Entrevista: Miguel Gomes, diretor de “As Mil e Uma Noites”

TORONTO, ON - SEPTEMBER 06: Filmmaker Miguel Gomes attends the "TABU" premiere during the 2012 Toronto International Film Festival on September 6, 2012 in Toronto, Canada. (Photo by Alex Bruce Photography/Getty Images)

Por Lia Bianchini, repórter especial do Cafezinho

O cineasta português Miguel Gomes esteve no Brasil para a pré-estreia de seu novo filme “As Mil e Uma Noites”, uma trilogia que desmembra a crise de Portugal nos anos de 2013 e 2014.

Na entrevista a seguir, Miguel fala sobre o processo de produção dos longas, sobre como é fazer cinema em Portugal e sobre suas perspectivas e análises a respeito do cenário político português e europeu.

O primeiro volume de “As Mil e Uma Noites” estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta, dia 12. Os volumes dois e três estreiam no dia 19 de novembro.

Confira a entrevista:

O Cafezinho: Primeiro, queria saber como surgiu a ideia de narrar o contexto político português nos moldes do livro “As mil e uma noites”.

Miguel Gomes: Eu tenho uma filha, que tem nove anos agora, mas há um tempo (com cinco anos), ela pediu para eu comprar uma coisa qualquer e eu disse que não, que não ia gastar dinheiro com aquilo. E ela disse: “não compras por causa da crise”. E eu achei estranho que uma criança de cinco anos conhecesse essa palavra. Porque eu, quando tinha a idade dela, não conhecia. O que mostra até que ponto vivemos tempos sensacionais, que tocam toda a gente, toda a gente é afetada por isso. Claro que há sempre um pequeno grupo que não é. Há um pequeno grupo que até fica mais rico, porque, com as crises há sempre alguém que ganha dinheiro também. Quero dizer, minha filha é demasiado pequena para eu poder explicar melhor o que é crise. Ela só tinha consciência que pode receber menos presentes porque há menos dinheiro. Eu não podia explicar, nem tenho capacidade de explicar (aliás, nem os economistas conseguem explicar a crise, nem os políticos). Então, eu pensei: vou fazer um filme sobre Portugal hoje, o que é viver em Portugal, não só histórias que tenham a ver sempre com a crise, mas que sejam sobre a experiência de viver em Portugal nos dias de hoje. Contar o filme com histórias, como se conta experiências.

Então, nós pensamos em pegar esse livro (As mil e uma noites), que é um livro para adultos, bem selvagem, em que existe uma sensação de que tudo é um bocado extremado, uma fantasia muito delirante, muito absurda. Às vezes é um livro muito violento, às vezes é um livro muito erótico, é tudo extremado, todos os elementos são muito extremos e eu achei que isso tinha uma conexão com o que se passava em Portugal, onde as histórias também começavam a ser bastante vulgares e às vezes absurdas.

O Cafezinho: Analisando os três volumes como um único filme, parece haver uma progressão de sentimentos: na primeira parte, tem uma revolta contra o governo; na segunda, ele foca mais no desespero das pessoas pela situação em que estão vivendo e na terceira, eu senti um pouco de esperança, não em um futuro melhor, mas em retomar a vida que as pessoas tinham…

MG: Não sei se retomar a vida que tinham antes da crise, porque, repara: o filme termina com uma comunidade que é quase desconhecida, é quase uma comunidade secreta, até porque o que eles fazem (os passarinheiros) é proibido. Eles não têm direitos, se a polícia os apanhar, eles têm que pagar uma multa e tem que devolver os pássaros.

Mas o que eu sinto é que há uma ambiguidade política que gera duas reações: por um lado, tem aqueles espectadores que dizem “cá está: esta é a prova de que Portugal está condenado, porque estas pessoas vivem com dificuldades, estão na parte mais baixa da escala social e politicamente não são ativas, não estão a fazer nada dentro do sistema para mudar as condições de vida”, e elas têm alguma razão. Mas há outros que dizem outra coisa, que parece o contrário, que é: “esses caras inventaram uma espécie de sociedade paralela e qualquer sociedade paralela à sociedade dominante acaba por ter um ato subversivo, porque não faz parte, está ao lado”, então o que estão a fazer é uma espécie de outro modelo de sociedade, que, nesse caso, disputa com o modelo dominante. E eu também acho que há um fascínio por isso, terminar o filme com aquelas personagens que, se quedar, não têm grande consciência política, não têm grande capacidade também, ao contrário de Xerazade, de contar histórias. Não tem essa capacidade, mas tem capacidade poética forte, elas conseguem distinguir o canto dos pássaros.

No primeiro volume, há um galo que tenta falar no meio da noite e por isso é posto em tribunal e o seu drama é que ninguém consegue escutá-lo, porque os homens já não conseguem escutar a fala dos animais. No terceiro, há estas personagens que se dignam a isso e que conseguem distinguir o canto dos pássaros, que organizam a sua vida em função disso. É algo que a Xerazade não consegue, eu não consigo. Elas têm essa capacidade. Será que isso é para muitos ou para poucos? Não sei. Existe essa ambiguidade. Me fascina esse mundo de homens que escutam os pássaros. Então, a esperança no fim é de uma coisa qualquer que pode vir. Não sei se é boa ou se é má.

O Cafezinho: Como foi a escolha das histórias que seriam contadas?

MG: Olha, nós tivemos um trabalho com jornalistas. Havia uma equipe de três jornalistas, que trabalhou com a gente durante um ano. O trabalho de investigação deles muitas vezes era tapado pela ficção. E então achei que era justo que eles pudessem publicar os artigos, as reportagens que foram fazendo para nós. Para isso, criamos um site.

Mas, então, esse era o desafio: ter um período de 12 meses, de agosto de 2013 até agosto de 2014, e todas as histórias teriam que vir de algo que tivesse ocorrido nesse momento. O trabalho era sempre diferente, todos os meses.

Há vários olhares diferentes sobre viver em Portugal e há várias maneiras diferentes de fazer cinema, de contar histórias que são diferentes de parte para parte do filme. Mas a base era sempre a mesma: era o trabalho dos jornalistas em investigar o que estava a se passar em Portugal, de norte a sul, e depois nós pegávamos aquilo que nos interessava e acho que não havia um denominador comum para tudo. Eu acho que tudo se faz com desejo e ali eram desejos diferentes que iam surgindo em momentos diferentes, que nos podiam levar para um processo de tribunal (que foi feito a partir de vários crimes um bocado absurdos que os jornalistas colecionaram nesse período), podiam nos levar a fazer a história do galo (que foi a primeira que nós fizemos), onde não havia o trabalho de roteiro, só uma lista de possibilidades de cenas, porque estávamos a trabalhar com a dona do galo e não queríamos escrever diálogos para ela, queríamos pôr as situações e ela ia improvisando. Então, é sempre diferente, por isso o filme vai parecendo coisas diferentes, não só de um volume para outro. Sobretudo no volume um, que é uma coisa mais montanha-russa, tem as suas coisas diferentes lá dentro. Essa diversidade, eu achei que seria uma coisa rica.

O Cafezinho: O volume um parece ser o mais crítico politicamente, mas ao mesmo tempo o mais surrealista. Essa foi a intenção mesmo, tratar a política de um jeito menos realístico?

MG: Sabes, nós fomos filmando e depois no final é que dividimos em três partes. Então, não havia um pensamento sobre uma estrutura geral do filme. A cada momento, apetecia-nos algo diferente. Então, ali naquele volume um tentamos coisas diferentes. Também foi o volume com as primeiras histórias a serem rodadas e nós queríamos que elas tivessem registros muito diferentes, porque esse era o tom que queríamos, essa diversidade. Depois, dentro de cada história, por exemplo: “Os homens de pau feito” corresponde mais ao registro de farsa, da sátira, sendo que eu acho que há qualquer coisa melancólica nessa história, mesmo tendo um lado de uma sátira feroz e cruel. O primeiro ministro é, obviamente, uma personagem muito tonta, mas há um lado infantil que o torna quase simpática. É uma tragédia que as pessoas sejam governadas por aquele primeiro ministro, mas há um lado simpático nele, porque é quase uma criança (faz inscrições em árvores com o canivete, desenha cavalos mágicos) e há um lado melancólico.

Pra mim, o que é interessante é não haver só um registro. Tem que haver sempre dois e às vezes opostos para começar haver cinema. Quando se estás tocando as mesmas teclas no piano, não faz música. Então, tem que haver agudos e graves, tem que haver coisas diferentes. É verdade que eu acho que o primeiro volume é o mais louco.

Digo isto, mas agora, pensando… São graus diferentes de loucura, mas eu acho que existem em todos. Eu diria que o segundo volume é o mais cruel, porque tem personagens mais desesperadas, é o mais abstrato. A história do cão, da juíza… Tem um lado mais derrotado e mais trágico.

O primeiro volume acaba com uma cena que tem alguma esperança. Aquele projeto político daquele sindicalista é absurdo, propor aos desempregados, no dia 1 de janeiro, ir à água. Mas, se quedar, hoje em dia nós precisamos de projetos absurdos. Eu senti que tinha necessidade de acabar daquela forma porque há qualquer coisa de comovente naquelas imagens, porque estão todos juntos para fazer um disparate, algo que é uma superstição, um ritual para que o ano seguinte corra melhor. Não sei, talvez, esse projeto tenha sua razão de ser. Pelo menos dentro do contexto do filme. Não estou com isso a propor que os sindicalistas do Brasil façam isso (risos).

O Cafezinho: Quanto tempo vocês demoraram a filmar e finalizar o filme?

MG: Nós começamos a trabalhar em agosto de 2013. Durante os 12 meses seguintes havia tudo ao mesmo tempo. Íamos pesquisando com os jornalistas e íamos escrevendo, filmando e montando já (havia três montadores comigo). Havia um montador durante esse período que fazia primeiras versões do que nós íamos filmando, então íamos vendo, discutindo com ele. Foi quase como fazer todos os processos do filme ao mesmo tempo, durante 12 meses. Depois, terminamos em Portugal e fizemos mais dois ou três meses em Marselha, para a história de Bagdad. E depois eu acho que foram mais cinco meses de montagem de imagem e finalização. Foram quase dois anos de processo.

O Cafezinho: E desde o início o projeto era fazer um filme dividido em três partes?

MG: Não. Foi qualquer coisa que surgiu. Eu tinha este período de um ano para fazer pesquisa e filmar e durante esse momento eu tinha direito a 14 semanas de rodagem, que depois se tornaram em 16. Nesse tempo nós tentávamos filmar o máximo de histórias possíveis, mas não sabíamos o que é que isso ia dar. Eu tinha um contrato assinado com o produtor que dizia que eu não podia passar de três horas e meia de filme.

O Cafezinho: Passou um pouquinho…

MG: É esquisito, porque, se contarmos com o filme todo, sim. Se contarmos por partes, cada uma tem pouco mais de duas horas. Portanto, é uma questão complexa, juridicamente complexa (risos).

Mas eu percebi que a melhor maneira de pegar aquele material não era fazer um “best of” e jogar fora tudo que eu achasse mais frágil. Achei que era importante colocar tudo no filme, arranjar uma maneira de colocar todas as histórias que nós tínhamos feito e arranjar uma estrutura. Então, nós percebemos que durante a montagem podíamos fazer um primeiro volume, que era bastante mais inquieto, o que muda mais vezes de registro, mas que tínhamos filmado três histórias que juntas davam um lado mais de desespero (o segundo volume) e, provavelmente, se fosse apenas um filme, nós íamos misturar muito mais as coisas. E quando nós percebemos que íamos colocar tudo no filme, tentamos que cada volume tivesse a sua autonomia, a sua própria personalidade e o que tínhamos ali dava para construir três longas com personalidades diferentes e isso era bom para o filme.

O Cafezinho: O segundo volume é o representante português no Oscar. Qual sua expectativa em relação a isso?

MG: Eu acho que Portugal é o país que teve mais indicados ao Oscar, mas nunca ganhou. Portanto, arrisco que será o mesmo. Digamos que seria bom para nós ganhar o Oscar, mas eu acho pessoalmente que não é muito provável, porque este filme está do outro lado da ideia de cinema industrial que é o Oscar. O Oscar é uma avaliação da indústria de cinema mais forte do mundo, a indústria americana. Ao longo da história do cinema, nas indicações a filme estrangeiro, na maior parte das vezes, em minha opinião, nunca são nomeados filmes que a indústria americana não consegue integrar. É outra lógica. Então, por isto, eu acho que é mais provável que não ganhemos. Mas, se ganharmos, eu não vou ficar a chorar (risos).

O Cafezinho: Que histórias a Xerazade contaria de Portugal hoje? Houve uma mudança no contexto político e social do país?

MG: Olha, não contaria histórias muito diferentes, porque essa ideia que Portugal conseguiu vencer a crise é o que eu chamo de má ficção, é mentira. Mas que é uma narrativa que foi inventada pela Europa. A Europa precisava muito ter um caso de sucesso, relativamente a essa coisa da política de austeridade. Para fazer de contraponto aos gregos, que eram os maus, apareceram os portugueses, que eram os bonzinhos, com um governo que seguiu todas as indicações, que não discutiu nada, que teve um primeiro ministro que chegou e disse: “nós queremos ir mais longe que a Troika”. Foi a primeira afirmação dele e deu no que deu.

Então, eu acho que as histórias não seriam muito diferentes. Acho que Portugal continua com grandes dificuldades. Houve uma falhança total em relação à política da austeridade promovida pela Troika (comitê formado por Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI) e aplicada pelo governo, porque o objetivo número um era fazer descer a dívida pública, mas a dívida pública subiu. Ao mesmo tempo, houve uma reformulação da sociedade, um empobrecimento geral, que passou por um corte muito grande nos apoios sociais.

O que une a Europa, agora vemos o que é: chama-se dinheiro. E quando há menos, já não há união nenhuma. Então, o que unia a Europa eram supostamente os valores e uma ideia de aplicação de democracia avançada em que o Estado sabia que devia providenciar uma série de coisas para oferecer o mínimo de dignidade às pessoas. Hoje em dia vimos que tudo isso está desintegrado.

Isso é uma coisa que os mais fortes têm algum problema em assumirem, criaram uma versão que diz que os países mais fracos trabalham menos. Enfim, há uma bagunça e agora com esta última crise dos refugiados e com os países todos a lutar (alguns acham que abrem as fronteiras, outros acham que fecham as fronteiras), é impossível entenderem-se. Eu acho que estamos a assistir, neste momento, ao fim da Europa… Muito provável que seja. E eu tenho pena disso. Mas, se for pra ser isso, obviamente que vai terminar, porque não estamos no estado civilizacional suficientemente organizado para que existam mecanismos de solidariedade para que possa existir uma união política funcional na Europa. Pelo visto a barbárie existe.

O Cafezinho: 2013 e 2014 também foram anos importantes para o Brasil, politicamente. O primeiro por conta das manifestações sociais e o segundo por ter sido ano eleitoral, em que o Brasil viveu uma polarização política muito forte. E, cada um desses anos, a sua maneira, trouxe o país ao contexto atual, em que a gente vive certa instabilidade política e econômica. Digo isso, porque parece haver focos de crises acontecendo no mundo ao mesmo tempo. Você acha que o capitalismo, por ser o sistema hegemônico, padroniza países e crises?

MG: Sim, o capitalismo, na verdade, globaliza a crise, em termos econômicos, por um lado, e, por outro lado, força uma espécie de ditadura de soluções. Diz: “não há outro jeito”. Nós passamos o tempo todo a ouvir em Portugal: “nós temos que fazer isso porque não há outra política”. Existiram sempre políticas diferentes ao longo dos séculos e continua sendo assim. Agora, é óbvio que um sistema político dominante vai impor sempre a sua lei e quando há graves problemas vai dizer que não há outra solução, não há outra política. Mas a democracia era justamente por isso: dizer que existem outras soluções e essas soluções podem passar por coisas absurdas.

Tu falaste dessa polarização, mas sei que há aqui uma influência muito crescente de outra força, que são os fundamentalistas religiosos, o que corresponde também há um estado bastante preocupante, uma espécie de regresso à Idade Média…

Num sistema democrático, há lugar para várias propostas políticas diferentes, mas é verdade que quem domina tenta impor a sua lei. Não sei o que se vai passar… Obviamente que sempre que há grandes angústias, o poder não fica do mesmo lado. Mesmo que possa demorar tempo, acaba mudando. A história nos diz isso. Eu não sou cientista político, mas é essa a sensação que eu tenho.

O Cafezinho: Você diria que a gente vive uma crise do capitalismo?

MG: Eu acho que vivemos uma crise da democracia. Porque houve qualquer coisa que foi novo, a Troika que chegou a Portugal não foi eleita. Nos últimos anos, nas últimas décadas, eu acho que nunca se viu isso, foi muito pouco falado, foi a aplicação de uma política com muitos custos sociais, que alguns economistas acusaram de ser demasiado experimentalista, que era impossível uma sociedade regredir tanto em tão pouco tempo, era demasiado violento, e essa imposição foi feita por uma entidade que não foi eleita pelo povo.

Houve qualquer coisa que foi ferido no conceito de democracia, que só está sendo discutido agora, sobre a legitimidade do que se passou, porque eu acho que põe em crise os conceitos básicos de democracia. Para o bem e para o mal, a política é organizada pelo desejo que é expresso em eleições e há qualquer coisa de incompatibilidade.

De uma maneira geral, o sistema capitalista hoje é globalizado, com os mercados a fazerem chantagem, porque têm o poder para isso. E os políticos reféns, prisioneiros desses sistemas, quer deste capitalismo que existe a um nível global, quer, no caso da Europa, de uma União Europeia onde a representatividade dos países mais fortes impõe a sua lei aos países mais fracos e então a soberania de um país está sempre colocada em xeque por esse modelo político.

O Cafezinho: Você acha que em períodos em que a população se vê mais frágil, ela fica mais suscetível a tiranias?

MG: Eu acho que o medo é uma grande ferramenta dos projetos políticos totalitários. Os fascismos sempre chegaram em épocas de crise, em que havia medo. E as pessoas com medo tentam defender-se e começam a ficar cada vez mais egoístas e com menos capacidade de encontrar lugar para outros, pensam apenas nelas mesmas. Isso é universal.

Em Portugal, o que acontece é que o país teve uma ditadura durante muitos anos, que só terminou em 1974. Então existe uma memória ainda viva sobre isso, das pessoas que viveram nesse tempo. Esse regime terminou há menos de 50 anos. Portugal foi o último país a dar liberdade e autonomia a suas colônias africanas, numa altura em que toda a Europa já havia percebido que o colonialismo é um regime impossível de manter segundo os padrões civilizacionais daquele tempo. E Portugal foi o último com a ditadura, com Salazar a dizer que Portugal estava orgulhosamente só. Então, por causa da memória da ditadura, não existe, por exemplo, partidos de extrema direita em Portugal, como estamos a ver que começam a existir na Europa.

Neste momento, a França, da Revolução Francesa, que é algo muito importante para o pensamento ocidental de hoje em dia, ameaça ter uma presidente da República de extrema direita, a Marine Le Pen, coisa que, se eu falasse a um francês há dez anos, ele diria que eu estava louco.

E, portanto, as coisas estão a mudar muito rápido. Eu diria que é uma situação preocupante… A minha única possibilidade de atuar é fazer filmes, que eu acho que não são militantes. Esse filme mostra que não gosta do governo português, com as políticas que foram seguidas nos últimos anos, mas eu também não conheço o caminho para o progresso. Há uns que acham que conhecem, mas eu não conheço. Então, a única maneira em tempos de inquietude, de crise, é filmar essas coisas tentando não ser demagógico, sabendo que a realidade não é só uma, que há muitas verdades, às vezes diferentes e contraditórias. Foi por isso que eu acho que tive que fazer um filme tão longo, porque eu acho que as coisas são complexas e eu não tinha capacidade suficiente de conseguir fazer isso em um longa só.

O Cafezinho: Como o público português recebeu o filme?

MG: Recebeu mais ou menos bem, para um filme de autor. Fez os espectadores que é normal fazer com um filme de autor, o máximo que se pode ter, sempre com uma queda em cada filme, que é uma coisa que existe com trilogias.

Nós tínhamos a sensação de que, ao mesmo tempo em que esse era um blockbuster, não ia fazer dinheiro, era um “blockbuster pobre”. Acho que gerou reações diferentes, porque, tal como a sociedade brasileira, acho que Portugal está muito dividido ao meio, entre direita e esquerda. E eu acho que houve reações muito apaixonadas quer de um lado, quer de outro. No princípio, a esquerda a dizer que o filme era genial, depois ficaram com mais dúvida, porque a mensagem nos outros volumes é menos clara. Os de direita, que apoiavam o governo, viram o volume um e ficaram logo furiosos e não quiseram ver mais. Eu acho divertido.

O Cafezinho: Falando um pouco sobre política de cinema. Como é fazer filmes em Portugal, em relação a incentivos do governo, leis de fomento?

MG: Em Portugal nem sequer existe uma lei de captação de recursos privados. O país tem um mercado muito pequeno. O Rio tem quase a população de Portugal. São Paulo ultrapassa. Os portugueses que existem nesse momento em Portugal são dez milhões, se quedar menos até. Então, é um mercado de cinema muito pequeno e é quase impossível ter filmes que façam lucro, porque fazer cinema continua sendo uma arte muito cara e o mercado interno português não dá sequer para pagar o investimento, só em casos muito raros.

Mas existe um sistema, como existe aqui no Brasil. Vocês têm a Ancine e nós temos uma coisa chamada ICA, que é o Instituto de Cinema e Audiovisual de Portugal, que é um organismo estatal que tem uma política cultural.
A cultura perdeu muito com a crise em Portugal, porque uma das primeiras medidas do governo foi terminar com o Ministério da Cultura, que transformou-se na Secretaria de Estado da Cultura. O governo dizia, por um lado, que era impossível de manter o Ministério por razões práticas de orçamento, mas também por questões ideológicas, pois o governo entendia que o Estado não deveria participar muito nisso. Só que, por outro lado não criou condições ou leis para incentivar a cultura. E ninguém quer fazer filmes porque sabe que vai perder.

O dinheiro para filmes em Portugal não vem sequer do Estado, vem de particulares, porque quem paga o cinema em Portugal são as telefônicas, as televisões, todas as empresas que ganham dinheiro com audiovisual têm que retirar uma porcentagem para o Instituto de Cinema, que organiza os concursos para captação de verba. Como o dinheiro é pouco, isso dá com que no final de cada ano haja uma produção de menos de dez longas, uns 15 ou 20 curtas, entre seis e 10 documentários, talvez 15. É isto que há em Portugal, muito pouco.

Depois, eu acho que nos filmes há uma coisa que é importante, que o júri decide os projetos que serão financiados. Geralmente há consciência que não há possibilidade de fazer grande dinheiro com um filme, então, os diretores podem beneficiar de certa liberdade. Eu acho que o cinema português se beneficia um bocado dessa falta de pressão do dinheiro, do poder. Ou seja, é uma consequência de ser pobre, de não termos mercado, de haver pouco dinheiro… É a única boa consequência: poder ser mais livre.

O Cafezinho: Em relação à exibição, os filmes nacionais tem bastante espaço nas salas de cinema ou são sobrepujados pelos blockbusters norte-americanos?

MG: É difícil. Eu acho que, por exemplo, no tempo do “Tabu”, há três anos, havia mais diversidade do que hoje. Também, com a crise os mais fracos fecham as portas primeiro, claro, é sempre assim. Mas, a pesar de tudo, continua a existir algo, porque já é uma tradição. Portugal sempre teve uma cinefilia grande, não de muita abrangência, mas de algum interesse por cinema. Temos uma cinemateca em Lisboa que sempre foi muito forte e continua a existir algumas salas, mas eu acho que é cada vez mais difícil. Com “As mil e uma noites” foi mais difícil de guardar os filmes nas salas do que com “Tabu”. Estreiam mais filmes e os filmes saem muito mais rápido e há também mais filmes americanos. É difícil segurarmos nas salas.

O Cafezinho: Tem algum cineasta brasileiro que você admira?

MG: O Kleber Mendonça Filho. Há muita coisa que eu não conheço do Brasil, mas “O Som ao Redor” é um filme que eu gosto muito, como proposta de cinema e como um olhar sobre o Brasil. Parece muito forte, muito interessante. Eu já tive oportunidade de estar num júri em um festival em Istambul, na Turquia, e poder dar o melhor filme ao Kleber. Foi um prazer.

O Cafezinho: Você já está trabalhando em algum projeto novo?

MG: Eu estava a pensar em fazer um filme que tinha a ver com a Copa do Mundo de Futebol de 1986, no México. Uma coisa que aconteceu com a seleção portuguesa nesse momento. Mas aqui no Brasil mudei de ideia e então agora há um novo projeto, que eu estou muito interessado, mas o produtor proibiu-me de falar sobre ele. Até demos os primeiros passos… É um filme que se passa todo no Brasil.

Lia Bianchini:
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