por Juliano Zaiden Benvindo, no Crítica Constitucional (via GGN)
Questões estratégicas caminham também nessa direção. Historicamente, as faculdades de direito são estruturadas pelo jurista profissional, aquele que é advogado e professor, juiz e professor, promotor e professor e assim vai. Não se construiu, assim, uma cultura de independência crítica, até por questões naturalmente explicáveis da natureza humana. Um advogado, afinal, não vai ficar muito confortável tecendo críticas a juízes, porque não é mesmo inteligente, sob o viés estratégico, fazê-lo. E assim vai.
Logicamente, uma coisa não significa a outra (há vários acadêmicos que exercem profissões jurídicas tradicionais que são bastante críticos da realidade, como também há vários acadêmicos típicos que nada o fazem), mas esse é um diagnóstico importante. Aqui mesmo na Alemanha, há uma discussão a respeito da independência dos professores em relação às pretensões de assumirem posição no Tribunal Constitucional, na medida em que, devido às questões políticas, especialmente na área do direito público, a crítica à prática jurídica tem sido mais suave do que em outras áreas.
Enfim, independência acadêmica é algo importante, exatamente para termos liberdade de fazermos as devidas críticas, quando reputamos relevante. Esse é o papel da academia.
Pensando nisso, hoje resolvi fazer uma crítica acadêmica direta sobre o que tanto falamos a respeito do “grande jurista”. Reparem que não é uma crítica pessoal – lembrem-se da minha observação acima -, mas uma opinião de alguém que pesquisa e trabalha na área a respeito da qualidade acadêmica da produção de outrem. Naturalmente, divergências existem e são saudáveis. O debate, portanto, está aberto. Mas é preciso dar início a esse tipo de reflexão. É fundamental pararmos de bajular a realidade jurídica. Devemos exercer mais nossa independência. Eis a crítica:
Depois de lermos constitucionalistas e teóricos do direito do porte de um Jack Balkin, Daryl Levinson, Sanford Levinson, John Rawls, John Hart Ely, Ronald Dworkin, Mark Tushnet, Cass Sunstein, Bruce Ackerman, Christoph Möllers, Laurence Tribe, Marcelo Neves e tantos outros, dói demais ouvir de pessoas o seguinte comentário: “apesar de tudo, Gilmar Mendes é um grande autor do direito e um jurista respeitado”.
Bem, minha opinião: é um dogmático, compilador de jurisprudência e de alguma doutrina, mas não tem nada de especial. Como teórico, fica bem a desejar. Seu raciocínio tende mais para uma perspectiva “manualesca” do que efetivamente acadêmica. O propósito também parece ser mais construir obras que dão lucro (aliás, muito lucro), do que aprofundar temáticas complexas do constitucionalismo. Vende seus livros como água, mas que pouco agregam a nossa cultura constitucional. Quando tenta fazer algo, muitas vezes parece ligado a uma estratégia de poder, com uma ênfase clara em dar ao STF poderes que nem de longe tem ou deveria ter. Aliás, em várias passagens, há falácias históricas e teóricas que, para um bom entendedor, doem na alma. Verdades construídas e bem longe de serem constatadas. Traduções fora de contexto. Autores fora de contexto. Cansei de ver exemplos, já escrevi artigos a respeito e até mesmo orientei trabalhos nessa linha.
Muitos vão dizer que ele é o grande autor do controle de constitucionalidade brasileiro. Não nego que ele tenha uma relevância a partir de seus estudos nessa área e trouxe uma certa projeção do assunto no âmbito do direito constitucional. Escreveu, afinal, sobre esse tema em praticamente todos seus livros e na grande maioria de seus artigos. Do mesmo modo, esse tem sido o foco de suas orientações já há algum tempo.
Mas, vamos examinar cuidadosamente seus textos. Eles partem de uma lógica que se repete: 1) uma abordagem histórica do controle de constitucionalidade; 2) uma análise comparada do controle de constitucionalidade; 3) algumas observações sobre como poderia ser nosso controle de constitucionalidade. Com algumas leves variações entre seus textos, é esse o desenhar de seus estudos. Não se tem aqui muito mais do que uma descrição histórica (com saltos argumentativos e anacronismos problemáticos, na minha opinião), uma descrição do sistema de controle que serve de paradigma comparativo (também com algumas verdades altamente contaminadas por uma vontade de dar grandes poderes à Suprema Corte), e conclusões que caminham para esse mesmo objeto: é importante que o STF assuma uma postura tão forte como a do paradigma.
Fora os atentados teóricos a várias metodologias de direito comparado, que ressaltam bem os riscos da transposição de conceitos e métodos entre realidades jurídicas bastante diversas, existe um problema de lógica em várias das conclusões. As premissas adotadas são questionáveis, a forma de se interpretar o paradigma também e, naturalmente, a conclusão não poderia ser muito diferente. E essa lógica se repete em seus textos. Quando vai para outros temas, normalmente – aqui ainda mais evidentemente -, o seu grande trabalho é de compilação de jurisprudência e julgados.
As abordagens sobre direitos fundamentais normalmente não entram nos grandes debates que hoje se encontram a respeito do tema e, em algumas passagens, chegam a ser uma mera transposição de alguns conceitos que são muito utilizados aqui na Alemanha nos livros destinados aos alunos da graduação para fazerem o Exame de Estado. Porém, aqui mesmo na Alemanha, sabe-se que se preparar para o Exame de Estado é uma atividade estratégica de quem está definindo seu futuro naquele momento. Para quem já está no doutorado ou no âmbito da pesquisa, aquelas premissas são altamente questionáveis e problemáticas.
Em seus textos, não são os grandes livros de doutrina alemã que ali encontramos, salvo algumas passagens (muitas vezes descontextualizadas) de um autor ou outro (Häberle, Hesse, Alexy e cia.). Os institutos trazidos, do mesmo modo, são reproduzidos como verdades.
Vejam o caso do princípio da proporcionalidade, que tem várias abordagens e complexidades nem de perto por ele abordadas, e, do mesmo modo, o controle abstrato alemão, que nem de longe tem essa dimensão que seus textos aparentam dar, já que aqui o grosso dos julgados do Tribunal Constitucional – em torno de 97% dos casos – decorre do Verfassungsbeschwerde, que é uma reclamação constitucional que tem um caso concreto por trás (e mesmo que se diga que há uma abstração em algum momento, o caso está sempre lá de algum modo).
Tampouco há aprofundamento temático, predominando o tipo de análise panorâmica em que de tudo se fala um pouco. E suas conclusões caminham normalmente para dar esse ar colorido ao papel das cortes constitucionais.
Existe também uma evidente cronologia de seus textos que parece demonstrar que, depois de ter começado a trabalhar o tema do controle de constitucionalidade, nada muito novo apareceu. Seus melhores trabalhos são sua tese de doutorado e alguns escritos posteriores. Depois desse momento, praticamente o que se tem são repetições e atualizações. Surge um novo instituto, ele vai lá e descreve. Muda-se a jurisprudência, ele vai lá e descreve.
Enfim, sua grande capacidade encontra-se na atividade de descrição, o que não é um exercício mental dos mais complexos. Aliás, não há, em seus textos, nenhuma grande discussão complexa de direito constitucional. Se fala tanto no papel do STF, pouquíssimo se encontram discussões sobre separação de poderes no sentido mais dramático do termo. Se fala tanto em direitos fundamentais, não há profundos debates sobre os principais temas que os envolvem (teorias da justiça, teorias da interpretação jurídica a partir dos estudos mais densos a respeito – e há muitos textos maravilhosos -, teorias sociológicas e econômicas que lançam olhar sobre o tema). Enfim, muito aquém de uma pesquisa de fôlego.
Há um elemento da natureza humana que deve ser lançado aqui na equação. É humanamente inviável alguém escrever textos de fôlego querendo ser tudo na vida: ser Ministro, ser sócio de faculdade, ser professor. Não dá! Uma pesquisa séria demanda tempo, dedicação e muita leitura. Normalmente, os verdadeiros “grandes juristas”, quando escrevem um livro ou mesmo um artigo de fôlego, param suas atividades paralelas por um tempo, dedicam seu tempo a explorar os meandros do objeto de pesquisa, sujeitam-se às críticas e comentários de seus colegas. Enfim, o processo de produção acadêmica de qualidade é demorado. Um bom artigo pode demorar mais de ano para ser escrito. Um livro, então, nem se fala. Então, há um critério objetivo que pode ser aplicado aqui. A não ser que estejamos falando de um gênio – o que não é o caso -, é impossível, sob qualquer ângulo, alguém escrever, em um ano, tantos artigos e livros com alguma expectativa de qualidade.
Enfim, por todas essas razões, seus trabalhos não me parecem ser uma referência relevante para qualquer pesquisador sério de direito constitucional. Por isso, não é para mim um grande jurista sob o ponto de vista acadêmico. Estudantes que se apóiam em seus textos o fazem – espero – por um cálculo estratégico de futuro e, por isso, estão perdoados. Afinal, podem vir a ser cobrados por algo na frente (especialmente em um contexto em que concursos e a prática jurídica giram em torno de um constitucionalismo pouco aprofundado). Porém, como estudantes sérios, acadêmicos mesmos, espero que procurem fontes bem mais proveitosas. Em síntese, ler tais livros é, para mim, perda de tempo.
Este é um daqueles casos em que o poder, a fama e bastante malícia argumentativa projetam um autor para um patamar que não representa a qualidade de seus trabalhos. O poder puxa a fama e a fama puxa o poder. A qualidade, nesse contexto, fica em segundo plano, porque ela acaba deixando de ser, na equação, uma variável que agrega. Não há necessidade de escrever uma grande obra jurídica, simplesmente porque qualquer coisa mediana que se escreva será reproduzida por uma cultura jurídica que não questiona.
O que importa é o poder da fala ou a fama da fala, não o texto em si. Fazendo uma analogia com a música, é que nem ouvirmos aquilo que faz sucesso, porque é reproduzido pelos canais de televisão, pelas rádios e todo mundo canta. O fato de estar representado por uma grande gravadora que tem contratos com canais de televisão traz ao músico poder. Por outro lado, a reprodução de suas músicas nesses canais lhe traz fama. E tudo gira em torno de poder, fama e muito lucro.
Mas, no fundo, para quem tem um pouco de amor pela música, sabe que não é a Ivete que fará diferença, mas o Baden Powell, o Tom Jobim, o Ernesto Nazareth, a Dolores Duran, a Mayza Matarazzo, o Luiz Bonfá e tantos outros. Pois, afinal, não basta ser afinadinho – Chet Baker que o diga. Saber, portanto, compilar jurisprudência e doutrina com algumas conclusões seria o ser “afinadinho”. Mas isso é muito pouco. Em termos diretos, quero dizer que devemos ter menos “afinadinhos” e mais Chet Bakers. Em outros palavras, queremos ter, em nossa cultura constitucional, menos Ivetes e mais Badens.
Enquanto ficarmos bajulando esse perfil de “grande jurista”, perdemos a chance de olharmos para os devidos problemas de nossa realidade constitucional e passamos a reproduzir discursos como se verdades fossem. É aquele efeito “cobertor” sobre o outro olhar. Ao fecharmos os olhos para o “outro” e ao permanecermos no discurso do mesmo, a realidade constitucional não avança. Um único caminho se apresenta e se difunde, enquanto milhares de possibilidades existem em outras frentes – e, certamente, muito mais interessantes.
Por fim, como jurista respeitado, aí meus caros, a minha opinião já registrei em outras oportunidades. Respeito se ganha com atitudes, especialmente a partir da consciência do local da fala. Não me parece, ao menos para mim, ser o caso.
Moral da história: é um jurista e Ministro do STF. Isso pode soar muito, mas, fora o poder, me diz muito pouco.
Juliano Zaiden Benvindo – Professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília; Doutor em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim; Pesquisador em estágio pós-doutoral na Universidade de Bremen