por Eliane Bardanachvili, no CEE-Fiocruz
Fruto de intensa mobilização conformada no Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, entendida pelo sanitarista Sergio Arouca (1941-2003) como um “projeto civilizatório”, a inclusão da saúde como direito na Constituição, em 1988, representa importante e notável conquista social, da qual os brasileiros pouco se apropriam. O enunciado constitucional do artigo 196 da nossa Carta, “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, é um estágio ainda não alcançado por muitos países – em relação à América do Sul, apenas seis contam com essa garantia constitucional[1]. Para enfrentar as dificuldades de sair do poderoso enunciado para sua concretização e manutenção, torna-se quase uma condição que consigamos nos dar conta dessa conquista, resgatando e compreendendo seu significado. O artigo 196 afirma, ainda, que o direito à saúde deve ser viabilizado por políticas que garantam “acesso universal e igualitário”, mais “promoção e proteção”, ao lado da “recuperação” da saúde. Nessa construção, em especial no que diz respeito aos termos “promoção e proteção”, está embutido o conceito ampliado de saúde, formulado em 1986, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, e que entende a saúde como algo mais amplo do que a ausência de doença. O conceito relaciona-se ao que chamamos de determinantes sociais da saúde, e inclui a garantia de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade e acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde, apontando para o caráter multidimensional da saúde.
Esse entendimento, no entanto, não é hegemônico e interessa pouco a nossa sociedade globalizada e mercantilizada, na qual, cada vez mais, a saúde é tomada como negócio e mercadoria, abrindo-se espaço à instalação de um pensamento fragmentado e privatista, no qual a atenção à saúde confunde-se com uma abordagem pontual de tratamento e cura de doenças – o que pode ser suprido por planos de saúde privados. Como observou em entrevista o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, “o senso comum, quando fala de saúde, pensa em médicos, hospitais, tecnologias”. Torna-se natural, assim, que o Sistema Único de Saúde brasileiro, que deu forma ao artigo 196 e cuja criação também é constitucional, pelo artigo 198, confunda-se com um plano de saúde público, voltado estritamente ao atendimento médico, para aqueles que não podem pagar pelo privado, na contramão do que embute o artigo 196 e do que sacramenta a Lei Orgânica da Saúde (8.080 e 8.142/1990), que regulamenta o SUS. Promoção e proteção conferem especificidade ao sistema de saúde, que não pode ser comparado, suprido ou substituído por planos privados, nos quais não estão incluídas ações como organização da rede de assistência, vigilância sanitária, epidemiológica, saúde do trabalhador e ordenação de recursos humanos para a saúde[2]. Como bem aponta o Manifesto do Cebes, “são as necessidades de saúde e não a capacidade de pagamento por serviços que devem pautar a atenção à saúde”.
Um dos sistemas mais avançados do mundo O acesso universal, de que trata o artigo 196 da Constituição, foi firmado como primeiro dos três princípios do SUS: universalidade – “todos têm o mesmo direito de obter as ações e os serviços de que necessitam independentemente de complexidade, custo e natureza” –; equidade – não discriminação no acesso aos serviços de saúde –; e integralidade – ações e serviços exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema[3]. O SUS é um dos mais completos sistemas de saúde do mundo, porque leva em consideração o indivíduo, sua família, sua comunidade e o seu cuidado, e é organizado de maneira descentralizada, hierarquizada (estados, municípios e União) e com participação da população, em especial, por meio dos conselhos e conferências de Saúde. Hoje, 75% dos brasileiros são usuários diretos do sistema. No entanto, a concretização do SUS esbarra em entraves como volume de recursos insuficiente; capacidade heterogênea de gestão do sistema pelos estados e municípios; caráter mais consultivo do que deliberativo dos conselhos de Saúde; persistência nas desigualdades de acesso; distorções no modelo de atenção, com medicalização e uso inadequado de tecnologia; custos elevados de insumos; e conflitos nas relações entre gestores estaduais, municipais e federais[4]. A multiplicação de novas formas de articulação público-privada na saúde, com terceirizações, fundações, cooperativas e organizações sociais completa os problemas do sistema. A não concretização do projeto, mais de 25 anos depois de sua concepção vem levando a que ele se descaracterize, em vez de que se prossiga na busca de seu sucesso.
Atualmente, o setor privado prestador de serviços complementares ao SUS é remunerado regiamente para isso, para usar os termos do manifesto do Cebes. Assim, o Estado que tem o dever de garantir o direito universal à saúde abre mão de recursos financeiros que deveriam financiar ações e serviços de saúde pública, para beneficiar as empresas que negociam com a saúde. Tal envolvimento do Estado com o setor privado acentua o olhar sobre o SUS como um plano de saúde público, em detrimento de sua amplitude, complexidade e grandeza. Essa olhar abre brechas para iniciativas como a Emenda Constitucional 451, que pretende tornar obrigatórios planos privados aos trabalhadores empregados, na contramão do projeto do SUS, cujas ações e serviços não estão condicionados a capacidade de pagamento prévio. A 15ª CNS como espaço de mobilização Na medida em que a 15ª Conferência Nacional de Saúde, que se realiza de 1º a 4 de dezembro de 2015, se orientará pelo tema Saúde pública de qualidade para cuidar bem das pessoas. Direito do povo brasileiro, levar em conta a necessidade e a importância de os brasileiros se apropriarem da conquista que representam tanto o direito à saúde garantido constitucionalmente quanto um sistema de saúde público, gratuito e universal, pode ser um caminho para se conformar uma mobilização em prol da concretização desses projetos e radicalizar o cumprimento dos princípios e diretrizes da política de saúde brasileira. Tratar doenças é apenas parte disso, o que torna a lógica mercantilista que leva a se almejar plano de saúde como caminho de proteção à saúde, redutora para dar conta de toda a proposta. A manutenção de políticas sociais não está no rol dos serviços ofertados pelas seguradoras privadas de saúde…
O cenário aponta para a necessidade de uma luta contra-hegemônica em prol do conceito ampliado de saúde e da manutenção do artigo 196 como cláusula pétrea, questionando-se os discursos que tomam o conceito de saúde somente pela sua dimensão biológica, o que abre espaço ao protagonismo da saúde privada e desigual.
O alcance do conceito ampliado de saúde pode ser poderoso aliado a conferir concretude ao projeto do SUS, tomando-se a saúde como direito, tal como expresso no artigo 196. Os esforços em espaços de controle social como a 15ª CNS podem concentrar-se em buscar recuperar e fazer valer esse entendimento e quão avançado é o projeto que os brasileiros têm nas mãos, para que se valorize e consequentemente, se defenda o SUS. Daí virão a força e a mobilização para que as mazelas do sistema sejam enfrentadas, em vez de serem motivo para sua desqualificação e para a instalação de outro projeto em seu lugar.
Eliane Bardanachvili é Jornalista e doutoranda em Comunicação e Saúde (PPGICS/Icict/Fiocruz)
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[1] Dos doze países que integram o Conselho de Saúde Sul-Americano da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), apenas seis – Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai, Suriname e Venezuela – consideram a saúde como um direito universal em suas constituições, com diferentes abordagens. (GIOVANELLA et al, 2012).
[2] NORONHA, José Carvalho de; LIMA, Luciana Dias de; MACHADO, O sistema único de saúde – SUS. In. GIOVANELLA, Lígia et al. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014. p.365-393
[3] Ibidem
[4] Ibidem