por Paulo Moreira Leite, no Brasil 247
Fraude histórica que serve de lição universal a todos aqueles que têm interesse real em impedir desvios e abusos em decisões da Justiça, inclusive nas investigações sobre corrupção no Brasil de nossos dias, em particular na Lava Jato, o caso Dreyfus tem muito a ensinar aos brasileiros de hoje. Uma das principais envolve o direito de toda pessoa ser tratada como inocente até que se prove o contrário.
Parece fácil mas não é – muito menos em situações de tumulto político e grandes incertezas em pauta. No Brasil de 2016, não há espaço real para o contraditório, para a discordância, uma crítica leve, à Lava Jato. A exigência é adesão absoluta, como prova a reação dos jornais à publicação de um manifesto assinado por 115 advogados, denunciando abusos contra prisioneiros submetidos a longas delações premiadas, que cumprem a finalidade óbvia de produzir confissões e delações.
Evitando entrar no mérito daquilo que se denuncia – o que seria sempre delicado e mais difícil – os meios de comunicação preferiram fazer insinuações vergonhosas, de caráter moral, sobre a altura de seus honorários. Desprezando o direito de defesa, tão usado no emprego da liberdade de imprensa, inclusive para proteger o sigilo da fonte e até para evitar raras punições judiciais, assumiram a postura típica de porta-vozes de todo pensamento autoritário, que é criminalizar o trabalho dos advogados.
Sem ruborizar, sem fazer nenhum tipo de auto avaliação, nossos meios de comunicação estão consumando uma guinada histórica. Depois de décadas de textos interesseiros e bajulatórios, de quem fingia desconhecimento de fatos condenáveis que agora se denuncia em tom de afetada indignação, ampliam o coro da denúncia e da crítica. Em sua mais recente expressão, querem impedir, de qualquer maneira, civilizados acordos de leniência que podem salvar o que for possível da 7ª economia do planeta.
Você pode ter a opinião que quiser sobre a Lava Jato, sobre os acusados, sobre o juiz Sérgio Moro, sobre o PT e Lula, sobre as empreiteiras.
Só precisa saber que, na vida real de uma sociedade como a nossa, aquilo que chamamos de verdade e mentira – e também culpa e inocência — envolve construções sociais, produzidas pelo direito de falar e ouvir, argumentar, apresentar sua versão dos fatos, seja num tribunal, seja perante dezenas de milhões de pessoas.
Não estamos falando de realidades metafísicas, nem de entidades espirituais.
Essa é a utilidade do caso Dreyfus, uma fraude que levou dez anos para ser desmascarada, num país que a maioria das pessoas considera culto e civilizado.
Desprezada pelos principais jornais da época, que jamais deu espaço para os argumentos da defesa, a família de Dreyfus decidiu investir uma fortuna – sim, eles eram judeus muito ricos, e isso sempre foi usado em tom de suspeita – no conhecimento da verdade.
Não se limitaram a contratar advogados, obviamente. Sem direito a palavra, também contrataram um jornalista, Bernard Lazare, que fez as primeiras investigações independentes sobre o caso, que permitiram rastrear os primeiros sinais de inocência do capitão, já julgado e condenado.
As informações reunidas por Lazare permitiram –mas isso só aconteceu quatro anos após o julgamento — a publicação do artigo Eu Acuso, de Emile Zolah.
Tratado como exemplo heroico do jornalismo daqueles dias, na vida real o Eu Acuso foi aquilo que o ministro José Roberto Barroso chamou de ponto fora da curva. Em vez glorificado, como se faz hoje em coquetéis de fim de curso de jornalismo, Zolah foi perseguido, processado e condenado a prisão. Criado pela maioria dos jornais da época, que disputavam manchetes em tom popularesco para denunciar Dreyfus, num tempo em que a palavra “judeu” era empregada sempre num tom criminal, o ambiente de comoção social era tão desfavorável que, anos mais tarde, os responsáveis pela sentença justificaram a decisão com um argumento esdrúxulo. Alegaram que, se tivesse sido absolvido e pudesse andar pela rua, Zolah possivelmente seria morto por um cidadão enfurecido com sua impunidade. (Sem confiar uma vírgula nesse argumento, Zolah preferiu exilar-se na Inglaterra).
A utilidade de estudar os dois casos reside em aspectos importantes. Ajuda a compreender o caráter nocivo da combinação de interesses políticos com uma decisão judicial.
Numa conjuntura que tem lá sua semelhança com o Brasil de hoje, embora apresente elementos muito diversos, vivia na França um período de reação conservadora.
Uma década e meia após uma experiência revolucionária, a Comuna de Paris, quando a capital do país foi assumida por um governo de anarquistas, socialistas e marxistas, que expulsou a burguesia e tentou assumir o comando do Estado, a França vivia um período de reconstrução da ordem. Desmoralizado por várias derrotas, o Exército tentava recuperar prestigio e autoridade. Ressabiada contra o alargamento da democracia para as camadas populares, a velha aristocracia aliava-se ao reacionarismo católico para estimular a intolerância e o preconceito, rejeitando vários progressos passados, o que incluía estímulos ao anti semitismo que atingiu Dreyfus, após décadas de convívio e várias medidas de integração e aceitação da diversidade estimuladas pela Revolução de 1789.
Como a maioria dos franceses só pode descobrir uma década depois da sentença judicial, o capitão Alfred Dreyfus era totalmente inocente da acusação de envolvimento num esquema de roubo de segredos estratégicos do Exército francês que eram oferecidos a Embaixada da Alemanha em Paris. Aquilo que hoje se chama “caso Dreyfus” poderia ter-se limitado a um caso de erro judicial, ainda que muito grave, caso as instituições próprias de um regime democrático tivessem feito sua parte.
Afinal, um ano e meio depois da sentença contra Dreyfuss, a verdade dos fatos já fora informada ao Estado Maior do Exército. Num ambiente politizado e intolerante, a crise aberta pelo episódio colocou em risco a sobrevivência da República, vítima de chantagem militar permanente contra governos civis que não se dessem prova de submissão aos quartéis.
Sem apoio de provas, a denúncia contra Dreyfus se sustentava a partir de indícios fabricadas, inclusive documentos falsos, que se destinavam a encobrir um outro oficial, também capitão, que hoje é tido como o verdadeiro traidor. Dreyfuss foi sentenciado em dezembro de 1894. Cinco anos depois, num segundo julgamento, seria condenado mais uma vez, a dez anos, num escândalo o que contrariava a maioria das evidências surgidas após a primeira condenação. Conseguiu a liberdade, através de um indulto presidencial. Mas só teve a inocência reconhecida dez anos depois da sentença, quando pode reintegrar-se ao Exército, chegando a combater na Primeira Guerra Mundial.
Sem disposição para voltar atrás numa decisão errada e cumprir o dever elementar de respeitar as provas e tomar decisões a partir delas, a Justiça militar nunca assumiu o erro original. Protegeu a fraude até o fim. O chefe da contra espionagem que tinha as informações confiáveis sobre Dreyfuss foi enviado para as colônias do Norte da África. O culpado foi solto.
Muitas pessoas acreditam que o condomínio entre jornais e a Justiça, que estimula uma cobertura favorável em troca de vazamentos e informações privilegiadas, tenha sido uma invenção da Operação Mãos Limpas italiana, importada para o Brasil pelo juiz Sérgio Moro. Errado.
No final do século XIX a maioria dos jornais franceses estava inteiramente cooptada pela decisão da Justiça contra Dreyfus, e foi cúmplice de uma sequência de barbaridades. Suas manchetes cobraram a condenação com penas duras e vergonhosas. Aplaudiram em tom de festa cívica quando ele foi degradado perante a tropa, expulso do Exército e enviado para a Guiana, para ser mantido a ferros, sob o sol do Equador. Depois de sustentar uma fraude, mantiveram a mesma postura quando se tornou preciso apoiar uma farsa – aquela versão que todos sabem que é mentirosa mas é mantida pelas partes ninguém se dispõe a assumir a culpa pelos erros cometidos.
Sem inocentar (nem culpar) ninguém com antecedência, acho que deu para entender do que estamos falando no Brasil de 2016, certo?
Nelson Quintanilha
25/01/2016 - 18h58
Isso me faz lembrar a AP 470.
Edson Costa
25/01/2016 - 16h51
Ela, opa. Não vamos confundir as coisas. Aqui temos duplo e triplo grau de jurisdição, ou seja, qualquer decisão pode ser revista por outros julgadores. No caso da Lava Jato, de todos os recursos contra as decisões e foram centenas, só 4% das decisões foram reformadas.
O Cafezinho
25/01/2016 - 16h59
sim, só 4%. E praticamente aboliram o habeas corpus no brasil
Nicolas Chernavsky
25/01/2016 - 13h46
Muito bom o artigo. Notei essa semelhança com o caso Dreyfus há muito tempo (http://culturapolitica.info/?p=1065). Decisões judiciais sobre crimes não podem ser na base do “deve ser”, tem que ter provas, senão é preconceito, como foi o antijudaísmo no caso Dreyfus.