Raúl Zaffaroni, ex-ministro da Corte Suprema argentina, comentou a iniciativa presidencial de nomear dois juízes da Corte por decreto.
por Martín Granovsky, na Carta Maior
‘Não se pode aceitar nenhuma tentativa de afastar o Congresso’
“É pertinente reclamar da segurança jurídica nesse caso, porque tem a ver com tornar previsíveis as condutas futuras, e por isso não se pode aceitar nenhuma tentativa de afastar o Congresso”, foi o que disse Raúl Zaffaroni, ex-ministro da Corte Suprema, entre 2003 e 2014 e atual membro da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Assim foi como ele comentou a iniciativa presidencial de nomear dois juízes da Corte por decreto, invocando o inciso 19 do artigo 99, segundo o qual o Presidente “pode preencher as vagas dos empregos que requerem aprovação do Senado, e que ocorram durante o seu recesso, por meio de nomeação que expirará no fim da próxima Legislatura”.
“Se figura a palavra `empregos´, significa que os postos aos que se referem são os que devem ser ocupados por empregados, os quais costumam ter chefes”, explicou Zaffaroni.
O jurista ficou encarregado de encerrar uma mesa redonda sobre a situação argentina, organizada em Buenos Aires na última sexta-feira pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO). Também participaram o economista Aldo Ferrer, a historiadora Dora Barrancos, o antropólogo Alejandro Grimson e a especialista em questões de Estado Mabel Thwaites Rey.
Ferrer abordou o que ele chamou de “heterodoxia responsável”, e pediu uma crítica da política do novo governo “a partir da construção de uma proposta nacional, popular, industrial e desenvolvimentista”. Opinou que seria um erro questionar isoladamente a desvalorização do peso ou o fim dos subsídios, “porque com Scioli também estava planejado um programa de ajuste externo”. O tema para ele é se vai ser aplicado ou não o mesmo projeto neoliberal fracassado em outros países. O economista preferiu encarar a situação pensando não só em que “a direita resiste e ganha terreno dentro e fora da Argentina” ou em que sempre é difícil “conciliar equidade e soberania com governabilidade econômica e economia de mercado”. Contou que “desde 2002 houve um processo de grande recuperação econômica, com atitudes soberanas como o `não´ à ALCA em Mar del Plata, em 2005, e a redução dos limites impostos pela dívida”. Entretanto, ele acredita também que não houve respostas suficientes para reforçar o peso ou para defender com maior força o nível de atividade. “Aumentaram as restrições externas e o superavit energético se transformou em déficit, e ao mesmo tempo as restrições externas estruturais foram combatidas com medidas que tensionaram ainda mais a economia”, disse. “O governo de Cristina não se foi em meio a uma crise, até porque alcançou a melhor transição política desde o golpe de 1930, mas também é verdade que se foi sem ter feito a transformação industrial”.
Entre os fenômenos a se observar, Ferrer recomendou prestar atenção que “até mesmo este governo, que ofereceu um plano conservador e ganhou, apelou à busca de recursos próprios, à produção, aos bancos e aos bonos com legislação nacional, aos swaps com a China e não ao salva-vidas do FMI ou a uma negociação prévia com os holdouts”.
A historiadora Dora Barrancos analisou que “não é a primeira vez na história que alguns grupos votam contra seus próprios interesses” e ao mesmo tempo supôs que “talvez não vão gostar dos resultados”. Talvez tenham sentido um fastio, e até mesmo as empregadas domésticas queriam mudar de estilo de governo.
“As coisas estão muito mal, e por isso não podemos nos dar ao luxo de sermos pessimistas”, comentou Barrancos. Também pediu que não se comemore se a situação do país piorar. “Não acho que quanto pior, melhor. Quando as pessoas estão na pior podem votar pior e fazer as coisas piorarem ainda mais”.
O antropólogo Alejandro Grimson definiu da seguinte forma: “a catarse é a negação da política como estratégia (..) sem uma autocrítica dos últimos anos é impossível construir uma alternativa mais adiante”. Ele recordou que Néstor Kirchner chegou ao segundo turno em 2003 graças a um acordo com Eduardo Duhalde e Daniel Scioli. Que em 2007, Cristina Fernández de Kirchner ganhou as eleições após um acordo com os governadores e com os radicais aliados. E que nos 54% alcançados por ela na reeleição de 2011 estavam presentes os votos de José Manuel de la Sota, de Sergio Massa e de muitos que foram deixando a Frente para a Vitória nos últimos anos. “Os votos, quando se articulam as heterogeneidades, não são os mesmos que quando não se faz esse trabalho, e quando se perdem as bases heterogêneas a situação se torna difícil”.
“A questão está entre ter razão ou ter vocação de maioria”, opinou o antropólogo, que incluiu a questão do índice de inflação e a falsificação de dados. Com respeito às últimas eleições, Grimson lembrou que houve um momento em que “Scioli era o único que havia construído certa voz autônoma” e essa voz foi se perdendo, entre outras coisas, porque teria sido melhor uma interna “na qual ele pudesse ganhar ou perder, mas que mostrasse capacidade de chegar, porque isso faria com que sua imagem ganhasse mais autonomia”. “É impossível convencer alguém de que o melhor candidato a presidente é um dirigente que não tem autonomia”, indicou Grimson.
Sobre a batalha comunicacional, ele recomendou “não deixar o debate cair no que já se sabia”. “Os grandes meios já eram os grandes meios em 2011 e os poderosos eram os mesmos poderosos há quatro anos. Se nos prendemos aos mitos, não vamos entender porque aconteceu o que aconteceu”. Grimson disse que “em 2016, vai se definir quem vai pagar o preço da desvalorização do peso, e quanto vai pagar”.
Mabel Thwaites Rey, especialista em questões de Estado e autora de “Alas Rotas”, um livro clássico sobre a privatização e a quebra da empresa Aerolíneas Argentinas, perguntou se está terminando na América do Sul o que definiu como “um ciclo de impugnação do neoliberalismo”, impugnação que não sucedeu no resto do mundo.
Ela não aceitou definir o triunfo de Mauricio Macri como um simples retorno aos Anos 90. “Os 90 foram marcados pelo que restava do medo da ditadura, transformado em medo da repressão, e sobretudo medo da hiperinflação, mas depois dos Anos 90 vieram os Anos 2000”, disse. “Além disso, naquela década, o Consenso de Washington não só tinha vigência plena mas também oferecia receitas prontas sempre à mão, coisa que hoje não existe”.
Thwaites Rey afirmou que os Anos 2000 foram momentos de “uma autonomia relativa do Estado, que capturou parte da renda extraordinária do agronegócio e do petróleo, e a aplicou em políticas de inclusão social”. Parte desses recursos foram também ao consumo, e por isso o começo das restrições ao nível de consumo causou mal-estar. Sobre o kirchnerismo, recomendou pensar que a coalizão governista sofreu em 2013 uma derrota eleitoral que mostraram a necessidade de mudar os estilos de construção política. Para Thwaites Rey, diretora do Instituto de Estudos para América Latina e Caribe da Faculdade de Ciências Sociais, da Universidade de Buenos Aires, “as lideranças verticais, aqui na Argentina ou na Venezuela, são um perigo”.
Sobre o governo de Macri, explicou que, por um lado, não há mediação, e em alguns casos governam diretamente os gerentes das transnacionais, e por outro muita gente acredita em ideias como “se são empresários e são ricos não vão roubar”. Seu cenário é o de “um Estado com vocação menos arbitral e mais impositiva”, o que não significa algo menor, porque “manejar os recursos do Estado não é algo banal, tal como entendeu Néstor Kirchner para construir um projeto”. No projeto de Macri, segundo Thwaites Rey, “não está descartada a escalada repressiva”.
No encerramento, Zaffaroni disse que a necessidade e a urgência dos decretos são duas coisas que “se manejam com frouxidão”, ao mesmo tempo em que “é notória a urgência em intervir no Ministério Público Fiscal, embora seja evidente que ele funciona normalmente”.
Pediu uma “autocrítica institucional” que incluiria vários pontos.
Um dos pontos é o debate, que Zaffaroni vem propondo há muitos anos, sobre a necessidade de passar a um sistema parlamentar. Esse sistema serviria, entre outras coisas para “institucionalizar os processos políticos ou criar uma rede de segurança para quando as lideranças pessoais se terminam, ou porque esgotaram sua capacidade ou porque os líderes faleceram”.
Outro ponto é tirar da Corte Suprema uma carga de milhares de causas onde atua como uma instância de cassação e não de controle constitucional. “Se não se cai no que explico sempre aos jovens com o caso do baseado”, contou ele sobre como funciona a Justiça hoje. “Um juiz de primeira instância diz que o baseado é legal. Uma Câmara diz que o baseado é ilegal. A instância de cassação diz que é legal. E a Corte Suprema diz que é legal ou não, dependendo de se morreu ou não algum dos que o consumiram, e assim mudou totalmente a situação”.
E um terceiro ponto da “autocrítica institucional” sugerida por Zaffaroni é “criar no povo a confiança no Direito, tema que não se pode deixar somente nas mãos dos advogados”.
“Nossos povos não acreditam no Direito, e têm razão, se pensamos que o Direito foi usado para a imposição de minorias, oligarquias e ditaduras”, disse Zaffaroni, que sugeriu promover um debate sobre as novas formas de institucionalidade “para não cair nem em decretos de urgência ou medidas graves como os velhos corralitos”.
Tradução: Victor Farinelli