por Márcio Sotelo Fellipe, no Justificando
Escravos e servos tinham que se ligar necessariamente à terra, que era o meio de produção nuclear nos modos escravista e feudal.
O capitalismo funciona de modo diferente. Pelo contrário, quem vende sua força de trabalho o faz como sujeito de um contrato; portanto, “autônomo”, “livre”. Ele mora onde pode “escolher”. Pela própria natureza do sistema, mora apartado do meio de produção e tem a sagrada liberdade de morar nas ruas, a sagrada liberdade de não ter teto.
O capitalismo também tem a particularidade de tornar supérfluos, e por vezes nocivos – porque supérfluos costumam criar problemas – parte da força de trabalho. A raiz do moderno Direito Penal está nesta particularidade histórica. Privados da terra no processo de acumulação primitiva do capital, hordas de despossuídos vagavam pelas cidades e campos “perturbando a ordem pública”. O sistema penal foi e é uma das formas de controle dessa massa.
Tudo piora ainda quando ganha relevo o capitalismo parasitário, rentista, sequer vinculado ao processo produtivo, que prescinde do produtor direto. Nutre-se de papéis que fazem circular uma espécie de riqueza que corresponde a nada e prescinde do trabalho e da riqueza real, fazendo crescer o contingente de seres humanos supérfluos.
Uma das consequências desse cenário estamos vendo todos os dias: o fenômeno cada vez mais acentuado da violência do sistema repressivo e um draconiano Direito Penal, com suas hiperpenas e aumento da população encarcerada, mantida em condições absurdamente desumanas. Animais criados para abate, como são mercadorias, recebem melhor tratamento do que presos, que nem são mercadorias e nem as produzem e, portanto, nada valem para o capitalismo. E por isso também se permite à polícia que mate à vontade nas periferias das grandes cidades, preferencialmente jovens e negros.
E assim também o desprezo pelas condições de vida da massa “supérflua”. Como a mão de obra é farta e há sempre um exército de desempregados, aparece a fria racionalidade instrumental do sistema judiciário a serviço do capitalismo. Com a completa indiferença da grande imprensa e das autoridades maiores da República, pequenas autoridades da República não têm qualquer freio moral. São capazes, por exemplo, de desalojar brutalmente milhares de pessoas, famílias, crianças, idosos e doentes, que poderão certamente valer-se do direito que o capitalismo concede a todos de morar onde bem entender.
Pode-se ver no Youtube uma cena que marcará indelevelmente a história do Judiciário no Brasil. No dia seguinte à tragédia do Pinheirinho, a MM. Juíza de São José dos Campos declarou que “a Polícia Militar agiu com honra”. Sempre pensei que a palavra “honra” somente poderia ser utilizada para fatos que pudessem ter um mínimo de valor moral. Engano meu.
Daniel Jonah Goldhagen conta em Os Carrascos Voluntários de Hitler, que discute o papel do povo alemão no Holocausto, um episódio ilustrativo da incapacidade de pensar moralmente, tratando seres humanos como supérfluos. Um capitão da SS que comandava uma companhia empenhada no massacre de judeus na Polônia certa vez descumpriu uma ordem hierárquica alegando objeção moral. A ordem determinava que os soldados assinassem uma declaração comprometendo-se a não saquear. O capitão justificou-se dizendo-se ofendido em seu “senso de honra”. Não ofendia o conceito de honra do oficial nazista exterminar como baratas seres humanos. Ofendia supor que seus comandados precisavam de uma ordem para não saquear, já que eles, afirmou o capitão, aderiam às normas de moralidade e conduta alemãs derivadas da “livre vontade” e não pela “ânsia de benefícios ou o temor da punição”. Percebe-se que o capitão em algum momento de sua vida leu Kant (suas palavras são muito semelhantes a algumas passagens da Fundamentação da Metafísica dos Costumes) mas não foi capaz entender que livre vontade e não agir somente por receio da punição estão indissociavelmente vinculados ao conceito de dignidade humana em Kant. E disto também se depreende, a partir do que o capitão afirmava ser o senso de honra de seus comandados, que os soldados da SS não eram saqueadores porque tinham a livre vontade de não saquear e, logo, eram também assassinos por livre vontade e não porque recebiam ordens.
Episódios como esse demonstram a necessidade de discutir o papel dos “pequenos” perpetradores (entre aspas, porque as consequências são tremendas) do mal social. Eles se caracterizam, em geral, pela incapacidade de formular conceitos morais que não sejam absurdamente rasos, inacreditavelmente superficiais. E são capazes de transformar conceitos filosóficos, que sempre implicam o pensar e a razão, ou seja, a crítica incessante e necessariamente incompleta que caracteriza o exercício da razão, em um conjunto pétreo de regras que dispensam juízos profundos. Lembre-se, a propósito disso, a declaração de Eichmann em Jerusalém de que agiu – também “kantianamente” – de acordo com o imperativo categórico.
Com essa leveza pueril e superficialidade, a mesma, aliás, do Pinheirinho, estivemos a ponto de assistir a uma inominável tragédia, a desocupação de Vila Soma, no município de Sumaré. Uma área desocupada há 20 anos tornou-se moradia de cerca de 9 mil pessoas porque o Estado brasileiro descumpre seu papel social e desconsidera o direito fundamental à habitação. Como se trata da moradia de 9 mil supérfluos, tudo é possível. Além dos proprietários, o Ministério Público também pediu a retirada dos moradores alegando lesão a interesse urbanístico. Compete ao Ministério Público, nos termos do art. 127 da Constituição Federal, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. No conceito do nobre representante do MP o interesse social urbanístico não pode esperar e prevalece imediata e incondicionalmente sobre o interesse social de não deixar desabrigados 9 mil homens, mulheres, crianças e idosos cujos direitos ele deveria proteger.
Uma tal ignomínia somente é possível porque há uma rede social de pequenos perpetradores incapazes de formular juízos morais menos rasos. O que exerce um papel funcional no capitalismo, que precisa do mal social para se manter e se reproduzir. Hannah Arendt dizia que não se deve falar em mal radical (radical significa ir às raízes) porque o mal é superficial. Ir às raízes das coisas é pensar. O mal se nutre da renúncia ou ausência da razão. O capitalismo funciona porque isto opera.
Não assistiremos, pelo menos neste domingo próximo, à tragédia de Vila Soma graças à coragem de dois juízes, Marcelo Semer e Ricardo Lewandowsky. O primeiro, relator de recursos do caso no TJSP, proferiu decisões determinadas pelo sentido de humanidade e pela racionalidade social e moral. O segundo teve a sensibilidade (habitual em sua magistratura no STF) de suspender, dando efeito suspensivo a um recurso, a tragédia anunciada.
Dois juízes que conseguiram, neste caso, evitar o resultado da soma de todos os erros. O que há de moral e racional na sociedade brasileira os agradece e os honra.
Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
Junto a Rubens Casara, Marcelo Semer, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.