadores que se afirmam liberais por conveniência sem, contudo, entender ou aderir aos princípios liberais.

A liberdade é uma conquista da humanidade. Reduzir a importância do valor “liberdade” é um claro sintoma de autoritarismo e, mais do que isso, um passo rumo à barbárie. Como deixou claro Noberto Bobbio:

a liberdade, introduzida pelos liberais, introduzida no sentido que a teorizaram e criaram instituições jurídicas várias para garanti-la, reassumindo-a na conhecida fórmula do ‘Estado de direito’, é uma conquista civil, é uma conquista da civilização, uma daquelas conquistas que a humanidade deverá integrar e enriquecer, não deixar dissipar, porque voltar atrás significa barbarização. Que os burgueses hoje estejam dispostos (…) a deixa-la cair a fim de salvar os seus privilégios, significa simplesmente que os burgueses não são mais liberais, não significa absolutamente que a liberdade individual não seja mais um valor para o homem.[1] 

O argumento, muitas vezes utilizado tanto por reacionários quanto por esquerdistas saudosos de práticas autoritárias, de que a “liberdade burguesa é para poucos” e, portanto, “pode ser ignorada” ou “deve ser destruída” é falacioso. A uma, porque confunde o valor liberdade (universal), com a ideia de “liberdade burguesa” (expressão histórica de uma classe particular). A duas, pois se a liberdade é para poucos, a perspectiva democrática (democracia entendida, para além da participação popular na tomada de decisões, como concretização dos direitos fundamentais) aponta para a ampliação do âmbito de incidência dos direitos fundamentais. A luta, portanto, deve ser por expandir a liberdade e os instrumentos que servem para garanti-la e não para suprimi-los da parcela favorecida da sociedade.

Compreender a liberdade, como valor universal, não é simples. Em contextos acostumados com perspectivas autoritárias, torna-se ainda mais complicado entender o significado e o alcance do valor “liberdade”. Por que defender a “liberdade” se a prisão, a tortura e a violação da legalidade democrática são fenômenos naturalizadas?

Não causa surpresa, portanto, o repúdio de parcela da sociedade (pessoas tanto de “direita” quanto de “esquerda”) à carta/manifesto de advogados e juristas contra abusos em um processo com repercussão midiática. A partir da correta percepção de que aquele processo atingia indivíduos que normalmente não eram réus em processos criminais, ouviu-se muita gente relativizar as afirmadas ilegalidades, afinal “essas ilegalidades sempre atingiram os pobres que figuravam como réus em processos criminais”. Ao contrário de expressar preocupação diante do risco de violação a direitos e garantias fundamentais (de todos, portanto), parcela da sociedade passou a aplaudir “o fim da seletividade”. No lugar do democrático, “direitos para todos”, o slogan igualitário foi “ilegalidade para todos”. Ao invés da solução emancipatória (de aproveitar a oportunidade, conferida por um processo acompanhado por ampla parcela da sociedade, para reafirmar os direitos e garantias fundamentais e clamar para que os pobres tenham os mesmos direitos e garantias assegurados aos réus que detém poder econômico), a aposta foi no obscurantismo.

Rubens R. R. Casara é Juiz de Direito do TJRJ, doutor em direito, mestre em Ciências Penais, professor universitário, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Corpo Freudiano.

Notas e Referências:

[1] BOBBIO, Norberto. Política e cultura. Trad. Jaime Clasen. São Paulo: Editora Unesp, 2015, p. 110.

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