Difamar de modo inquisitório um dos mais importantes lutadores atuais do Brasil contra as repressões e mazelas da nossa democracia inacabada é um erro
Jean Wyllys fez bem em ir a Israel?
por Paulo Abrão, no Opera Mundi
A visita de Jean Wyllys a Israel é legítima.
O boicote para impedir (ou desincentivar) visitas ao Estado de Israel deve alcançar também as ações da resistência local israelense contrárias à ocupação da Palestina? O boicote deve condenar ao isolamento as resistências acadêmicas e intelectuais do país?
Essas são as perguntas que devem ser feitas ao se discutir a respeito da visita do deputado Jean Wyllys, em suas férias, à Universidade Hebraica.
O convite partiu de um grupo intelectual que, desde dentro do país (e pela esquerda), fazem um bom combate universitário ao pensamento único oficial do Estado de Israel, debatendo as contradições e incoerências da ocupação da Palestina, explicitando os equívocos dos radicalismos, advogando a pluralidade de pensamentos, mostrando as tragédias das escolhas do atual governo e, principalmente, defendendo a necessidade de se manter diálogos com a intelectualidade e as autoridades da Palestina para que n?o se percam as pontes possíveis e desejáveis de aproximação social, condição básica para a chance de algum processo de paz.
Esse específico grupo politico-intelectual da Universidade Hebraica está entre os últimos remanescentes que ainda resistem às pressões ostensivas e a um tipo de assédio moral sistemático de outros colegas acadêmicos para que sejam rompidos, de forma definitiva, quaisquer canais de diálogos com os grupos intelectuais e políticos palestinos.
Já foram convidados deste “programa acadêmico de resistência” alguns brasileiros: cineastas, juristas, dirigentes de organizações não governamentais de direitos humanos, intelectuais e, desta vez, um parlamentar.
A agenda inclui debates críticos e plurais na Universidade Hebraica com estudantes e professores, visita à Palestina e à universidade Al-Quds, visita a líderes políticos, intelectuais e partidos políticos da esquerda israelense, deslocamentos ao muro da vergonha, visita a lugares de memória e consciência sobre o holocausto e sobre a luta da causa palestina, atividades de escutas e expressões de solidariedade.
Eu pude estar em uma destas ocasiões. Na época, a visita resultou na articulação posterior de um seminário inédito realizado no Brasil (em São Paulo e no Rio de Janeiro) que permitiu sentar estudantes e professores das duas universidades, Hebraica de Jerusalém e Al-Quds, em condições de igualdade na mesma mesa de diálogos. Um fenômeno atualmente quase impossível de ocorrer localmente em virtude do crescente radicalismo. O diálogo centrou-se na oportunidade de se dar voz às juventudes sobre o futuro das religiões, da política, da economia e das relações internacionais entre palestinos e israelenses.
É claro que a visita de Jean reveste-se de um impacto diferenciado em relação à dos demais, pois se tem exigido a adesão ao BDS [movimento em prol de boicote, desinvestimento e sanções a Israel] especialmente de relevantes personalidades públicas (além de governos e empresas), como é o caso.
De todo modo, falar seriamente em boicote à atual política de Israel significa, sim, recusar-se a participar de ações que deem sustentação estrutural ao modelo e ao grupo político que promove as graves violações aos direitos humanos do povo palestino mas também significa, primordialmente, ajudar a empoderar a resistência a esse modelo.
Independentemente da validade do uso de bloqueios e a sua eficácia (essa é outra discussão) nenhum bloqueio poderia ser absoluto a ponto de deixar de se manter ações relacionais com a oposição e a resistência, especialmente a acadêmica, inclusive dentro do próprio Estado de Israel.
Se a concepção do bloqueio inclui sacrificar e penalizar a resistência local a ponto de se estrangular debates acadêmicos que permitem a emergência de uma crítica ao pensamento oficial, de se restringir um espaço onde se constrói alternativas de conhecimentos para formar uma juventude que poderá vir a transformar a atual realidade, então teremos desistido da política e da esperança. Poderíamos imaginar o que teria sido o boicote à África do Sul do apartheid se tivesse sido acompanhado de um concomitante isolamento das formas de resistência ao regime?
Participar de um programa dessa natureza assume sentido diametralmente diverso, por exemplo, ao episódio do show de Caetano e Gil por aquelas bandas. A viagem de Jean a este programa é uma ação política contra uma forma de opressão, já o espetáculo, por sua vez, foi ato comercial no circo cultural local. Nestes termos, vale fugir das simplificações, pois participar ou apoiar atividades de resistência não pode ser visto como “furo ao bloqueio”.
Nas diversas críticas à visita em si, há algumas que são incoerentes ou seletivas (curiosa, por exemplo, a indignação condenatória dos que – como eu – apoia o governo brasileiro que, sejamos francos, mantém laços econômicos com Israel, incluída aí cooperação militar), há outras manifestações que replicam preconceitos e pré-juízos e até a destilação de rótulos estigmatizantes sobre a militância dos outros (sob a pretensão do domínio verdade).
Essa escandalização feita pela esquerda desta viagem de Jean Wyllys para apoiar a resistência acadêmica em Israel mais parece um erro político e uma perda da memória da esquerda no Brasil.
O erro político está em difamar de modo inquisitório e apressado um dos mais importantes lutadores atuais do Brasil contra as repressões e mazelas da nossa democracia inacabada. É um erro julgá-lo terminativamente sem considerar as circunstâncias, as peculiaridades e o caráter da visita.
Já a perda de memória parece ocorrer ao não se lembrar que a resistência brasileira também dependeu de solidariedade internacional para vencer a ditadura. Uma solidariedade articulada por dentro e por fora do país. A propósito, um dos personagens que veio ao Brasil para apoiar e resistir ao lado das organizações sociais durante a nossa ditadura é, não por acaso, um dos protagonistas deste grupo de intelectuais que estão na Universidade Hebraica organizando esta “resistência acadêmica por dentro”. James Green e seus colegas sabem muito bem o que estão fazendo e onde pretendem chegar com essa agenda de trabalho. James conhece na pele (e no coração) os efeitos e os riscos do ato de coragem de se entrar num país repressor e reverberar discursos de apoio à luta contra o poder.
Convidar Jean Wyllys foi um gesto de coragem desse grupo intelectual em Israel. Ao elegerem um parlamentar brasileiro para estas atividades, escolheram um deputado de esquerda, uma voz das minorias, um defensor das religiões afrodescendentes, um combatente defensor dos direitos humanos. Uma presença considerada subversiva para parte dos valores dominantes locais.
Jean Wyllys, por sua vez, aceitou cumprir essa agenda e tem socializado suas experiências em relatos expostos nas redes sociais. Nestes relatos ele expressa opiniões, aprendizados, percepções e emite alguns juízos sobre o conflito histórico.
Sobre o conteúdo destes relatos, as pessoas podem e devem debatê-los, de forma racional. É mais que legítima a formação de juízos sobre as coerências argumentativas, as precisões conceituais ou sobre as reações do próprio às críticas postadas em seus perfis. Afinal, tratou-se de uma escolha do homem público que preza a transparência disponibilizá-los nas redes e, como diz o jargão popular, quem está na chuva é para se molhar.
Mas vale diferenciar o debate no marco de uma discussão livre, franca e aberta sobre o mérito das ideias expressas pelo parlamentar e sobre uma temática complexa, daquelas discussões atinentes à condenação da visita em si, no contexto de um programa de apoio à resistência local. Não é preciso concordar com Jean em tudo que ele diz, mas isso não deslegitima a sua visita a Israel.
Em resumo, condenar governos autoritários e, ao mesmo tempo, solidarizar-se ativamente com a sua resistência interna é uma fórmula política legítima que nunca deveria ser abandonada pelas esquerdas.
Paulo Abrão é Doutor em Direito, ex-Secretário Nacional de Justiça e atual presidente da Comissão de Anistia e Secretário Executivo do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul