A direita privatizou a liberdade (e nós deixamos), por Cynara Menezes

por Cynara Menezes, na Caros Amigos

“Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada, que você pode usar do jeito que quiser. Não usa quem não quer”, dizia o jingle de uma marca de roupa jovem nos anos 1970. É incrível a capacidade que o capitalismo tem de encampar os símbolos de contestação para lucrar com eles. Foi assim com as calças jeans, originalmente criadas como vestimenta para os trabalhadores e que caíram no gosto dos hippies e da contracultura, como forma de protesto contra a caretice geral. De olho no nicho de mercado que se abria, rapidamente o jeans foi transformado em produto rentável, embora continuasse a ser associado ao conceito de “insurreição”, de “resistência”, na publicidade — ao mesmo tempo que, assinado por estilistas famosos, passava a custar os olhos da cara.

Aconteceu igual com o rock, o punk, o movimento LGBT ou o black power. O capitalismo enxerga a tendência e, com ela, a possibilidade de reduzir as lutas ao que interessa: dinheiro. O significado por trás daquilo pouco importa. Tudo é diluído para formar um conjunto belo, colorido e atraente, perfeito para os anúncios e comerciais de TV. O sistema consegue a proeza de lucrar com uma atitude contra o sistema. Marcas de refrigerante são especialistas em vender rebeldia engarrafada.

Tudo isso faz parte, é intrínseco ao capitalismo, e só trouxa cai numa armadilha dessas. Comprar para protestar contra a sociedade de consumo, imaginem. O que me preocupa é o uso que vem sendo feito de uma palavra tão cara à esquerda como “liberdade”. Os malandros praticamente privatizaram a liberdade. Observem ao redor: tudo que a direita cria traz “liberdade” embutida. É liberal para lá, é libertário para cá… Chegou-se ao cúmulo de uma moçada a favor da volta da ditadura militar no Brasil se denominar “Movimento Brasil Livre”.

Enquanto bandeiras como “direitos humanos”, “igualdade racial”, “igualdade social” e “igualdade de gêneros” continuam a ser associadas à esquerda (e providencialmente deturpadas), a “liberdade” foi monopolizada pela direita. Como se eles se importassem e lutassem por ela, enquanto a esquerda, defendem,ecoando a mídia, pretende calar à força as vozes dissonantes e restaurar a censura.

O capitalismo enxerga a tendência e, com ela, a possibilidade de reduzir as lutas ao que interessa: dinheiro. O significado por trás daquilo pouco importa. Tudo é diluí- do para formar um conjunto belo, colorido e atraente, perfeito para os anúncios e comerciais de TV.

No mundo inteiro, jovens estão sendo seduzidos pela ilusão de que a direita oferece mais liberdade do que a esquerda. Até o mercado é “livre”, gente. Mal sabem eles as prisões a que o sistema os levará: a prisão do consumo, a prisão dos padrões de beleza e comportamento, a prisão da obrigação de “vencer” na vida a qualquer custo, a prisão da competição, a prisão da desigualdade, a prisão de uma imprensa subjugada à elite e ao poder econômico. Talvez seja sofisticado demais entender que liberdade não é só um slogan em busca de ouvidos ingênuos.

Parte da culpa por este fenômeno é da própria esquerda. Infelizmente, quase todas as experiências de socialismo real (com a única exceção do Chile de Salvador Allende) descambaram para a falta de democracia. Países com um só jornal e onde opositores eram encarcerados e até fuzilados não são bem um exemplo de lugares onde se preza a liberdade de seus cidadãos. Sabemos que os Estados Unidos, ao contrário do que ignora a massa de manobra, tampouco são essa “pátria da liberdade” toda, mas o que importa é que a pecha pegou e não fomos capazes de revertê-la até hoje.

Nos apegamos demais, sinto dizer, a ídolos de outras eras. Admiro Ernesto Che Guevara, claro, quem em sã consciência não o admiraria? Mas Che morreu há 48 anos! E, aliás, até ele virou produto nas mãos dos capitalistas… Fidel Castro tem 89 anos. Quando os dois encabeçaram a revolução cubana, o mundo era outro. A esquerda acreditava em outras coisas então. Acreditava em chegar ao poder pelas armas. E que, em certas situações, se justificavam execuções de inimigos. Acreditava que, em nome da revolução, poderia ser preciso sacrificar a liberdade. Muito pouca gente ainda acredita nisso. Evoluímos.

Mas seguimos sendo cobrados pelas circunstâncias do passado e, mais grave: não estamos conseguindo transmitir que, para nós, nada vale mais do que a liberdade humana e que somos nós que a defendemos de fato e de direito — a começar que a defendemos para todos, e não apenas para alguns. Somos nós que questionamos quando alguém vai preso injustamente. Somos nós os primeiros a sair em defesa de um jovem negro quando ele é espancado pela polícia apenas por ser “suspeito”. E ainda que seja culpado, acreditamos na capacidade do ser humano de se recuperar, enquanto a direita, que tanto fala em liberdade, defende que “bandido bom é bandido morto”.

Somos nós os reais defensores da liberdade de expressão, porque pregamos que todos os grupos sociais deveriam ter direito à voz, e não apenas a elite. Acusam-nos de querer censurar, mas é a direita quem tenta intimidar jornalistas com calúnias, agressões e processos judiciais. Somos contra a pena de morte. A direita a defende. A liberdade é uma falácia na boca dos conservadores, tanto quanto é para vender jeans. O pior é que tem gente que compra.

Uma coisa é certa, porém: a esquerda precisa resgatar a liberdade. Precisa se inspirar no que Pepe Mujica, que passou quatorze anos preso, diz: “Inventamos uma montanha de consumo supérfluo. E o que estamos gastando é tempo de vida. A vida se gasta e é miserável gastar a vida para perder a liberdade.” É este tipo de discurso que deve guiar nosso futuro, com a liberdade no centro de tudo — uma liberdade genuína, que nada tem a ver com a empulhação marqueteira da direita, e muito mais difícil de colocar à venda.

Cynara Menezes é jornalista e editora do blog Socialista Morena.

Redação:
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.