Por Lia Bianchini, repórter especial do Cafezinho
“Escuta, ó venturoso Rei”, era a frase que Xerazade dizia todas as noites para começar a contar suas histórias ao Rei Shariar, seu marido, famoso por decapitar suas esposas na manhã seguinte à noite de núpcias.
Você pode conhecer a história milenar da rainha, mas não do modo como Miguel Gomes apresenta em seu novo filme, a trilogia “As mil e uma noites”, que esteve em exibição na 39ª Mostra de São Paulo.
Usando três longas-metragens de mais de duas horas, o diretor português usa a fórmula do famoso livro árabe para narrar o contexto político e social de Portugal nos anos de 2013 e 2014, período em que o país começava a entrar em uma crise econômica.
Volume I – O Inquieto
No primeiro volume da trilogia, Miguel Gomes se vale do surrealismo para fazer uma crítica incisiva ao governo português. Dividido em três pequenas histórias, o filme mescla ficção a documentário, criando, como o próprio diretor diz, “uma montanha-russa de sentimentos”.
O filme começa em tom bastante documental, com o diretor em cena e narração em off, com um roteiro que parece justificar os motivos pelos quais o filme foi feito. Após os primeiros minutos um tanto quanto confusos, a narrativa ganha ritmo com o começo do primeiro conto de Xerazade: “Os Homens de Pau Feito”, que relaciona a impotência do governo português ante a crise econômica ao falocentrismo de seus governantes. Nitidamente, o mais crítico dos contos, esse é, também, o mais surrealista do volume.
São retratados governantes portugueses que, diante da crise, esquecem-se dos problemas do país ao verem-se envaidecidos com a possibilidade de manter uma ereção 24 horas por dia. Para eles, a imagem de potência que seus pênis eretos passam sobrepuja qualquer mal que a sociedade possa estar passando.
No segundo conto do volume, a narrativa passa a ser mais documental, com “A história do Galo e do Fogo”, contada pelas personagens reais que a vivenciaram, incrementada por uma pequena ousadia do diretor: colocar crianças interpretando um triângulo amoroso de adultos. Bastante diferente do primeiro conto, aqui a história ganha contornos mais leves, com uma crítica mais velada. Um galo que cantava durante as madrugadas vai a julgamento e, a partir disso, Miguel Gomes fala sobre sensibilidade humana, oportunismo eleitoral, relacionamentos possessivos. A narrativa, contada por habitantes do interior português, parece mais inocente e cômica.
Fechando o volume, Xerazade conta a história do “Banho dos Magníficos”, um retrato do desemprego em Portugal, contado a partir de uma superstição de sindicalistas portugueses para o ano novo: no dia 1 de janeiro, banhar-se no mar para trazer boa sorte.
Do surreal ao documental, o primeiro volume do filme se encerra dando pistas do que virá no volume seguinte. O Banho dos Magníficos deixa um gosto acre na boca do espectador, que se depara com a situação paradoxal das personagens: desempregados sem perspectiva de outro trabalho, apegados à superstição de que um banho de mar resolverá os problemas futuros.
Volume II – O Desolado
A segunda parte de “As mil e uma noites”, como o próprio título do volume já diz, toma caminhos mais sombrios e melancólicos, deixando um pouco de lado a crítica política para enfatizar no desespero social que assola os portugueses.
Também divido em três contos, o volume começa com a “Crônica de Fuga de Simão Sem Tripas”, um conto silencioso e de ações constantes, que mostra as diversas faces do autoritarismo, seja ele do Estado ou das relações interpessoais.
Se o primeiro conto é marcado pelo silêncio, o segundo concentra-se nas falas. “As Lágrimas da Juíza” tece uma teia de pequenos crimes desvendada em um tribunal que julgaria a apropriação indevida de bens de um imóvel por meio dos locatários. Com cenário e encenações bastante teatrais, o conto trata de maneira humanista a complexidade da judicialização de todos os aspectos da vida.
O volume termina com o melancólico conto “Os Donos de Dixie”, que mostra as faces da angústia, do isolamento e do desespero de um povo encurralado pelo desemprego e pela política de austeridade portuguesa. A história se desenrola ao redor dos donos de um cão (Dixie), que aparece misteriosamente em um condomínio português. Dixie, “a máquina de amar e de esquecer”, parece ser o único elemento humanizador daquelas personagens apagadas e abstraídas pelas próprias vidas. Quando ele sai de cena e muda de dono, nunca mais vemos os antigos.
Assim, em uma espiral decadente, o segundo volume de “As mil e uma noites” mostra mais profundamente ao espectador o contexto social português, revelando uma faceta sombria que talvez só os próprios portugueses conhecessem.
Volume III – O Encantado
Diferente dos outros dois volumes, “O Encantado” tem uma narrativa bastante documental e, por vezes, até jornalística. Divido em dois contos, o volume foca na história de uma “sociedade secreta” portuguesa: a dos passarinheiros, homens que dedicam suas vidas ao canto dos pássaros.
O conto principal do volume, chamado “O Inebriante Canto dos Tentilhões”, mostra, contrário aos volumes anteriores, personagens aparentemente deslocados das aflições da crise econômica. Ali não se vê fome ou desemprego, depressão ou solidão, muito menos riqueza ou ganância. É como se aqueles homens tivessem descoberto nos pássaros o segredo da sociedade perfeita.
Quebrando o otimismo que ronda “O Inebriante Canto dos Tentilhões”, Xerazade conta a história da “Floresta Quente”, uma imigrante chinesa que se apaixona e engravida de um policial português. Com cenas das manifestações de trabalhadores em Portugal, o conto todo é narrado em off. O espectador não chega a conhecer a chinesa, apenas suas angústias, que, de algum modo, se ligam às daqueles trabalhadores protestando e se contrapõem à tranquilidade e segurança da sociedade de passarinheiros.
Assim, em uma progressão de sentimentos, “As mil e uma noites” narra de forma única e original a crise portuguesa. Apesar de o tema parecer ser pesado para uma trilogia (que, contando como um filme único, tem mais de seis horas), Miguel Gomes consegue dar leveza à história utilizando elementos como o surrealismo e o humor sarcástico.
Como no livro homônimo, “As mil e uma noites” portuguesas são carregadas de tons de sentimentos extremos. Para o espectador brasileiro, pode ser uma boa forma de entender o que, de fato, se passa na Europa em plena crise, sem o véu de ilusões que permeia os “países de primeiro mundo”.