“Não é fácil ouvir alguém chamar um brasileiro como Chico Buarque de ‘merda’, sem que o sangue lhe suba à cabeça”

Data da foto: 1977 Chico Buarque de Hollanda, cantor e compositor.

por Cacá Diegues no O Globo

Barra Pesada

Esta é minha última crônica de 2015. Vou tirar umas férias de escrever e só volto a publicar outro artigo no último domingo de janeiro, dia 31. Nada como encerrar alguma coisa, mesmo que temporariamente. A gente fica com uma sensação de missão cumprida, mesmo que nos falte confiança em que a missão seja mesmo essa, que o que produzimos prestou para alguma coisa.

Só para ficar nas desgraças domésticas, 2015 foi um ano maldito na lembrança de muita gente (as desgraças internacionais também bateram recordes de horror, mas deixa pra lá). Não estou falando apenas das más notícias do mundo concreto, da inflação e do desemprego, da Petrobras e da Odebrecht, da lama mineira e do fogo amazônico, mas também dos incômodos políticos que dividiram o país. No momento, o impeachment da presidente é o mais grave deles.

Já disse aqui e repito que sou totalmente contra o impeachment, ele é injusto e inconsequente. Injusto porque, independente de sua administração ser boa ou má, não vejo a presidente tendo cometido nenhum crime previsto na Constituição que justifique seu impedimento. Inconsequente porque não vejo no horizonte uma sucessão que seja capaz de melhorar o país. Temer? Cunha? Renan? Cruzes!

A acusação de “estelionato eleitoral”, de que Dilma Rousseff teria mentido durante a campanha e feito, neste primeiro ano de seu segundo mandato, o contrário do que prometera, já virou uma constante cada vez que elegemos novo governo. Não porque Fernando Henrique, Lula e Dilma tenham decidido conscientemente mentir durante suas campanhas; mas porque preferiram ouvir seus marqueteiros, a discutir e seguir os programas de seus partidos.

A propaganda montada pelos marqueteiros políticos, para “vender” os candidatos que os contrataram, é que está se tornando um “estelionato eleitoral” sistemático, onde não se discute nada antes de uma consulta aos institutos de pesquisa. Não se crê um segundo que um discurso sincero e correto possa mudar os índices obtidos por esses institutos. Duda Mendonça, Renato Pereira ou João Santana se tornaram sumidades programáticas, muito mais importantes do que qualquer ideólogo respeitável de cada partido. A política no Brasil está se tornando um sistema de venda de imagens e não de ideias.

Não é assim que está evoluindo a política por aí, na França ou na Espanha, mesmo na Grécia ou em Portugal, onde forças novas ocupam seu lugar junto às aspirações do povo, sem ter que vender uma imagem superficial. Uma aliança de centro-esquerda não derrotou a direita da Frente Nacional francesa pela força de ilusões; o Podemos e o Cidadãos não se impuseram nas urnas espanholas através de velhas mensagens que os marqueteiros repetem.

Não acho que o Brasil esteja bem de vida, muito menos que este seja o melhor governo possível. Mas é preciso reconhecer que Dilma Rousseff não fez um só gesto, nem emitiu uma só frase que enfraquecesse o processo democrático no país. No meio da grave crise política e econômica que vivemos, podemos nos orgulhar da estabilidade de nossa democracia.

Uma democracia que está sendo ameaçada por setores radicalizados da população. Alguma coisa na crise que vivemos, ocasionada talvez pelo resultado apertado das últimas eleições, fez com que, desta vez, o país se dividisse radicalmente em dois, sem racionalidade e sem respeito pela opinião alheia, um puro exercício de ódio. O país está perigosamente dividido em clãs políticas que não admitem respirar o mesmo ar que o “inimigo”.

Chico Buarque foi, esta semana, vítima dessa intolerância burra. Saindo de um jantar com amigos, ele teve que ouvir, vindos do outro lado da rua, gritos hostis e grosseiros de jovens que estavam no restaurante em frente. A quase uníssona acusação era a de sua preferência partidária, uma escolha pessoal e cívica de cada cidadão livre. Gentilmente, com a cordialidade que o caracteriza, Chico atravessou a rua e foi tentar conversar com os rapazes. Mas eles não queriam ouvir argumentos ou discutir ideias, apenas desqualificavam o interlocutor que não pensava como eles, uma censura tipicamente autoritária ao pensamento do outro. O mínimo que ele ouviu foi ser chamado de “seu merda”. Não é fácil ouvir alguém chamar um brasileiro como Chico Buarque de “merda”, sem que o sangue lhe suba à cabeça.

Não sou pessimista, não acho que as coisas vão sempre dar necessariamente errado. Nem acho que vamos precisar de muitos anos para nos recuperarmos da crise que nos assola. Se alguns princípios básicos da convivência democrática forem respeitados, se conseguirmos que o ódio seja substituído pela consciência de que o outro tem direito de ter outra opinião, se aprendermos a pegar leve na barra pesada, sairemos dela mais rápido do que imaginamos, sem a falsidade histriônica de uma “unidade nacional”. De um lado e do outro, vamos precisar da grandeza de muitos Chico Buarque para cumprir essa meta.

Cacá Diegues é cineasta

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